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Segunda-feira, 14/8/2006
Uma história de amor
Marcelo Spalding

Histórias de amor não saem de moda, não têm fronteiras, não se esgotam. Histórias de amor não são privilégio do romantismo, da burguesia, do regionalismo. Autênticas histórias de amor, como diria Pessoa das cartas de amor, são ridículas, têm de ser ridículas, mas ainda mais ridículo é quem nunca leu - ou escreveu - uma história de amor.

A história de amor de Fernando e Isaura (José Olympio, 2006, 176 págs.), é o que se pode chamar de uma história de amor autêntica. Escrita por Ariano Suassuna em 1956 como laboratório para seu Romance d'A Pedra do Reino, permaneceu inédita até 1994, quando foi publicada no Recife, e só neste ano ganha uma edição nacional.

A história é uma versão nordestina do mito de Tristão e Isolda, lenda de origem celta imortalizada por Joseph Bédier e com versão cinematográfica bem recente. Suassuna, ao invés de fazer pastiche ou paródia, consegue de forma belíssima "traduzir" a história celta para o nordeste da primeira metade do século XX, transformando o rei num rico proprietário de terras, os navios em barcos de cabotagem, os mares europeus em rios, a poção mágica em desejo carnal. Numa linguagem simples e lançando mão de recursos originários do cordel, a obra funciona dentro de seu universo particular mas não ousa ir além do que uma autêntica história de amor iria: se Isaura trai, arrebatada pela paixão, o narrador ocupa-se em dois ou três parágrafos para desculpar essa falha de caráter; se Fernando hesita em seu amor, o narrador logo joga-o nos braços de sua amada e eles se amam loucamente sob o pé de um cajueiro. Assim deve ser: apenas o amor move os homens, um amor inabalável, romântico, lendário, trágico.

Sim, bem como a lenda, a história de Suassuna também termina em tragédia, tragédia que não queremos antecipar, mas lembra a mais célebre obra shakespeariana (talvez a mais autêntica das histórias de amor).

Se o leitor estiver apaixonado, é possível que suspire em diversos momentos do texto. Não o estando, é possível que ache graça. Nessas passagens de certo se lembrará do Alencar dos amores impossíveis e inevitáveis, do Goethe do suicida apaixonado Werther, talvez dos franceses até a vida tumultuada de Julien Sorel. E Ariano Suassuna não apenas sabia disso como temia que sua história não fosse compreendida num tempo em que as relações perderam a solidez, numa geração em que, segundo palavras do próprio Suassuna, "os educadores procuram fechar os olhos até para a realidade monstruosa do crime, contanto que não sejam forçados a admitir a verdade de qualquer norma moral".

Esta preocupação levou o autor a começar a história com uma advertência, isso mesmo, um capítulo titulado "Advertência". Nele o autor quase que se desculpa por fazer uma autêntica história de amor, e mais do que isso sente a necessidade de relembrar, mais uma vez - pois os editores já o fizeram na contracapa e na orelha - que se trata de um romance de estréia e escrito em 1956:

"Lembro, então, aos eventuais leitores desta história que, narrada em 1956, sua ação decorre em ano ainda mais recuado. Por isso, encarem com indulgência os arcaicos escrúpulos de seus personagens, perdoando remorsos e hesitações que, menos do que a eles, pertencem ao co-autor contemporâneo desta história tão antiga."

Não fosse em 1956 que Guimarães Rosa tivesse lançado Grande Sertão: Veredas e apenas dois anos mais tarde Carlos Heitor Cony estreasse com O Ventre, até acreditaríamos que as personagens agissem movidas por valores da época do texto, não se caracterizando numa opção do narrador. Mas não. Riobaldo, no momento da luta, age muito mais com razão e fúria do que amor e sensibilidade, arrependendo-se apenas ao ver sua Diadorim morta. Também o protagonista sem nome de O Ventre reprime qualquer relação com sua amada, Helena, ainda que isso cause sua perdição psíquica e social.

Sendo assim, Fernando e Isaura agem nesta história de amor movidas pelo amor das lendas celtas, das tragédias gregas, das autênticas histórias de amor shakespearianas. E não há problema algum nisso. Problema há, talvez, em acusar toda uma sociedade para defender um texto que não precisa de defesa: se às vezes parece ridículo, o é como as cartas de amor.

Marcelo Spalding
14/8/2006 às 08h02

 

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