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Sexta-feira, 23/6/2006
Às Cinco da Tarde
Verônica Mambrini

Às Cinco da Tarde (Panj é asr, 2003), terceiro longa-metragem da iraniana Samira Makhmalbaf, coloca cada plano cinematográfico a serviço de uma arte engajada e poética. Ela escolheu o Afeganistão para rodar uma história política, mas com um viés extremamente humano e delicado. O país que ela capta foi destruído sucessivamente pelo regime Talibã e por bombardeios americanos após o 11 de Setembro.

É no meio desse processo que Noqreh (Agheleh Rezaie), uma mulher que só pode ir à escola escondida do pai, entra em contato durante as aulas com a idéia de se tornar candidata à presidente. O filme se constrói sobre impasses entre novo e velho, arcaico e moderno, sagrado e profano, e o que teria tudo para se tornar um clichê insuportável de 105 minutos se mostra um panorama cheio de nuances sobre a as dificuldades de transição do regime no Afeganistão. Noqreh não se revolta contra a tradição. Tenta respeitar seu pai, embora isso lhe custe mutilar os próprios sonhos. Não é possível mudar tão profunda e radicalmente um país em uma geração.

As paisagens são secas, poeirentas. E desfiam-se devagar diante da câmera. Enquadramentos cuidadosos, pausas e silêncios ajudam a construir o interior dos personagens. O Afeganistão de Samira é árido, mas, ao mesmo tempo, colorido. Há longos campos vazios e estradas que parecem lentamente levar do nada a lugar nenhum.

O Afeganistão tem quase nenhuma história no cinema. Foram rodados até hoje cerca de 40 filmes lá. Essa falta de tradição fez com que Samira trabalhasse com atores amadores. O roteiro foi construído em cima de situações reais, retiradas do cotidiano que a diretora vivenciou em visita ao país. A naturalidade do resultado impressiona. Ao colocar personagens isolados no meio da tela, enquadrados por umbrais de pedra, insulados em palácios destruídos e às vezes perseguidos por movimentos rápidos e precisos de câmera, a diretora nos lembra de que se trata de arte. Não tenta impingir uma realidade postiça, e acaba chegando a uma impressão do real de que a mídia, apesar da intensa cobertura jornalística no período dos bombardeiros americanos ao Afeganistão, sequer se aproximou.

Essa visão da arte como ponto de reflexão fica clara na cena em que a família de Noqreh tem de dividir a casa com desabrigados, e um refugiado, hóspede forçado, quer ouvir música em volume alto. O pai de Noqreh abandona a casa para fugir da música, que acredita ser pecado. O refugiado se mantém firme na convicção de continuar ouvindo seu rádio, mas não mais apenas pelos sons. Não à toa, um poeta é o único personagem que a incentiva a querer ser presidente do Afeganistão. O mesmo papel que música e poesia recebem dentro da história é dado por Samira ao fazer cinema. A arte se torna uma forma profunda de revelar a realidade e intervir na História.

De todos a quem pergunta sobre presidentes de países pelo mundo, ao longo do filme, Noqreh ouve respostas evasivas e confusas. Em comum, a idéia de que política é coisa de alto escalão, de que nada tem a ver com o povo. Essa alienação é o dilema de Noqreh, que junto da família se esconde atrás da burca e precisa antes de tudo sobreviver em meio à destruição, mas quando só ou no ambiente da escola, troca as alpargatas por sapatos brancos de salto alto e descobre o rosto, aspirando a uma vida política e social.

A metáfora dos sapatos lembra o conto de Cinderela. Dentro de casa, ajudando a cuidar do bebê da cunhada, imersa na religiosidade fanática do pai e inexistente para o resto do mundo, Noqreh precisa escondê-los. Como a personagem infantil, ao calçá-los, ganha individualidade, participa da sociedade e se torna senhora da própria vida. Mas não; tanto quanto a vida, Às Cinco da Tarde não é um conto de fadas.

Verônica Mambrini
23/6/2006 às 09h57

 

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