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Terça-feira, 22/3/2016
Flávio Sanso
Flávio Sanso
 
Streets of Philadelphia

Ela chega em casa e flagra a si mesma repetindo os mesmos gestos de sempre, é como se fosse um dia só, que se repete, se repete, o mesmo cansaço, o mesmo desânimo, as mesmas chaves atiradas sobre a mesa de vidro, é o mesmo barulho escandaloso, não encontra sentido, não enxerga saídas, mas ligar o rádio pode ser uma boa ideia, quando ouve música costuma se sentir um pouco melhor, músicas da rádio FM porque aí são músicas aleatórias, entre uma música e outra um fino lapso de expectativa, é o máximo de esperança que consegue ter, logo essa música, não, essa música não, ela é triste, hoje era a última música que ela queria ouvir, foi a trilha sonora de um filme em que o Tom Hanks, novinho, magrinho, morreu de AIDS, ela pensa, há pessoas sofrendo de AIDS, de câncer, de febre amarela e eu aqui com a minha falta de ânimo, é o tipo de comparação que não funciona, não funciona sentir-se culpada, ela ainda está mal, talvez pior, estava triste e agora está com a consciência em xeque, ela corre até o celular e o desliga, não aguenta mais a sensação idiota de esperar a vibração da mensagem que nunca chega, a vibração da ligação que há uma semana não irrompe e não a faz correr para atender, alô, tudo bem? Como foi o dia? O teclado dessa música é tão melancólico, soa tão depressivo, ela ainda não desligou o rádio porque ainda precisa se sentir corajosa de enfrentar a merda de uma música triste, o telefone fixo toca, ela lamenta ter se esquecido de deixar fora do gancho, e se não for quem ela quer que seja, e se for quem ela quer que seja, ela se pergunta se deve atender, hesita, atende, não atende, avança, recua, e se o telefone nunca mais tocar, já tocou demais, está prestes a parar de tocar, ela atende, um engano.



Texto originalmente publicado no site reticencia.com
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Postado por Flávio Sanso
22/3/2016 à 00h45

 
O uniforme do herói

Descer a escada rolante do shopping é tarefa das menos marcantes. Ninguém, quando entregar a cabeça ao travesseiro e conferir o saldo do dia, terá lembrança do exato instante em que descia a escada rolante de um shopping. A não ser que lá embaixo desponte o zelador tomado pela agitação de quem enfrenta a urgência. Num gesto rápido, lança mão da habilidade de perito e aciona o mecanismo que imediatamente para a subida dos degraus. Só depois percebo que ao meu lado, na escada de subida, dois idosos estão caídos. Como terá sido isso? Uma senhora tem o corpo enviesado entre os degraus, um senhor está logo atrás. Impressiona que os dois mantenham tanta calma. Não se debatem, não gritam por socorro, estão deitados com olhares direcionados para cima como se descansassem numa cama. O bombeiro, a moça da loja de doces, o rapaz da perna tatuada, logo se amontoa muita gente ao redor dos dois. Durante o resgate, ambos permanecem serenos embora haja dificuldade de se porem novamente em pé. Ali está a comovente resignação que só vem com o tempo.

Já aos pés da escada e ainda estranhando ter presenciado tamanha eficiência, chego perto do zelador e lhe digo que sem ele tudo seria pior. Sem abandonar a modéstia, ele diz que as serras no topo da escada rolante poderiam ter ferido gravemente os dois idosos. Reparo no uniforme que exibe o emblema do shopping e me despeço dando-lhe parabéns, ao que o zelador agradece encabulado. Mais à frente me deparo com o cartaz do cinema. Dois super-heróis estão vestidos com capas, roupas coloridas e máscaras. De imediato o que me vem ao pensamento é que nossos heróis, heróis de verdade, usam uniformes discretos.



Texto originalmente publicado no site reticencia.com
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Postado por Flávio Sanso
4/1/2016 às 17h09

 
Assessoria de natal

Distraída com a tela do celular, a assessora do papai Noel negligencia a fila já bem comprida. Ele próprio, o assessorado papai Noel é quem devia repreendê-la, mas se mantém indiferente, está prostrado na poltrona vermelha, onde também se entretém com o celular. Um choro agudo faz a assessora do papai Noel despertar do sonho tecnológico, ela guarda o celular e se põe a enfrentar o batente, pega pela mão a criança birrenta e a leva até o colo do papai Noel, que imediatamente encontra abrigo para o celular. Papai Noel arrisca algumas frases clichês, foi bonzinho durante o ano?, o que vai querer ganhar de presente?, mas nada acalma o choro da criança. A mãe, sem mais argumentos, sem mais paciência, sem mais tempo, contenta-se em retratar o filho com careta de menino chorão. Aliás, na fila, muitas crianças protestam por meio do único recurso de indignação que lhes cabe. É até compreensível, choram por não querer proximidade com a criatura extravagante que esconde a cara por trás de tufos de algodão. Aí está só o início das incompreensões e desentendimentos entre pais e filhos que durarão pela vida afora.

A assessora do papai Noel dedica novamente atenção exclusiva ao celular. A maquiagem exagerada não disfarça a idade de quem ainda nem chegou à adolescência. Sua fantasia formada por gorro, luvas, meias longas transmite incômodo pela sensação de que deve provocar um calor dos infernos. Se bem que o ar condicionado do shopping traz algum alívio, ao que parece tenta simular a temperatura de onde veio o nosso papai Noel. Ao olhar para o lado, uma expressão de enfado. A fila não para de crescer.

Fim do dia, em meio a pessoas carregando bolsas de compras, a garota sai do shopping ainda fantasiada. Não fosse tempo de natal, a cena soaria estranha. Enfim, contexto é tudo. De repente, acelera o passo, o que a espera não são renas nem trenó, entra no ônibus e por sorte consegue lugar junto à janela. Mal se senta e já está conferindo as novidades na tela do celular. Aquele ônibus, cheio e barulhento, não tem ar condicionado.



Texto originalmente publicado no site reticencia.com
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Postado por Flávio Sanso
1/1/2016 à 01h11

 
A cada um a imortalidade de seu tempo

Observo o quadro que exibe a fotografia em preto e branco de uma cena congelada desde o início do século passado. 1910, mais precisamente. Há muitas pessoas na Avenida Central, hoje Avenida Rio Branco, centro do Rio de Janeiro. Vestem as roupas da época e olham curiosas na direção de quem lhes aponta a então moderna máquina de fotografar. A constatação é óbvia: todas as pessoas retratadas na fotografia já morreram. Outra constatação: absolutamente nada se pode saber dessas pessoas. Do mesmo modo, na cena atual de uma cidade movimentada qualquer, as pessoas que transitam agitadas pra lá e pra cá daqui a cem anos obviamente não existirão mais. E, a não ser que sejam cientistas que descobriram a cura de alguma doença, ou artistas geniais, ou modelo do artista genial (tal Monalisa), ou generais vitoriosos em guerra, ou membros da academia de letras, todos estarão desaparecidos da história para todo e sempre. É assim, milhares e milhares de pessoas passaram e passarão por este mundo e nada se pode nem poderá saber delas. Mas, claro, é caso de se admitir divergências, e nesse aspecto duas obras cumprem o papel de apresentar outras perspectivas sobre o assunto.

Agora traduzido no Brasil, o livro "Stoner", do norte-americano John Williams, acompanha toda a trajetória de William Stoner, que, nascido no campo, transfere-se para a cidade grande, cursa a universidade, torna-se professor, sofre pela morte dos pais, casa-se, tem uma filha, separa-se, aposenta-se e ... morre. O mérito do livro é ter extraído emoção do relato de uma vida comum, é ter iluminado o protagonismo de um homem afastado de qualquer proeminência. É como se o livro pudesse ter retratado a minha vida, a sua vida, a vida de um bancário, de um lojista, de um caminhoneiro.

E é de um caminhoneiro que trata o documentário "Um homem comum", de Carlos Nader. A vida de Nilson de Paula é acompanhada por cerca de vinte anos, período em que são examinadas as ocorrências ordinárias do convívio familiar, tais como a dor do luto e a relação conflituosa entre pai e filha. Também aqui, a obra artística joga luz sobre uma vida que se confunde com tantas vidas ao redor e que certamente passaria despercebida não fosse os holofotes das câmeras. Nilson de Paula, o homem comum, é, antes de tudo, dono de uma vida especial.

Enfim, as duas obras querem dizer que a vida de qualquer um daria um livro ou daria um filme. As duas obras demonstram que, usando uma adaptação torta de Vinícius de Moraes, cada um é imortal a seu tempo.



Texto originalmente publicado no site reticencia.com

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Postado por Flávio Sanso
2/10/2015 à 01h48

 
O próximo do Woody Allen

No caderno dele conferiu a anotação de que já havia assistido a trinta e um filmes com ela. Percorreu a lista do whatsapp e resolveu puxar assunto, viu que fazia uma hora e quatro minutos que ela estivera on line. Não, achou melhor ligar, certos hábitos precisam ser retomados.

―... Trinta e um? Mas espera, na última vez você não disse que eram tinta?

―Sim, me esqueci de contar aquele documentário das abelhas, documentário também conta.

Depois de alguns segundos de silêncio, ele retoma:

―Faz tempo que não vamos ao cinema. Nesse período já passaram três do Woody Allen.

―Caramba, isso tudo? Se bem que Woody Allen faz um filme a cada mês ― ela dizia isso aos sorrisos.

―Verdade, mas o caso é que tenho tido mais contato com a Emma Stone do que com você.

Os dois sorriram, mas depois o que sobrou foi um silêncio de desconforto.

―... Tudo por causa daquele filme francês, ele disse.

―Já conversamos sobre isso. Acho que ficou tudo resolvido, não foi?

―Bem, quem sabe não assistimos juntos ao próximo do Woody Allen.

Ela desconversou, falou sobre projetos, viagens, livros, coisas nas quais ele prestava atenção de modo esparso.

Depois que desligou o celular, ele sabia que nunca mais assistiria a um filme com ela.

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Postado por Flávio Sanso
20/9/2015 às 19h55

 
Quando Regina Casé volta?

Notas sobre o cinema brasileiro: quero que nossos filmes tenham variedade para muito mais do que a intensificação das comédias fáceis, sinto pontinhas de inveja em relação à produção cinematográfica dos hermanos argentinos, comemoro quando me vejo surpreendido com um filme brasileiro sobre o qual não tinha grandes expectativas. Tudo isso significa que torço do fundo do coração para que o cinema nacional deslanche de uma vez por todas.

Mais especialmente quanto a um filme que me tenha feito comemorar, "Que horas ela volta?", de Anna Muylaert, é uma daquelas obras artísticas que nos fazem passar a semana inteira refletindo sobre sua mensagem, e que mensagem!

Val mora no quartinho dos fundos da mansão em que trabalha como empregada doméstica, mantendo com seus patrões relação de verdadeira vassalagem. Descontada a diferença de cento e poucos anos, é como se Val fosse a aia da família, nisso incluindo a condição de ter substituído as funções da patroa na criação do rebento da casa. Nem sequer um copo d´água, Zé Carlos, o patrão em crise existencial, é capaz de tomar sem que tenha sido servido por Val. E aí está o ponto sensível do filme. A telona nos convida a verificar no que se tornou o país em cuja maior parte da existência adotou a escravidão como força produtiva. Sim, é uma cicatriz que não se cura de uma hora para outra, é um prejuízo social e moral difícil de contornar. A escravidão nos deixou como herança o costume do servilismo. Não à toa ainda há quem faça cara feia para a regulamentação dos direitos da profissão de empregada doméstica, não à toa persiste a invisibilidade atribuída a certo tipo de trabalhadores, não à toa nossos governantes se encastelam em palácios, entupindo-se de regalias que os mantenham em seus pedestais de gente diferenciada.

Há alguma perspectiva de evolução para uma sociedade tão problemática? Quem nos traz a resposta é Jéssica, o elemento modificador da trama. Jéssica é filha de Val com quem não convive há muito tempo. Para prestar o vestibular, hospeda-se no quartinho dos fundos da mansão, passando a questionar a relação de intensa subserviência suportada pela mãe. Emblemática é a cena em que se depara com o quarto de hóspedes amplo, decorado e ocioso. O que lhe vem à mente é instantâneo: se há na casa um quarto confortável e ocioso, por que ela e sua mãe não estão ali em vez de estarem alojadas no quartinho apertado dos fundos? Contudo, para Val, essa é uma hipótese que nunca lhe poderia ter ocorrido, considerando a ideia consolidada de sua inflexível submissão. O fato é que Jéssica é de um tempo em que quartinhos de empregada começam a não fazer mais sentido, assim como não faz mais sentido qualquer relação servil. Se quisermos chegar ao patamar de países que já alcançaram equilíbrio social, é fundamental, primeiro, admitirmos o tanto que ainda temos, sim, de espólio dos tempos escravocratas. O olhar questionador de Jéssica é o mesmo olhar que o filme pretende que o espectador tenha.

A atuação de Regina Casé como a empregada doméstica Val merece parágrafo à parte. É um personagem difícil, a começar pelo sotaque que ao menor descuido pode resvalar na caricatura típica das novelas. Mas tamanha entrega e tanto capricho fazem Regina Casé superar esse detalhe. É uma atriz que se desloca brilhantemente entre nuances de humor e drama. Desde o filme "Eu, Tu e Eles" não se tinha a oportunidade de apreciar um papel que lhe exijisse o melhor de sua atuação. Regina Casé é imprescindível ao cinema, impondo-se perguntar: quando ela volta?

Pois então ainda dá tempo de assistir ao belo filme de Anna Muylaert. Corra, vá antes que o próximo super-herói tome de assalto todas as nossas salas.



Texto originalmente publicado no site reticencia.com

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Postado por Flávio Sanso
11/9/2015 às 11h35

 
Que Castro Alves nos ajude a ter palavras

Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus, Se eu deliro... ou se é verdade, tanto horror perante os céus!? Ó mar, por que não apagas co'a esponja de tuas vagas, do teu manto este borrão?

Nosso baiano Castro Alves assim se referia aos navios negreiros, a tragédia que vinha pelos mares. Depois de tanto tempo, são versos que cabem como luva para mais uma tragédia vinda do mar. Lá está o pequeno menino sírio, deitado, recém-trazido pelas ondas. Após conduzi-lo até a firmeza da terra, é como se o mar quisesse dizer "vejam só o que vocês fizeram."

A humanidade produz mais uma cena daquelas que para todo e sempre nos servirá de assombração. É o caso de se lembrar de outros retratos cruéis. A menina vietnamita que corre queimada e assustada, ou o menino africano, sem forças, esquálido, observado por urubus oportunistas. E agora mais uma fotografia-ícone: Aylan Kurdi, vestido em suas encharcadas roupinhas de garoto, jaz com o rostinho enterrado na areia úmida. Todas essas fotos têm como mesmo componente o sacrifício de crianças. São elas as porta-vozes do tanto de miséria que ainda há em nós.

Que Castro Alves nos ajude a ter palavras: Fatalidade atroz que a mente esmaga! Extingue nesta hora o bringue imundo, Mas é infâmia demais!... Da etérea plaga levantai-vos, heróis do Novo Mundo!


Texto originalmente publicado no site reticencia.com

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Postado por Flávio Sanso
4/9/2015 às 11h19

 
A impaciência dos pacientes

Há dois tipos de médicos: os que se atrasam porque estão cuidando de pessoas mais doentes que você, e os que se atrasam porque são semideuses. Doutor Nazaré pertence à segunda categoria. Sente prazer exultante quando adentra a antessala do consultório e se depara com o abarrotar de pacientes impacientes.

Foi assim durante toda sua vida clínica até o dia em que, surpresa!, não havia sequer um único paciente à sua espera. Dona Leocádia, onde estão todos os pacientes? Não sei Doutor, não apareceram, não remarcaram. A partir de então os dias correram sem haver pacientes que o Doutor Nazaré pudesse atender. Será que ninguém mais se adoenta nesta cidade?, resmungava o médico.

Agora sempre ao entrar no consultório, só o que há pela frente é a visão de uma ociosa Dona Leocádia. Passado um mês, Doutor Nazaré enfim parece ter encontrado uma solução: Dona Leocádia, precisei rever meus conceitos. Tome nota aí. Vamos trocar os sofás por outros mais confortáveis, contratar serviço de TV a cabo, inaugurar música ambiente, trocar a qualidade das revistas. Ah, claro, veja como instalar também o wifi. Os pacientes haverão de voltar aos montes. Dona Leocádia olhou o relógio. Naquele dia, Doutor Nazaré havia chegado duas horas após o horário em que normalmente se iniciavam as consultas. Enquanto anotava a lista de providências, Dona Leocádia planejava como procurar outro emprego.


Texto originalmente publicado no site reticencia.com

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Postado por Flávio Sanso
28/8/2015 às 12h53

 
Os olhos de Sancha

Em acréscimo ao muito do que já se discutiu sobre a verve psico-enigmática presente em Dom Casmurro, ouso expor minha percepção, a qual é possível que alguém já tenha abordado, com melhores credencial e técnica. Seja como for desculpo-me antecipadamente caso não me faça original.

Controlado pela genialidade machadiana, Bentinho, um dos mais intrigantes narradores da nossa literatura, captura e depois direciona a atenção do leitor para o que parece ser apenas o relato objetivo das memórias da sua vida. No entanto, lá pelos três quartos do livro instaura-se uma mudança que sacode toda a estrutura narrativa até então vigente. E é o próprio narrador que anuncia a tal mudança:

"Tudo acaba, leitor; é um velho truísmo, a que se pode acrescentar que nem tudo o que dura dura muito tempo."

Nesse aspecto, há uma cena que funciona como o divisor de águas da trama: Bentinho/Capitu e Escobar/Sancha - os casais inseparáveis - estão reunidos em mais um de seus corriqueiros encontros. Escobar aproxima-se de Bentinho e lhe promete anunciar, no dia seguinte, um projeto para os quatro. Logo em seguida é a vez de Sancha se aproximar de Bentinho. Pedindo segredo, ela lhe confidencia o que seu marido apenas deixara no ar. O projeto era a viagem em que os quatro iriam juntos à Europa. Deixemos a parte principal da cena a cargo do próprio narrador:

"Sancha ergueu a cabeça e olhou para mim com tanto prazer que eu, graças às relações dela e Capitu, não se me daria beijá-la na testa. Entretanto, os olhos de Sancha não convidavam a expansões fraternais, pareciam quentes e intimidativos, diziam outra coisa, e não tardou que se afastassem da janela, onde eu fiquei olhando para o mar, pensativo. A noite era clara.Dali mesmo busquei os olhos de Sancha, ao pé do piano; encontrei-os em caminho. Pararam os quatro e ficaram diante uns dos outros, uns esperando que os outros passassem, mas nenhuns passavam. Tal se dá na rua entre dois teimosos. A cautela desligou-nos; eu tornei a voltar-me para fora. E assim posto entrei a cavar na memória se alguma vez olhara para ela com a mesma expressão, e fiquei incerto. Tive uma certeza só, é que um dia pensei nela, como se pensa na bela desconhecida que passa; mas então dar-se-ia que ela adivinhando... Talvez o simples pensamento me transluzisse cá fora, e ela me fugisse outrora irritada ou acanhada, e agora por um movimento invencível... Invencível; esta palavra foi como uma bênção de padre à missa, que a gente recebe e repete em si mesma."

A partir dessas reflexões abrem-se comportas que inundam o texto de uma subjetividade avassaladora. Bentinho descreve o modo como interpreta as atitudes de Sancha, conforme suas próprias conclusões, as quais certamente podem não corresponder à realidade dos fatos. O que temos é a versão do narrador, entre tantas outras possíveis. Caso fosse lhe dada a oportunidade do contraditório, Sancha bem poderia dizer que a troca de olhares foi ocasional, sem qualquer conotação que excedesse os limites da amizade existente entre os dois. Note-se que, logo depois, o próprio Bentinho reconsidera sua impressão inicial:

"Tinha já comparado o gesto de Sancha na véspera e o desespero daquele dia; eram inconciliáveis. A viúva era realmente amantíssima. Assim se desvaneceu de todo a ilusão da minha vaidade."

O episódio mencionado acima é um componente importante do contexto em que começam a ganhar corpo as suspeitas de Bentinho quanto ao suposto caso extraconjugal entre sua mulher Capitu e seu melhor amigo Escobar. E é novamente um olhar que orienta as suas ilações. Um olhar que Capitu direciona a Escobar desencadeia uma série de angústias que evoluem desde a desconfiança até a mais inexorável das certezas, cujo símbolo é o fato de que Ezequiel, filho de Bentinho e Capitu, carrega consigo, à medida que cresce, a aparência de Escobar cada vez mais inequívoca e perturbadora. Chega-se então à inevitável pergunta: se Bentinho já havia se enganado antes, dando interpretação torta ao comportamento de Sancha, por que também não estaria errado em relação ao julgamento que aplica a Capitu, sobretudo se levado em conta o confesso ciúme que sempre o rodeou?

De qualquer forma, a solução definitiva só viria mesmo se Machado de Assis pudesse dar voz a Capitu em um romance no qual prevalecesse a outra versão. Poderia até servir para esclarecer nossas dúvidas. Talvez não. Machado de Assis saberia como nos confundiria ainda mais.


Texto originalmente publicado no site reticencia.com

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Postado por Flávio Sanso
25/8/2015 às 11h13

 
A banda passa, a música fica

A banda não passou. As pessoas é que passam, mas há quem pare para vê-la. No domingo de feira, a banda está instalada no vão do prédio da biblioteca. Não é do tipo de banda que passa, é uma banda imóvel. Todos os músicos estão dispostos em cadeiras. O maestro tem muitos anos de idade, tem muitas debilidades. A batuta é o que lhe mantém de pé, a batuta é o que lhe mantém a vida.

Entre saxofones e clarinetes, o som da bateria é o que mais se destaca. Sinto curiosidade em examinar a técnica. É o que me leva para próximo do setor de percussão, a última fileira de músicos. Enquanto toca, o baterista conversa, olha para os ouvintes. É mais ou menos parecido com o que faz Ronaldinho Gaúcho nas ocasiões em que olha para um lado e, num lance de habilidade, toca a bola para o outro.

Há muitas ocorrências ao redor da banda. Tão pequeno que os tênis parecem engolir-lhe os pés, o menino dança, atrai atenções, atrai também a mira do celular do avô. O menino ignora o fato de estar sendo filmado, continua a dança, ainda não tem idade para se preocupar com poses, só o que quer é dançar. A mãe se aproxima, agora são dois a dançarem do mesmo modo. É a vez de Frank Sinatra. Há também outros que dançam aos pares. De repente o cachorro levanta as orelhas e as mantém bem erguidas. Cochicho com meus botões a constatação de que Frank Sinatra é bom também pra cachorro. A primeira impressão é quase sempre uma ingenuidade. O que faz o cachorro redobrar atenção é a aproximação de outro exemplar da espécie, que só está de passagem, não arrisca desagradar quem está ali desde o início. E a banda continua. My way alcança o ápice, é aquele ponto da música em que as pessoas suspiram, mexem a cabeça em sinal positivo. Como são bons, diz a emocionada senhorinha. Aplausos.

No domingo à tarde, o vão do prédio da biblioteca está vazio. Não há música, só o que provoca barulho é o desmonte das barracas de feira. Onde estará o menino dançante? E o cachorro? E todas as testemunhas do espetáculo? Faz tempo todos já se foram. É que tudo passa, tudo haverá de passar. A banda, inclusive a banda imóvel, também passa.


Texto originalmente publicado no site reticencia.com

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Postado por Flávio Sanso
19/8/2015 às 10h24

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