Um crítico, que eu sempre lia, insistia na superioridade de João Gilberto em relação a vários cantores da história. Era por volta dos anos 1990. O CD ainda era, então, uma novidade. Sairia, por essa época, uma coletânea — foi a era das coletâneas -, com mais de 30 músicas, do cantor. O título, hoje, soa ainda mais apropriado, O mito.
Foi um dos epítetos que sempre se colaram na imagem do músico. Mito por ser o criador de um estilo musical, por esse estilo ter sido o símbolo de uma época, por engendrar uma revolução na técnica, e por dar ao ato de cantar um modo que, influenciado por cantores norte-americanos, tornou-se inconfundivelmente seu.
Naquele álbum em CD, percebi com o tempo, estava condensada, em excelente qualidade de remasterização, uma oportunidade de repetidas vezes, escrutinar os estilos musicais, a variação melódica, o fraseado constante da voz e — acreditem — a volúpia de violinos que pontuava as demais canções.
A regra geral era tentar se desacostumar das músicas voluptuosamente repetitivas do dia a dia e tentar se habituar, entender, se quisermos, uma voz que não gritava, não era histérica, mas que procurava dar a densidade necessária da expressão do sentimento em música.
Eu, já quase habituado ao cool jazz de Miles Davis e, especialmente, de Chet Baker , procurava perscrutar essas afinidades eletivas, que se misturavam com o samba canção, com a música de Caymmi, e com um espírito de época.
João Gilberto pertenceu a outra época. Mas nem por isso deixou de buscar se adaptar a novos estilos e novas canções. Sua versão de Besame mucho, se não exemplo total dessa adaptação, é uma demonstração perceptível da incorporação de um clássico dentro do seu próprio timbre.
O violonista me fez voltar duas casas musicais. De um lado, me aprofundar no jazz; de outro, voltar para a música brasileira, quando a música ainda era uma forma de expressar o mundo e não reivindicá-lo. Aisthesis=sensação.
Certa vez enumerei, para amigos, as três interpretações mais bonitas da história da música brasileira. Digladiavam-se, em minha esquina mental musical, Insensatez, Coisa mais linda, ocupando os primeiros lugares.
Essas músicas me deixaram, e deixariam, espera-se, a qualquer ouvido "destreinado", a impressão de que se está diante de, "mesmo" em remasterização (sim, cultura industrial), uma experiência na qual na primeira nota, a ser sussurrada, e na terceira, levemente expandida, se tem, em uma junção incomum, a harmonia entre uma das mais belas técnicas musicais e uma das mais expressivas formas de vocalização.
Se há influência sobre João Gilberto, como é sabido, deve-se, para muitos, ao Jazz. Nesse aspecto, sua glória internacional, está ligada à música norte americana. O álbum Getz /Gilberto, de 1963, foi um fenômeno em todos os sentidos.
Ele consolidou e expandiu mundialmente a bossa nova. Presente em especiais de TV, em filmes e séries, a música de espírito carioca, se tornaria uma música-mundo. O pai da bossa nova estaria inserido em um circuito musical inaudito para qualquer outro músico brasileiro, com exceção, à época, e graças à bossa, de Tom Jobim.
Tempos depois, me depararia com uma curiosidade. Ruy Castro, em Tempestade de ritmos: jazz e música popular no Século XX (2007), faria uma revelação para mim. Dizia ele:
“E os que ainda acreditam que foi de Chet Baker que João Gilberto tirou sua maneira de cantar é porque nunca ouviram Joe Mooney. Neste você encontrará a mesma liberdade de divisão, o fraseado bem-humorado e até uma razoável semelhança de voz. Não, Mooney não foi a única influência de João Gilberto — ponha aí também Orlando Silva, Lucio Alves, o Page Cavanaugh Trio, entre outras —, mas, que foi decisiva, foi. Uma influência que só se revelaria cinco ou seis anos depois, quando João Gilberto finalmente sintetizaria a sua batida de violão e mudaria sua maneira de cantar”.
E o que fiz? Fui atrás do que se estranha. Não conhecia metade desses nomes. Joe Mooney, por exemplo, ainda permanece um fantasma. Quando o colocava para pessoas ouvirem e dizia que influenciara João Gilberto, ficavam abismados.
Há dois dias de sua morte, ainda, erroneamente, cantarolava, tentando de maneira esdrúxula, imitar as interpretações do legendário músico. Aquele CD, do início de minha juventude, me marcaria, como uma música que, de modo recompensador, mas não gratuito, repete-se na minha esquina mental musical.
É inútil dizer que João Gilberto morreu. Estou colocando aquele álbum da década de 1990... Seu título é: O mito.
Relivaldo Pinho é autor de, dentre outros livros, Antropologia e filosofia: experiência e estética na literatura e no cinema da Amazônia, ed.ufpa, 2015. [email protected]
Edyr Augusto é hoje um dos nomes mais proeminentes da literatura contemporânea brasileira. Seus livros, editados a partir da década de 1990, pouco a pouco foram ganhando destaque da crítica e, já se pode dizer, do público leitor. Algumas de suas obras foram traduzidas para o inglês e francês. Desde então, o escritor paraense tornou-se um dos principais artistas que representam a complexa contemporaneidade da urbanidade amazônica, especialmente da capital paraense.
Longe de ser um porta voz de uma única e imutável identidade regional, sua literatura está muito mais ligada às últimas três décadas da realidade urbana da região. Essa realidade está situada principalmente em seus centros urbanos, mais especificamente, em Belém do Pará.
É com Os Éguas, de 1998, primeiro romance do autor, que essa trajetória e essa narrativa da cidade começam a se desenvolver. Nesse romance, já está presente uma caracterização da região que dista radicalmente das imagens consagradas pelos discursos regionalistas e midiáticos. A Belém que surge é povoada pela degeneração de seu ambiente.
A cidade se faz presente pela violência, pela corrupção, pelas drogas, pela simulação, pelo medo. Através do Personagem Gil, um investigador de polícia, a capital do Pará e seus “tipos” salta para fora, agônica e doente, como um instinto represado pela dor, que implode, página por página, a realidade.
Essa caracterização se seguirá nos livros posteriores, como Moscow (2001), Casa de caba (2004), Um sol para cada um (2008), Selva concreta (2013) e Pssica (2015). As imagens da caótica vida urbana que alimenta o noticiário “mundo cão” das capitais, como Belém, é um dos temas dos livros de Edyr, mas neles não está apenas uma imagem aterradora em fragmentos demonstrada, mas sim um projeto de escrita que formaliza a contemporaneidade decrépita que a todo dia cintila e obscurece nossos olhos.
Vejam, por exemplo, a abertura do conto Sujou, do livro Um sol para cada um, que integrou, em 2010, a Antologia Pan-Americana: 48 contos contemporâneos do nosso continente:
“Eu já sacava o cara. A gente fica ali na esquina e vai vendo as figuras da vizinhança. Basta qualquer barulho e eles chegam na janela dos prédios. Fica tudo lá, olhando. Mas parece que tem uma fronteira, sabe? Daqui para lá e de lá pra cá. Lá pra frente os barões. Aqui pra trás a zona. Mas é que às vezes tá roça mesmo. Ele chegou com o carrão e ficou esperando abrir o portão da garagem. Encostei, disse oi, pedi uma ponta, cigarro qualquer coisa. Disse que dava chupada, essas porras. Me deu uma banda. A Maricélia disse que podia dar merda, o cara se queixar, sei lá, segurança do edifício. Não deu. Disse que outro dia, tava de nóia, rolou discussão e mandaram chamar a polícia por causa do barulho” .
Reprodução
Na cidade de Edyr, a Belém é, ao mesmo tempo, dividida e indivisível, vigilante e vigiada, repleta de gente e solitária. A prostituição é, aqui, uma de suas marcas. Presente no centro da cidade, ao lado de suas praças, de suas ruas centenárias, de seus orgulhosos prédios históricos.
O que está em jogo é essa possibilidade de observamos essas outras faces dessa contemporaneidade da cidade, não apenas para atestar esses aspectos desoladores. Mas, fundamentalmente, compreender que não os reconhecer, ignorá-los, é também ignorar essa história, essa configuração social, essa realidade. É desconsiderar uma das mais importantes formalizações estéticas que se encarrega de representá-la.
Não é apenas negar, como reação, uma Belém idealizada veiculada ainda hoje por vários discursos (midiáticos, sociais, institucionais). Mas é – sob pena de virarmos as costas para o contemporâneo e sua decisiva importância que, gostemos ou não, transformaram parte do ethos do ser amazônico, belenense – dar visibilidade a uma representação que dialoga decisivamente com essa experiência.
Mais do que uma outra face da Amazônia, de suas cidades, essa caracterização surge como uma possibilidade de reconhecermos que, se a arte não é, obrigatoriamente, uma reprodução da realidade, ela não é apenas uma manifestação extemporânea.
No caso da literatura de Edyr Augusto isso é ainda mais revelador. Exatamente porque ela pode nos proporcionar uma representação da cidade que está, ao mesmo tempo, próxima demais do leitor e distante demais (o jornalismo a aproxima pelo fragmento, pelo fait divers) de uma representação estética que a formalize, que a reúna em um corpo discursivo que tem nessa experiência urbana seu fundamento.
Esse fundamento é esteticamente construído em estreita relação com o gênero de literatura policial. Mas ao contrário do clássico romance policial que primava por um detetive sóbrio, talentoso, genial e pela decifração lógica do crime, precisa, implacável e por uma representação da cidade onde o criminoso é ainda um elemento que se esconde na multidão, a literatura de Augusto está muito mais próxima do gênero pulp. Desse gênero no qual o crime é parte essencial da grande cidade, que nela habita como um hematoma indissolúvel, como nas cidades norte-americanas povoadas pelo crime das primeiras décadas do século XX.
Os “Éguas”/Belém, publicado em francês. Reprodução
Nesse ambiente, o detetive é alcoólatra, a violência é um de seus recursos, ele não é excepcional e a cidade que passa diante dele lhe parece como um acúmulo de seres e paisagens decaídos.
Assim surge a cidade na literatura do Augusto paraense. Sua narrativa, preenchida por essas características, adota uma série de imagens do lugar, imagens que remetem a espaços físicos, às caracterizações profundamente cênicas de situações e focalizações de seus “tipos” urbanos que, propositalmente, contrastam com um romântico discurso acostumado e atrofiado sobre a região e a “Cidade das mangueiras”.
A capital do Pará surge em sua literatura em um ritmo vertiginoso, sua escrita mimetiza o diálogo coloquial, o caos citadino, a fragmentação noticiosa dos jornais, o choque, a indiferença.
Uma representação que tem por temática o urbano e sua contemporaneidade, uma escrita que é realizada como um roteiro cinematográfico, repleta de imagens que nos levam diretamente para fisionomias imagéticas/fílmicas de Belém do Pará.
Nessa cidade pulp, nem sempre se pode lamentar o reluzente passado. Pode parecer desolador, mas, talvez, não se tenha mais tempo para essa lamentação, diante das cenas que implodem, diariamente, página por página, a realidade.
Relivaldo Pinho é autor de, dentre outros livros, Antropologia e filosofia: experiência e estética na literatura e no cinema da Amazônia . ed.ufpa, 2015.
João de Jesus Paes Loureiro é o patrono da Feira Literária do Pará deste ano, que começa no sábado, 20 de outubro. É uma homenagem muito merecida para um dos maiores expoentes da literatura da Amazônia e do país.
Influenciado pela leitura em casa, na cidade de Abaetetuba, cedo o escritor se encantaria com o gênero literário pelo qual seria mais reconhecido, a poesia. Encantado com as palavras e com os livros, ele manteria uma relação inseparável entre o ato de ler e escrever que o seguiria durante toda sua maturidade.
Maturidade que começaria a se revelar em sua escrita na década de 1960 com “Tarefa”, seu primeiro livro, fortemente influenciado pelas condições históricas daquele período. Mas a história nunca deixaria de ser uma temática recorrente que marcaria sua extensa produção.
É a história a figurar em sua Trilogia Amazônica em conjunto com o imaginário regional. Nessa obra, está representado não apenas o mito como modo edificante da cultura da região, mas ele está em permanente conflito com a modernização que se anunciava e se fez presente no campo e na cidade.
“Altar em chamas” (1983) é a representação urbana desse entrecruzamento ameaçador que recoloca a aurática Belém do Pará de seus tempos imemoriais, míticos, diante de um presente que não a reconhece, pelo seu abandono e esquecimento.
A incursão mais “metafísica” de Loureiro com “Pentacantos” (1984) e com “O ser aberto” (1990), é composta pelos elementos que fundamentam essa poesia. O ser e o não ser, a aparência que se torna essência, o reencantamento do mundo desencantado.
Eis o fundamento de sua poética que se reflete de modo inseparável em seu trabalho teatral, como em “Ilha da ira” (1976) e teórico, como em “Cultura amazônica: uma poética do imaginário” (1991).
A metáfora recorrente do Ser, mimetizado em seus conceitos de mundamazôniavivência e nas encantarias, são as sínteses conceituais de seu proceder. Desde a infância esse sentimento poético se instauraria, indelevelmente, como uma representação que dialoga com a realidade, não sendo nem “apenas” realidade, nem “totalmente” poesia, mas que a conjuga na mimetização poética como formas de significação de uma, como ele mesmo diz, forma de compressão do mundo pelas palavras, mas também de abertura para o mundo pela leitura.
Suas lembranças, em “Memórias de um leitor amoroso” (1999), já indiciavam prematuramente essa escritura. Sua visão de um objeto tão “simples” como uma folha, ganhara o elemento do “espanto” sublime da realidade e da palavra, que se revelam para a poesia, revelando sempre mais do que eles são.
Escreve o poeta: “Rabiscando a esmo letras, sílabas, com surpresa, eu percebi que na palavra folha, cortando-se o ‘f’, ela se convertia em ‘olha’. Percebi que as palavras escondem palavras, como os frutos escondem os sabores e as sementes. Descascá-las é como saborear novas camadas de significados. Pensei: as folhas são olhos das árvores”.
Nesse pequeno fragmento, que relembra seu encontro na infância com o poético, já se prenunciava o modo pelo qual sua escrita sempre vislumbraria nas coisas, das mais comuns às mais insondáveis, esse jogo de “sfumato”, no qual real e imaginário não possuem distinções rígidas, não são versos inseparáveis.
Esse gradiente de cores culturais e temáticas, de interpretações e leituras, que não define plenamente os aspectos imaginativos e a realidade, mas que os pensa de modo poético-crítico, é a força de sua escrita, de sua interpretação.
É essa concepção poética que atravessará também seu trabalho teórico, buscando identificar nas manifestações culturais a “dominante” que os fundamenta. O imaginário é a dominante, mas também é, fundamentalmente, seu motivo, seu tema.
Por isso, a lenda e a cidade são também deslenda, mito caído, decrepitude e ruínas, redenção e crítica. É nas profundezas dos rios, da cidade, dos céus, do amor, da perda, da dança da bailarina, do ser, que se pode perscrutar seus significados.
Foto: Relivaldo Pinho
Há 15 anos, quando escrevi meu primeiro livro, “Mito e modernidade na Trilogia Amazônica, de João de Jesus Paes Loureiro”, que venceria o Prêmio de melhor Dissertação do Núcleo de altos Estudos amazônicos (NAEA), Paes Loureiro já era um poeta reconhecido e já havia publicado sua tese, seu principal trabalho teórico. Mas ainda carecia de um livro que o analisasse. Fiquei e fico lisonjeado em poder tê-lo feito.
Hoje, essa honra é ainda maior. Especialmente por ver que sua obra é, cada vez mais, merecidamente, reconhecida em vários âmbitos e pelo poeta ainda continuar em plena atividade teórica e literária, sempre com o rigor que cabe aos altivos escritores.
Texto publicado em O liberal, 19 de outubro de 2018 e em Relivaldo Pinho
Uma das coisas que nos empurram para a imediatez de nossa vida ciberespacial contemporânea é a necessidade imperiosa de nossa atualização da vida em bytes. É preciso contar nossa história permanentemente; agora ela pode ser feita de todos os tipos de fatos. Um sorvete, torna-se um obelisco; uma planta, jardins suspensos. A timeline comporta de tudo e nós preenchemos nossas narrativas para fazermos parte de alguma história. Você já atualizou sua história hoje?
Em um texto inédito, escrevi sobre a interpretação do célebre ensaísta norte-americano Edmund Wilson (1895-1972) a respeito de sua singular e brilhante análise do espaço e, principalmente, do tempo no seu ensaio sobre a obra de Proust (O castelo de Axel: estudo sobre a literatura imaginativa de 1870 a 1930).
Wilson relaciona a metafísica de Bergson , o princípio da relatividade de Einstein à literatura simbolista e abre uma fenda interpretativa para pensarmos essas outras dimensões da memória, da narrativa e do tempo hoje. Calma. Parece um papo cabeça demais. Talvez seja. Mas não é instransponível.
O crítico retoma a ideia de que nossas observações são relativas porque dependem de nossa localização e de nossa velocidade de deslocamento ( é o famoso exemplo do trem e dos raios, de Einstein). Para a escrita simbolista a narrativa e a percepção dos personagens do mundo se dariam de modo semelhante; dependeriam de quem observa, de onde e em que situação se encontram.
No mundo proustiano ocorreria análoga percepção. O mundo que o personagem antes conhecera, mudara em espaço e tempo, “diverso e são tão irrecuperáveis quanto os momentos de tempo em que tiveram sua única existência”. A lição é: a história não se “recupera”; fatos e personagens adquirem um caráter único, de irrepetibilidade.
Como na relatividade e na duração (durée) de Bergson o não se repetir garante, de certo modo, sempre um caráter do novo, ou como aquilo que surge de modo único. O amor e os personagens em Proust tentam ser recuperados, mas a palavra correta talvez seja reencontrados, exatamente porque são únicos – como raios – e duram, irrepetíveis, como suas sensações.
Poderíamos dizer isso sobre nossas histórias que passam em nossas telas que descrevem uma paisagem que julgamos apolínea, ou um pedaço de pizza que se julga ser uma ambrosia? Ou a foto do cão, cujo nome é Cão; e do filho, cujo nome é Enzo?
Não se está fazendo uma comparação aristocrática do modo de uso dessas tecnologias – é sempre obrigado avisar isso aqui –, mas está se atentando para como nossas histórias, narrativas e memórias são, de certa forma, feitas em horas, minutos, segundos. Nossa narrativa “desce” em imagens e histórias. A timeline desenrola-se como nosso papiro do agora.
As histórias podem parecer sempre novidade, mas seu caráter do mesmo cai – um raio nunca cai, não dizemos? – quase sempre no mesmo lugar. Fatos e personagens, tempos e narrativas, memórias e lembranças podem surgir, clareando o agora.
Surgem iluminando-nos como a novidade que, em “efeito bumerangue”, se repetem. Como gifs que, no mesmo movimento, duram (durée às avessas) eternamente.
Existiriam alguns aspectos que, nessa órbita, do Eu que se quer história, narrativa, capazes de, nas fendas temporais nos conduzissem a percepções, talvez com menos “fantasia”, mas com o fantástico do que se reencontra, mas não se repete? Seríamos inescapáveis de atualizar nossas vidas em horas, nossas horas nas mesmas imagens, nossas imagens em durações de nós mesmos?
A novidade do fenômeno das mais novas tecnologias nos impede de dar respostas definitivas. Mas, ao mesmo tempo, sim, somos capazes ainda, contraditoriamente – acredito – de recontar histórias através de nossas próprias, elas ainda podem ser exemplares, elas ainda podem suscitar um personagem que pode surgir outro, uma cidade que (re)vemos, uma cena que permaneça, nem que seja por um tempo do agora, que ilumine, repentinamente, nossa percepção.
Talvez essa seja uma visão otimista demais para uma realidade que, de modo inédito, nos elege como Heródotos e, principalmente, Homeros de nós mesmos. Nesse declamar de algoritmos, o sistema pergunta: “no que você está pensando?” Ansiamos por responder. Então ele inquire: “você não atualiza sua história há horas”. Sentimo-nos fora da linha temporal.
Talvez, em nossos papiros cibernéticos, jamais seremos, como Ulisses no episódio do ciclope, capazes de dizer “meu nome é ninguém”.
Você já atualizou sua história hoje?
Texto publicado em O Liberal, 28 de dezembro 2017, p. 02. E em: Relivaldo Pinho
Uma coluna da Folha de São Paulo noticiou que o livro do paraense Edyr Augusto, Pssica (2015), virará filme, produzido pela O2 Filmes, de Fernando Meirelles. A realização ocorrerá, em Belém, em 2018. É uma grande notícia que traz, finalmente, para a “literatura da Amazônia” (a expressão é de Benedito Nunes) e brasileira, uma nova possibilidade de se voltar para essa escrita contemporaneamente regional e estilisticamente cosmopolita.
Seus romances foram traduzidos para o inglês e francês. Casa de caba, de 2004, foi editado em inglês como Hornet’s nest, pela Aflame books e em francês, com o título de Nid de vipères, pela Asphalte, 2015. Também publicados por essa editora foram Os Éguas (1998) e Moscow (2001), em um único volume (Belém et Moscow, 2015) e, neste ano, Pssica.
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Seu primeiro romance, Os Éguas, já demonstrava claramente a que linha essa literatura seguiria. A representação da região e, principalmente, da capital Belém do Pará é completamente diferente de um regionalismo unicamente edificante, entoado pelos mais variados discursos. Belém, através de um investigador de polícia, surge em toda sua decadência moral e material. É corrupta, violenta, aterrorizadora.
Esse livro completará 20 anos no ano feliz que virá, mas ele, que já representava a cidade em permanente queda, talvez não pudesse imaginar que vaticinava apenas uma parte da decadência que viria.
Seus demais romances, e o livro de contos Um sol para cada um (2008), seguem a mesma trajetória. É sempre o caráter pulsional, pusilânime e putrefato a dominar o indivíduo comum, socialites, “homens de família”, políticos, ladrões de beira de rio, jovens afortunados, policiais, jornalistas e traficantes.
Não tenha, por isso, caro leitor, receio de ler; é violento, mas não é – abram alguns jornais e liguem em alguns canais de Tv – abjeto. Mas, desse mundo cão, o escritor não mostra apenas o cadáver, mas a realidade, que ele descreve em decomposição.
Pssica é um exemplo desse estilo. As tramas do livro não procuram ser explicadas por nenhuma tese sociologizante, nenhuma análise psicologizante, ou por um manual literário. Talvez, por isso, sua literatura foi há muito tempo ignorada pela análise acadêmica. Seu primeiro romance, de quase duas décadas, só ganhou uma apreciação da academia em 2011.
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Mas isso, talvez, não queira dizer muita coisa. O presente costuma ser ignorado, quando nele apenas olhamos com os atrofiados olhos do passado – do passado de uma cidade, de uma região.
É na cidade que, em Pssica, a trama começa, com o rapto de Janalice, Jana. Ela é um dos personagens que atravessam a urbe e os rios como se, permanentemente, o barqueiro da morte, os conduzissem. Tráfico, prostituição, bandidos masoquistas, políticos pulhas e pessoas tentando se salvar.
É a região e suas águas, e não mais apenas Belém, que se tornam o cenário predominante desse livro. Essa violência no interior da Amazônia, e especialmente do Pará, em nada, como se sabe, é apenas uma ficção.
Nessa obra de Augusto, as paisagens (Belém, Marajó, Caiena) não parecem iguais somente pela decadência material que as ergue, mas pela semelhança espiritual de desolação desespero e decrepitude que a tudo, casas, moradores e forasteiros, habita.
Nessa escrita não-linear, de frases curtas, com gírias e termos regionais (algumas das principais características de seus romances), o tom detetivesco lembra os romances policiais e o estilo noir, elevando sua literatura – não apenas por isso – a um outro nível, mas, também, porque esse estilo retira parte da imagem ornamentada que estrangeiros e habitantes têm sobre o lugar.
Esqueçam o que leram e ouviram falar sobre a barbárie do interior regional, sobre piratas, ratos d’água e sobre turistas “perdidos”. É Pssicaa melhor representação, a melhor mímesis, dessa realidade.
O que os meios institucionalizados não descrevem, talvez caiba à literatura realizar. Os verdadeiros perdidos são os que nessas terras habitam, desterrados. É sobre eles, nessa obra, que parece pespegado um mal augúrio inescapável. Nesse mundo, as belas fotos, para quem é fotografado, nem sempre representam o paraíso.
Que a literatura de Augusto seja lida e vista. Mas lembremos que, na Amazônia, nas linhas do escritor paraense, como em Pssica, não há filtros que alterem a realidade.
Texto publicado em O Liberal, 07 de dezembro 2017, p. 02. E em: Relivaldo Pinho
Aeroporto Internacional de Miami. Fonte: dicasdaflorida.com.br
Em uma viagem de trem, passa-se pelo vilarejo europeu e dele sente-se mais o que dele já se imaginava, do que o “significado” do lugar. Em um restaurante, a parede simula uma vista noturna de Nova Iorque. Nas imediações de sua cidade, algum lugar, ou a imagem que dele se faz (talvez uma ilha com iguarias gastronômicas), pode ter um caráter, mesmo para você, de exotismo. A foto de capa de seu facebook é uma paisagem invernal com uma montanha coberta de neve, ou um radiante casal correndo por uma praia ao pôr do sol – lembram das imagens de caraoquê?
Poderíamos dizer, seguindo Marc Augé, que esses são não lugares (Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade). Ele se refere a novas formas de concebermos o espaço, o tempo e como nossa existência na supermodernidade estabelece mediações com esses locais.
Parece contraditório afirmar que pertencemos a não lugares, porque é exatamente a transitoriedade uma das características dessa hipermoderna condição. Transitoriamente nos situamos em lugares que parecem suspender nosso tradicional sentido de pertencimento; passamos por eles e eles passam por nós.
Imagem para capa de Facebook. Fonte: http://iaicurtiu.blogspot.com.br/
Diz Augé, são “espaços constituídos em relação a certos fins (transporte, trânsito, comércio, lazer) e a relação que os indivíduos mantêm com esses espaços [...], pois os não lugares medeiam todo um conjunto de relações consigo e com os outros que só dizem respeito indiretamente a seus fins, [...] os não lugares criam tensão solitária”.
O aeroporto, um exemplo do antropólogo, talvez seja o espaço mais perceptível dessa reconfiguração espaçotemporal. É nele que o indivíduo pode se situar, sem estar em “lugar nenhum”. É um local de passagem no qual, quase sempre, não se pode se identificar com uma história pessoal, uma história que diga respeito a você e ao outro. Ao mesmo tempo, é um espaço que pertence a todos os lugares simulacionais – aeroportos reproduzem certos padrões imagéticos – porque exibe uma série de imagens-mundo, de marcas reconhecíveis, de indicações padronizadas, de relações tecnológicas impessoais.
Identidade e história estão implicadas nessa conceituação, porque “um espaço no qual nem a identidade, nem a relação e nem a história sejam simbolizados será definido como um não lugar (non lieu), mas essa definição pode ser aplicada a um espaço empírico preciso ou à representação que os que lá se encontram fazem desse espaço” (Augé, Por uma antropologia dos mundos contemporâneos). O que pode significar uma variação de percepção, por exemplo, entre um “nativo” e um passante. O mesmo espaço pode adquirir sentidos de lugar para um e não lugar para outro.
Podemos também estender esse conceito voltando-o ainda mais para uma leitura imagética. Esse não lugar, então, não está mais diretamente ligado, para o sujeito, dentro de suas relações comuns, nas quais o espaço é constituído pelas ações, objetivos, artefatos, que situam e definem o indivíduo e seu grupo. As mediações que são realizadas nesses espaços marcam essa fugacidade, característica da modernidade que é exponencialmente aumentada em um mundo hipermoderno.
Os paradoxos que se estabelecem nessa condição, do excesso de tempo e de espaço, por exemplo, são também aspectos dessa relação. O tempo parece ser sempre um tempo no agora, que prescinde de alguma referência anterior e que nos persuade pelas imagens fugidias desses espaços, dessas sinalizações, dessas marcas, dos produtos e desejos que nele devem (precisam) se realizar.
O espaço parece comprimido por essa relação e pela “proximidade” de lugares, imagens e signos do mundo todo que, seguindo algum tipo de iconicidade padronizada, assentada em imaginários comunicacionais, ao mesmo tempo que provoca um não pertencer, sugere algum tipo de reconhecimento. Conhecemos, identificamos, imaginamos, os reluzentes arranha-céus de Xangai por isso.
Presentes perpétuos e não lugares. Não existe uma conotação inerentemente negativa nessas formas de percepção. Elas compõem nossa supermodernidade. Identificá-las é observá-las com algum “olhar estético”. Talvez esse seja um papel possível para uma crítica de nossa condição. Mas, passageiros do mundo e solitários, nem sempre podemos atravessá-la.
Passamos por ela e ela passa por nós, como paisagens do ciberespaço, como anúncios em aeroportos. Nem sempre temos tempo – com o excesso de tempo – de interrogar o sentido das coisas, e, por vezes, elas parecem sem sentido algum. Lembram das imagens de caraoquê?
Relivaldo Pinho é pesquisador e professor.
Texto publicado em O Liberal, 22 de novembro de 2017, p. 2. E em: Relivaldo Pinho
O panorama era um aparato no qual as pessoas olhavam, através de orifícios, imagens que eram projetadas em uma rotunda. Surgiu no final do Século 18 e, após seu advento, vários outros equipamentos se seguiram que tinham por função “iludir” os olhos (trompe-l’oeil) e exibir a fantasia das imagens.
Na técnica do panorama, as imagens eram apresentadas em sequência e com efeitos visuais que encantavam os espectadores. Esse mecanismo, de vários modos, já prenunciava a instauração de novas formas de exibição e percepção que seriam, em meios como o cinema, elementos constitutivos da imagética contemporânea.
A experiência contemporânea ampliou essa sensação. Não apenas pelo caráter onipresente de suas aparições, mas porque essas aparições tomariam, cada vez mais, o aspecto de uma sequencialidade ininterrupta nas ruas das grandes cidades e nas imagens dos produtos televisivos.
A publicidade, o jornalismo e a ficção assumiriam não somente uma relação com a vida, mas modificariam o modo da percepção daquilo que vemos, porque sempre haveria, nesse perceber, um elemento de continuidade que nem sempre permitiria o espaço para a interrupção.
A programação televisiva, que corre durante um dia todo, é o exemplo mais conhecido desse processo. Os seriados, as telenovelas, por exemplo, que se realizam em sequências, e o jornalismo, com a exibição do “mundo em um minuto”, são alguns dos modelos dessas técnicas de exibição que nos dão um sentido permanente de continuidade e infinitude.
Já estamos longe de considerar, hoje, esse processo, tão empiricamente conhecido por todos, apenas como um mecanismo manipulador e, nós, como meros receptores mecanicamente condicionados. Não se pode unicamente dizer que o aparato imagético sobre nós sempre, incontrolavelmente, precipita-se, e que o espectador é somente um receptáculo cumulativo de mensagens.
Mas o que dizermos, sobre algumas dessas características, nos mais recentes meios comunicacionais? Abre-se o canal de vídeos na internet e, ao assistirmos à imagem desejada, segue-se, se não se desativar a exibição contínua, outra. O sistema “crê”, pelos seus cálculos algorítmicos, que aquela imagem mantém alguma relação de continuidade com a anterior.
Assiste-se a um filme ou série na Netflix e o autômato aparato, como em um panorama atual, inicia, em alguns segundos – tempo de darmos uma olhada em uma mensagem no celular –, a tela seguinte. A rotunda, agora, exibe as imagens circularmente, é feita de bytes e, em alta definição, ainda procura “iludir” os olhos.
Dependendo das escolhas, outra interrupção do processo se dá por inserções comerciais que, quase sempre, provocam certo descontentamento. É preciso considerar que, de certa forma, a percepção contemporânea mantém uma paradoxal relação com esse paradoxo do tempo ininterrupto.
A interrupção que descontenta, também ocorre porque, de certo modo, ela interrompe não apenas o prazer, mas porque o prazer funciona pelo hábito da imagem contínua, por uma familiaridade perceptiva, pelo modo como ambas se apresentam, se realizam.
É paradoxal, também, porque a saturação das imagens do cotidiano gera incômodo, mas esse desconforto, isoladamente, nem sempre é capaz de substituir essa familiaridade, essa quase incontrolável saciedade.
Esse fluxo contínuo de imagens convida “o espectador a fazer o impossível. Ou seja, ver todas as telas ao mesmo tempo, em sua diferença aleatória e radical” (F. Jameson, Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio). São sequências persuasivas e, em play contínuo, conquistadoras. Não se pode ignorar a fantasia desse convite. Mas ele não precisa ser tomado como único.
Na conhecida sequência final de Os incompreendidos (Truffaut, 1959), Antoine Doinel, o indomável protagonista do filme, corre pela praia, com uma melancólica música ao fundo. Repentinamente, ele para e se volta em direção à câmera que faz um zoom e, em close, congela seu rosto. A sequência imagética é interrompida e sentimos toda a dramaticidade da vida do menino, seu olhar perdido, assustado e angustiado.
Essa fixação da imagem suspende nossa continuidade perceptiva e nos recoloca, como em uma outra rotunda cíclica, diante de uma nova abertura para o tempo, para a percepção. Aquele final não é um fim. Vemos a narrativa se voltar para nós, nos dizer algo, e cristalizamos, em toda sua significação, uma história, uma imagem.
Publicado em O Liberal, 09 de novembro 2017, p. 02. E em: Relivaldo Pinho
Cena do Jantar, Don Giovanni (Homero Velho). Fonte: SECULT-PA
A primeira experiência arrebatadora ao se assistir à Don Giovanni é a exposição temática introduzida por Mozart que nos anuncia a vida romântica, intensa e trágica do conquistador. A sensação é de que entraremos em um mundo não apenas fantasioso, de máscaras e capas, mas em uma espiral que, incessante e inevitavelmente, empurra o destino e a vida.
Na apresentação realizada no XVI Festival de Ópera do Theatro da Paz, esse mergulho vertiginoso, aliado especialmente à atuação memorável dos cantores, novamente se apresenta em toda sua dramaticidade. O que dá essa sensação pulsante a essa obra, encenada há 230 anos, ainda hoje?
Em grande parte, é justamente sua qualidade estética. É a música de Mozart marcando e acentuando o drama; tornando-o jocoso quando assim deve ser na personalidade de Leporello (em Belém, na interpretação e no canto contagiantes de Silverio De La O). Mas é também na temática que se relaciona com alguns dos nossos mais caros sentimentos e com as formas pelas quais eles se nos conduzem (empurram).
Bernard Shaw, o dramaturgo irlandês, escreveria em seu prefácio para sua peça Homem e super-homem (1903) que “filosoficamente, Don Juan [o arquétipo de Don Giovanni] é um homem que, embora suficientemente bem-dotado para saber distinguir com excepcional clareza entre o bem e o mal, segue seus próprios instintos sem nenhuma consideração pelas leis costumeiras, estatutárias ou canônicas. E assim, ao mesmo tempo em que ganha a ardente simpatia dos nossos instintos rebeldes (que se envaidecem com o brilho com que Don Juan os conjuga), coloca-se em conflito mortal com as instituições existente e defende-se à custa de fraudes e do uso da força, da mesma maneira inescrupulosa com que um fazendeiro defende suas plantações contra as pragas”.
Inalienável da temática da sedução, o destino cavalga em/com Don Giovanni (Homero Velho, em exemplar atuação no da Paz) e impele à conquista e, principalmente, à conquista de si. Estamos na constelação psicanalítica da sedução, segundo interpretação de Renato Mezan (A sombra de Don Juan e outros ensaios) a respeito do galanteador e de sua idealização narcísica. “O aspecto mais crucial da sedução, segundo Laplanche, é que ela veicula significações inconscientes para o próprio sedutor, significações estas que vão impor ao seduzido um trabalho de simbolização e repressão. Ora, não é o que ocorre com Don Juan, que acredita amar as mulheres, quando na verdade ama apenas a si mesmo?”.
Donna Elvira (Kézia Andrade) e Leporello (Silverio De La O). Fonte: SECULT-PA
Donna Elvira faz o par ideal para os excessos e as faltas que compartilha com e para seu amado. Ficamos com a impressão, na ária em que ela se pune por amá-lo tanto (no canto comovente, que ainda hoje a melodia ecoa, da soprano Kézia Andrade), que aquilo, de algum modo, nos atravessa. Ela, como seu amante, está condenada a esse destino indomável. Luta contra ele, mas ela é como Don Juan, que mergulha em sua angústia, em “seu ritmo dionisíaco infernal” e isso é “tanto uma corrida ‘para’ quanto uma fuga ‘de’”. Tanto um mergulho para o deleite que exalta as mulheres e o bom vinho, quanto um artifício para sua incontrolável incompletude (libido).
É o mesmo páthos que impulsiona o conquistador a atacar e se defender, inescrupulosamente, dessas “pragas”; é o que gera em nós a empatia juvenil da rebeldia que cria sua própria ruína.
Mas nós, durante o espetáculo, também ficamos encantados com essa crisálida que no humano habita. Repudiamos e torcemos pelo libertino. Parece quase – e esse quase é decisivo para a fruição – inacreditável seu ataque à “boa” Zerlina (Dhuly Contente) e sua dissimulação para com o valoroso Masetto (Idaías Souto). Mas sua fantasia é tão bem construída que, na cena em que ele lhe faz juras de amor (“Là ci darem la mano!” – “Lá nos daremos as mãos!”), de repente, esquecemos tratar-se de mais uma ilusão, e olhamos nos olhos dele e ele, realmente, parece acreditar no que diz. E, de fato, em certo sentido, acredita. O que para nós pode parecer uma ilusão, para ele é, sempre, necessariamente, fantasia.
Talvez por isso ele, ao final, enfune o peito, encarando a morte, ao desafiar a estátua do Commendatore (Anderson Barbosa). A estátua instila nele uma dor tão grande que ele parece, pela primeira vez, ter visto algo “incontestavelmente” como realmente é. Ao apertar a mão gélida e se negar a mudar de vida, sua fantasmática prova de realidade é incapaz de modificá-lo. Ele grita: não! Negando-se, ele desce ao inferno, desaparecendo. Abrindo nossos olhos e fechando nossa cortina.
Relivaldo Pinho é pesquisador e professor.
Texto publicado em O Liberal, 20 de setembro de 2017, p. 2.
Com um crescente som orquestrado surge um nome: Metropolis. Ele se mistura com a imagem que vai aparecendo da cidade-Babel e, em seguida, várias engrenagens fundindo-se em imagens. O som é rápido, angustiante, temeroso, como se as máquinas estivessem a nos perseguir. Surge o relógio impiedosamente girando seu ponteiro, aparecem novamente as engrenagens e o apito da fábrica soa anunciando a troca de turno.
Essa é a clássica abertura do nonagenário filme Metropolis (1927), de Fritz Lang, uma das mais importantes obras que se relacionam ao Expressionismo alemão. Importante por vários motivos conhecidos, por pertencer a esse movimento, pelo seu contexto histórico e social (a Alemanha pós-guerra, o desemprego e a inflação), por sua inovação técnica e dramática e por ser uma narrativa real e distópica, profética e consumada.
Esses elementos sempre são evocados para se falar do expressionismo e de Metropolis, o filme que mostra uma cidade futurista dividida entre os que moram confortavelmente na superfície em gigantescos prédios e aqueles que trabalham e vivem no subterrâneo, trabalhadores eternizados na sequência síntese na qual eles andam mecanicamente ao entrar e sair da fábrica.
“Os expressionistas não tinham por objetivo representar a realidade concreta. Interessavam-se mais pelas emoções e reações subjetivas que objetos e eventos suscitavam no artista e que ele tratava de ‘expressar’ por meio do amplo uso da distorção, da exageração e do simbolismo”, diz Luiz Carlos Merten em “Cinema: entre a realidade e o artifício”.
Com todas essas características, não por acaso, o movimento ficaria conhecido como um aviso, ou uma premonição, do que se seguiria na Alemanha, posteriormente, com o Nazismo.
Na edição do filme lançada em 2010, já restaurada com o acréscimo de 30 minutos, há uma cena na qual, dentro de uma casa, elevadores sobem e descem, como cápsulas, e nos quais o habitante deve entrar para seguir o seu destino.
É uma cena aparentemente simples, mas ela pode muito bem ser pensada como um fragmento de uma sociedade na qual o indivíduo é parte de um sistema mecanizado que o condiciona como elemento orgânico, substituível, da cidade.
Em uma pequena nota de rodapé, Deleuze (1925-1995), em A imagem-tempo, faria alusão a essa relação entre massa e indivíduo nas formas estéticas, como teatro, cinema e ópera.
Diz Deleuze: “O teatro e a ópera se deparavam com o seguinte problema: como evitar reduzir a multidão a uma massa compacta e anônima, mas também a um conjunto de átomos individuais? Piscator, no teatro, impunha às multidões um tratamento arquitetural e geométrico que o cinema expressionista, e Fritz Lang, em especial, também adotará: é o caso das organizações retangulares, triangulares ou piramidais de ‘Metropolis’, só que é uma multidão de escravos”.
Não, não podemos ver unicamente essa relação como uma arquitetura maniqueísta, lembrando Freder (par de Maria) que vê Moloc, o deus, monstro-máquina, a devorar as pessoas. Mas, caminhando para o final do filme, desponta a cena na qual Freder alucinado vê a morte, o ceifeiro, a carregar a foice em sua direção. As plaquetas anunciam: “A morte desce sobre a cidade”.
A cidade então parece caminhar, inevitavelmente para o apocalipse, para o caos. Como aquela Metropolis tão sistematicamente organizada, arquitetonicamente erigida, sucumbe, justamente às maquinas que lhes construíram e aos homens que lhes sustêm, é o cerne dessa narrativa.
Não se trata de ver, hoje, uma luta, recorrente no cinema, entre homem e máquina. Mas trata-se de observar como a cidade surge como templo, em adoração e castigo. Continuamos a erguer uma maquinaria da qual nos glorificamos e com a qual nos sentimos, cada vez mais, impotentes e, antiteticamente, dominadores.
As cidades não são mais unicamente separadas entre espaços que não se relacionam, mas isso não diminuiu o caótico sentimento de que delas não pertencemos inteiramente. De que nosso mecânico caminhar, como autômatos a olhar para máquinas que agora portamos, permanece contido em uma ideia de que sempre, a cada passo, contraditoriamente, podemos nos libertar.
Isso também é um tipo de alucinação/fascinação na grande metrópole, mas colocamos uma película, uma tela, entre a urbe e nós e, resignados, como no final do filme – repudiado por Lang –, podemos até nos dar as mãos e seguir.
Relivaldo Pinho é pesquisador e professor.
Texto publicado em O Liberal, 05 de setembro de 2017, p. 2.
Na primeira sequência de O mensageiro trapalhão (1960), um homem meio canastrão, que se diz produtor executivo da Paramount, diz: “antes de lhes mostrar este filme eu gostaria de explicar uma coisa. O filme que estão prestes a assistir não é um filme normal, como os que o público se acostumou a ver nos cinemas”. Ele explica que decidiram fazer um filme divertido, que “não tem história, nem enredo, um filme que “mostra algumas semanas na vida de um verdadeiro louco”.
Jerry Lewis pertenceu a uma época, as décadas de 1950-60, memorável para o show business, conseguiu fazer muitos filmes – alguns realmente tão “tolos”, porque a proposta era o entretenimento –, contracenar com artistas célebres e formou uma das maiores duplas do cinema com Dean Martin (Martin – o homem dueto –; ele formaria outra dupla célebre com Sinatra).
Dean sempre sendo ele mesmo, conquistador, romântico e valente, e, Lewis, o seu Hyde, sendo medroso, fraco, pouco hábil com as mulheres, com a casa, com as pessoas, o motivo que o leva a criar o seu oposto, O professor aloprado, de 1963. Mas, nessa proposital desassociação, estava um dos elementos que o definiam, se aproximando daquilo que constituía a razão e o gênio em Chaplin.
Truffaut, no prefácio do livro Charles Chaplin (2000), relembra essa característica ressaltada por André Bazin. “Quando Bazin explica que Carlitos não é antissocial, mas associal, e que aspira ingressar na sociedade, define, quase nos mesmo termos que Leo Kanner, a diferença entre o esquizofrênico e a criança autista: ‘Enquanto o esquizofrênico tenta resolver seu problema abandonando um mundo do qual fazia parte, nossas crianças chegam progressivamente ao compromisso que consiste em tatear com prudência um mundo do qual estavam alheias desde o início’”.
Essas características em Chaplin e Lewis não são apenas afinidades eletivas. Em Carlitos ela é certamente vital, e, em Lewis, ela é uma dominante. Lembremos da cena inesquecível de O meninão (1955), na qual ele “finge” ser um barbeiro, quando ele submete Dean Martin às mais desastradas situações sentado na cadeira da barbearia. A cadeira é aí um instrumento que deveria servir de auxílio (medium), mas ela, após o barbeiro louco, pode ser qualquer coisa, virar para trás quase derrubando seu ocupante, chacoalhar com ele, ou elevar-se, repentinamente, até o teto. Lewis finge ser alguém, porque, imagina-se poder, tateando, atabalhoadamente, se encaixar, funcionar normalmente.
Truffaut retoma a argumentação juntando agora uma observação de Bruno Bettelheim, de A fortaleza vazia (1967): “a criança autista tem menos medo das coisas e talvez atue sobre elas, já que os personagens, e não as coisas, parecem ameaçar sua existência. No entanto, o uso que faz das coisas não é aquele para o qual elas foram concebidas”.
E, em seguida, cita o próprio Bazin: “parece que os objetos só aceitam ajudar Carlitos à margem do sentido que a sociedade lhes atribuiu. O mais belo exemplo desses descompassos é a famosa dança dos pãezinhos, em que a cumplicidade do objeto explode numa coreografia gratuita”.
Em O rei do laço (1956), em uma cena clássica, Dean Martin (Slim Mosely Jr.) está na sala contando uma heroica história e, ao lado, escondido, Lewis (Wade Kingsley Jr.) escuta. A cada ato narrado, Lewis encena, imitando a história jocosamente. Em Bancando a ama seca (1958), quando Lewis (Clayton), em uma única sequência, tenta arrumar a antena no telhado, acaba pendurado, tenta controlar uma mangueira desgovernada e quase destrói a vizinhança.
Lewis, a quem chamávamos “o doido” quando seus filmes passavam à tarde, nós ansiosos espectadores, consegue, muito mais que Chaplin, a cumplicidade dos objetos, do mundo. Seus personagens exerciam exatamente esse tipo de desajustamento quase infantil, que quer, primariamente, imitar, desbravar o mundo e domar as coisas, mesmo de forma vacilante e, por vezes, subvertendo os objetos (instrumentos), invertendo a sua razão.
Um verdadeiro louco. A normalidade, nesse mundo fílmico, está alheia à realidade dos filmes de Jerry Lewis. Sua loucura é aquela que nega uma vida moldada em perfeição e, em sua confusa subversão, prefere zombar do sentido das coisas, porque, em sua fantasia, ele, defendendo-se, escarnece das coisas, do seu pretenso e harmonioso significado.
Relivaldo Pinho é pesquisador e professor.
Texto publicado em O Liberal, 22 de agosto de 2017, p. 2.