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Domingo, 13/8/2017
Impressões Digitais
Ayrton Pereira da Silva
 
O CIRCO ESOTÉRICO

O circo chegou ao vilarejo em meio ao tumulto de clarins e fanfarras que não combinavam, despertando a fúria dos cães vadios do lugar que prorromperam em latidos coléricos, enquanto os galos dos quintais soltavam um canto extemporâneo e esganiçado em sinal de protesto contra a violação do silêncio da tarde.

Uma estranha trupe de figuras bizarras foi descendo das carroças que mais pareciam aquelas do Velho Oeste, não fossem puxadas por enormes bois de canga, com argolas douradas nas ventas. O mugido dos vacuns se misturava à confusa melopeia como um contracanto de estranhas sonoridades.

Logo, logo, a população local, acordada em plena tarde pela súbita algazarra, deixou as cobertas e saiu de suas humildes moradas a ver o que se passava.

O circo, para desencanto geral dos circunstantes ainda estremunhados pela interrupção da sesta, não trazia leões nem elefantes, tampouco engolidores de fogo, mulher barbada ou palhaços.

Alheia ao que se passava ao redor, a trupe circense começou a armar o picadeiro ao ar livre, e foi uma decepção total para os nativos a constatação que o circo nem cobertura de lona possuía.

Em meio ao espanto geral, um cavalheiro surgido do nada, envergando fraque e cartola, desenhou no ar, com suas luvas brancas, o anúncio de que o espetáculo iria começar no justo instante em que a estrela Vésper acendesse a primeira luminária do céu. “Este é o Circo das Estrelas”, foi a frase final que escreveu, com letras maiúsculas, no ar. Deixou que as palavras, formando frases perfeitas pairassem suspensas no espaço, e depois as soprou, transformando-as num bando de borboletas multicores. Houve um oh! de surpresa de todos os moradores, já magnetizados por tantos eventos que contrariavam a realidade.

Quando a noite desceu por trás dos montes, as lamparinas das casas se apagaram e o povoléu, umas cem almas, se tanto, acorreu ao logradouro baldio, carregando tamboretes, bancos compridos e cadeiras, pois o circo sem lona ali instalado só tinha mesmo o picadeiro. Estavam ávidos de curiosidade diante da perspectiva de sonharem, de novo, acordados.

No centro do palco, apresentou-se um homem de bigode e cavanhaque bem cuidados, com um fardamento que lembrava o dos vaga-lumes dos cinemas antigos, dizendo-se um mago. A um gesto seu, ouviu-se o rufar de tambores e taróis que certamente não provinham de nenhum instrumento de percussão visível, nem

de aparelhagem de som alguma, até porque naquele vilarejo remoto a eletricidade ainda era algo desconhecido.

Então, o homem que se dizia um mago declarou que não era mágico, mas apenas um humilde aprendiz de feiticeiro. Os moradores se entreolharam em silêncio, mas o ilusionista não pareceu notar aquela troca muda de olhares que sinalizava o descrédito da plateia.

Uma menina de uns nove anos, notória por sua beleza, foi convidada a subir no picadeiro, onde já se encontrava a estranha forma de uma caixa negra da altura de um pé-direito.

“Pode entrar na caixa, Samaria”, disse-lhe o mago com delicadeza. A garota arregalou os grandes olhos de água-marinha emoldurados por pestanas muito louras, tal o seu espanto: como é que ele sabe o meu nome, se nunca vi esse mágico na vida? A menina murmurou para si mesma.

Do sucedido entre o sorriso do mago e o sussurro inaudível da menina, o público nem sequer tomou conhecimento.

Quando o mago abriu a caixa onde a menina entrara, uma exclamação de assombro estremeceu a plateia: a caixa estava vazia!

Matronas de joelhos calejados por incontáveis genuflexões no confessionário da capela e nas duras penitências, persignaram-se em uníssono. A mãe de Samaria sofreu um desmaio, obrigando o pai a guardar a garrucha, que já sacara da cinta, para segurar a esposa obesa antes que se esborrachasse no chão. O pároco da aldeia ameaçou o mágico com os horrores do fogo do inferno, numa prédica virulenta, mais cuspida que pronunciada e que, devido ao tumulto generalizado, só foi captada pelos ouvidos apurados do ateu do lugar, que carregava consigo o estigma da licantropia. Ele sorriu então um raro sorriso, mostrando por momentos seu esgar canino.

Como se não bastasse sua fama de lobisomem, eram seus os artigos heréticos da modesta gazeta de folha dupla, que circulava a cada quinzena entre os do lugar, composta numa prensa contemporânea de Gutenberg, cujos exemplares eram comprados na barbearia onde se juntavam os homens para assuntar as modas e maldizer dos ausentes. Esses artigos ímpios eram a matéria-prima dos sermões coléricos do pároco da aldeia, que, do alto do púlpito, relampejava e trovejava predições terríveis e indescritíveis castigos para os descrentes e os detratores da religião.

Suando em bicas por todos os poros, o mago se esforçava por trazer de volta a menina desaparecida. A muito custo, surgiu em seu lugar uma ave imaculadamente branca com estranhos olhos de água-marinha e cílios louríssimos.

− Eu bem que avisei a todos que não sou mágico! − declarou o homem fardado de vaga-lume, num tom solene e categórico.

Nisso, o insólito pássaro saiu da caixa negra que estava aberta e tatalou as asas num voo majestoso, subindo aos céus. A plateia então prorrompeu em palmas estrondosas, enquanto um tiro certeiro desferido pela garrucha do pai da menina fez tombar o mágico no centro do picadeiro, mas a assistência, com os olhos pregados nas alturas e os ouvidos ensurdecidos pelas palmas ininterruptas, extasiada pelo espetáculo miraculoso jamais visto e sequer imaginado, nem se apercebeu da morte do mágico, como se fosse um dramalhão barato de circo mambembe de última classe.

Ninguém jamais assistira a algo assim.

E o fantástico episódio da menina que se transformou em avoante virou lenda, transmitida de boca em boca através das gerações, sendo até hoje contada e recontada, enquanto houver vida naquele lugarejo perdido...

Ayrton Pereira da Silva



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Postado por Ayrton Pereira da Silva
13/8/2017 às 13h18

 
ITINERÁRIO (Poemeto kafkiano)

Segunda-feira

O processo sôbre a mesa.

O problema na cabeça.

A refeição sôbre a mesa.

Sôbre a mesa a sobremesa.

Doce no prato: mil-fôlhas.

Devoro as folhas, faminto,

do processo sôbre a mesa.

Têrça-feira

O barbear apressado

plat-plus plat-plus plat-plus

de ôlho no relógio

tic-tac tic-tac tic-tac

é corte na certa, zás,

abrindo zíper na pele

que jorra sangue mestiço

álcool motor do meu ser

que só não pode parar.

Quarta-feira

Pare e pense! Um anúncio?

Não. Aviso. Olha o enfarte.

(Estou enfermo, estou morto

Mas não deixarei de amar-te).

Acordo que já são horas.

Tava sonhando, ora bolas!

Quinta-feira

Há um clarão lá no céu

entrando pela janela.

Por um momento pensei

que fosse a lua desperta

prata branca de baixela

como nos tempos de infância.

Mas era luz do holofote,

desiludida esperança.

Sexta-feira

Despachos a Iemanjá.

Não despachei o processo

sôbre a mesa a encarar-me.

Mil fôlhas, dez mil dizeres.

Que fazer dos afazeres?

Sábado

Desperto com o processo

insone na cabeceira.

No bar, no ar, o processo.

(Amanhã procuro o médico).

Domingo

Levanto entre parênteses.

Trégua na luta diária.

Vou à praia, almoço fora

só mais tarde é que regresso,

mas levo prêso à lapela,

à pele, à alma, ao sapato,

abotoado comigo,

nó cego que não desata,

amarra firme que pega,

o safado do processo.

Ayrton Pereira da Silva

in Caderno Prosa & Verso do jornal O Fluminense, 1971

(Mantida a ortografia da época)



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Postado por Ayrton Pereira da Silva
12/7/2017 às 14h51

 
ESCAVAÇÕES NO TEMPO

A casa paterna, em Niterói, não existe mais, dela não restou uma foto sequer. Naqueles idos, era raro quem possuísse uma máquina de retrato, que, na verdade, não nos fazia falta, pois tudo parecia eterno e o tempo não iria passar.

Embora distantes da guerra que se travava do outro lado do Atlântico, ceifando milhões de vidas, seus reflexos nos chegavam nas filas da padaria para comprar um pão escurecido e racionado; nos enormes cilindros de gasogênio que os carros usavam à falta de gasolina; no hemisfério das lâmpadas pintado de preto na parte voltada para o mar, ao longo de todo o cais, devido ao blecaute imposto pela presença de submarinos inimigos na costa; e, ainda, nas transmissões carregadas de estática das ondas curtas dos rádios transmitindo as notícias longínquas do front pela BBC de Londres. Isto sem falar no famoso Repórter Esso, na voz inconfundível de Heron Domingues, reportando despachos de última hora sobre o teatro das operações bélicas.

Para nós, meninos, isso não passava de mais um capítulo da eletrizante aventura de viver, como se fosse um seriado do Cinema Mandaro ou um episódio da telenovela de mistério que a Rádio Nacional levava ao ar diariamente. Aventura cujo clima de suspense era acentuado pelo semblante grave dos adultos, preocupados com o desenrolar das batalhas sangrentas que iriam selar a sorte do mundo livre, ameaçado pela terrível máquina de destruição da Alemanha nazista.

Às vezes, nos chegavam aos ouvidos retalhos das conversas que meu pai mantinha ao entardecer com os vizinhos mais próximos, e que não raro resvalavam em acesos debates, dividindo as opiniões entre francófilos e germanófilos, aqueles evocando a tradição de cultura e democracia do espírito gaulês, e alguns glorificando os feitos bélicos de uma nação que havia sido submetida aos termos do tratado de Versailles depois que perdera a primeira guerra mundial.

Foi num tempo anterior à eclosão dos edifícios de inúmeros pavimentos que emparedaram as ruas, barrando o sol e o vento, encaixotando os moradores e privando-os do direito a um pedaço de terra ou uma nesga de céu, em contraste com as ruas daquela época, quando só havia casas de no máximo dois andares e uma vizinhança que se conhecia pelos nomes e se solidarizava nos momentos de tristeza e celebrava os de alegria, sem embargo de suas eventuais diferenças, próprias do convívio em sociedade.

De lá para cá já se vai mais de meio século. Tudo mudou. Hoje a infância foi sequestrada pelo avassalador progresso alavancado pela internet e pelo espantoso avanço das ciências e da tecnologia.

Cerca de três décadas depois, voltei a morar na mesma rua onde no passado jogava bola de gude, disputava animados rachas de futebol, brincava de bandido e mocinho, soltava pipa, via e ouvia as meninas cantando cirandas e pulando amarelinha. Eram momentos de puro alumbramento: admirava as tranças das meninas, seus gestos delicados e a beleza de serem assim.

São relembranças gravadas na pedra das paredes da memória que, enquanto eu viver, jamais se apagarão.

Sou um sobrevivente dos tempos de antanho e um forasteiro no mundo de agora, tão diferente do mundo em que vivi, embora pise o mesmo chão, veja a mesma praia, mas não vejo mais a paisagem de outrora. E isso me deixa triste, embora saiba que a face do tempo é multiforme e se adapta às circunstâncias que moldam as diversas fases da história da existência humana.

Claro que todas as gerações têm seu tempo e sua história e é impossível compará-las, pela singela razão que o olhar de cada criança ante o seu quoditiano detém a magia que se esvai como um aroma, deixando um acervo inavaliável e intransferível de lembranças que vem a constituir um patrimônio particular que todos carregamos, para nutrir de paz e de sublimação o nosso espírito ou, se preferirem, a nossa mente.

Porém, se realizarmos um corte epistemológico, chegaremos à inevitável conclusão de que, mesmo evoluindo, na verdade, involuímos. Basta um olhar para a inimaginável barbárie que permeia e contamina a realidade dos dias de hoje. É algo brutal, uma espécie de determinismo que nos faz regredir, com requintes de crueldade agravados pela possibilidade de uma guerra nuclear, qual uma espada de Dâmocles pendente sobre nossas cabeças.

Se André Breton, autor do Manifesto Surrealista, voltasse agora ficaria perplexo por sentir-se totalmente ultrapassado...

Ayrton Pereira da Silva



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Postado por Ayrton Pereira da Silva
14/6/2017 às 14h05

 
O VOO DO ANJO CAÍDO

"Lasciate ogni speranza, voi che’entrate”

(Dante, Inferno, Canto III)

Inquirições

Voa o anjo por ser anjo

ou por ter as asas grandes?

Nenhuma dessas razões

é resposta convincente,

pois não explicam nem juntas

qualquer das duas perguntas.

Estranho à angeologia,

meio-ave-meio-gente,

um ente quase alegórico,

carrega consigo o rótulo

de ser lenda ou aberração.

Desorientação

Sem rumo o tal anjo voa

como se fora um besouro.

A dinâmica que os sustenta,

embora diversa a aparência,

no fundo não faz diferença.

Esse anjo voa à toa,

tão à deriva nas nuvens

que ao náufrago se afeiçoa.

Sem ser visto, não descura

da superfície das coisas.

São rasos esses telhados

de refratária cerâmica

e bem mutáveis as frondes

que só aos ventos respondem.

Melhor é vê-los de longe,

como essas águas e os mares,

delimitando horizontes,

que se comprimem e distendem

em infinitos aondes.

Genealogia

Será o anjo ex-divino?

Será o anjo um demônio?

Talvez os dois (por que não?).

Sua híbrida figura

por entre as nuvens emula

com o condor e o falcão,

mas já não infunde medo,

pois de há muito foi banido

das potestades do Empíreo.

Sobrevoo

Flanando sobre a cidade, pombo grande na verdade,

asa-delta ou parapente,

metade pássaro e gente,

talvez nem isso ou aquilo,

nem se pergunta quem é.

Um volantim metafísico?

Imagem de holografia?

Ou apenas projeção

das culpas já cometidas?

Simbologia

Nas narrativas simbólicas,

entre pompa e circunstância,

raios de luz vazam nuvens,

sons de liras e trombetas,

epifanias, arcanos,

confusas visões de sonhos...

Metido nesse cenário,

tem marcado o seu papel

no teatro planetário.

Entretempo

No entretempo de um ato,

vaga qual desempregado,

menos que anjo ou demônio,

asas rotas, ventre magro,

penas cinza de encardidas,

tantos verões e partidas,

efemérides, intempéries,

quantas hégiras sem saída...

e essas torres, esses sinos,

no alto dos campanários,

que vê de longe assustado,

pois nem servem de abrigo

ao alado peregrino.

Ayrton Pereira da Silva



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Postado por Ayrton Pereira da Silva
11/5/2017 às 17h41

 
O VERBO ALQUÍMICO

Contra todas as minhas expectativas, cheguei, para o bem ou para o mal, aos oitenta de idade, acredito que em plena lucidez, embora com as limitações impostas pelo tempo, de que ninguém, de resto, escapa.

Em contrapartida, esta longa jornada me propiciou um acúmulo de observações e percepções — o que se costuma chamar de experiência — e neste momento desejo falar sobre isso.

Talvez seja uma veleidade minha, não sei. Trata-se de uma visão pessoal e, portanto, de minha exclusiva responsabilidade. O fio condutor dessas reflexões foi uma frase do poeta e livre-pensador, recentemente falecido, Ferreira Gullar: “A arte existe porque a vida só não basta”, que logo se transformou num chavão, no melhor sentido, é claro.

A poesia é algo imaterial e onipresente. O problema consiste em saber e poder captá-la, e para tanto existe a arte, na mais ampla acepção da palavra; ela sim tem o condão de abrir as portas para o inefável, conduzindo o homem às intangíveis paragens do sublime, que bem pode ser comparado a outro mundo: o universo poético.

É ela, a arte, que nos tira do rés do chão onde vivemos, subjazendo, porém, fora de alcance do olhar pragmático daqueles que encaram a vida como uma competição de vale-tudo.

Como até hoje me dedico ao ofício escritural, tenho preferência por este meio de tentativa da expressão, que é o poema.

Será, pois, de poesia e de poemas que falarei.

Em minha época de estudante, quando nos ensinaram análise sintática, eram passados, como dever de casa e de provas de português, trechos de “Os lusíadas”. Para nós, ainda meninos, nos sentíamos mais perdidos do que de se tentássemos, por absurdo, decifrar a Pedra de Roseta. Aquele fraseado arrebicado, em ordem inversa, da épica camoniana, nos deixava loucos de raiva. Daí, na contramão do que viria depois, criei aversão à poesia.

Um dia, quando já ao término do ginásio, numa tarde modorrenta, resolvi abrir a antiga antologia escolar, e, guiado pelas mãos do acaso, deparei-me com um poema lírico de Camões, cujo título era motivo de zombaria entre os estudantes, por causa do cacófato: o soneto “Alma minha gentil”, que considero o mais belo e sublime dos países lusófonos, escrito com as tintas da dor pela perda da chinesa Dinamene, seu grande amor, num naufrágio em que não pôde salvá-la.

Há quem critique a cacofonia do primeiro verso do soneto camoniano, que, todavia, se sacralizou, a despeito daqueles que, em sua visão reducionista, tomaram a parte pelo todo.

Existem, por outro lado, os que sustentam que, à época da concepção do soneto, usava-se a palavra teta, ao invés de mama.

Há também os que afirmam ter Camões, muitas vezes, parafraseado seu mestre Petrarca, a quem se atribui a criação dos sonetos, mas a poesia, como consabido, é a arte da imitação. Conforme ressaltado pelo crítico italiano Pellizari — mencionado por Hernâni Cidade em seu livro “Luís de Camões, o lírico”, in Livraria Bertrand, 3ª ed., 1967 — este bem pode ser um exemplo emblemático dessa forma de arte: a paráfrase, não o decalque servil, mas um modo de, com elegância e fino estilo, prestar homenagem a outro imenso poeta.

Trata-se, ao fim e ao cabo, a meu ver, de controvérsias de somenos.

Quanto a mim, o soneto “Alma minha” me surpreendeu no contrapé. Foi uma espécie de choque de alta voltagem em meu espírito. Uma epifania. Estava diante da verdadeira poesia que me tomou de assalto e não me deixou mais, feito uma doença crônica benfazeja.

Embebi-me de poemas, lendo, relendo, treslendo poetas nossos, franceses, ingleses, russos etc., magnificamente traduzidos para o idioma pátrio. Compulsava erraticamente os livros e andava nas nuvens, embriagado de poesia.

Não sei se fruto da vocação ou da obstinação, surpreendi-me a escrever os primeiros versos. Foi dificultoso, mas prossegui.

Não cabe ao poeta julgar suas produções, e sim ao eventual leitor — ou como disse Baudelaire, no derradeiro verso do poema inaugural de seu livro “As flores do mal”, que lançou os fundamentos da poesia moderna, tornando o feio em belo: “leitor hipócrita, meu semelhante, meu irmão!” ou no francês de origem — hypocrite lecteur, mon semblable, mon frère!

A materialização da poesia num poema é como um salto metafísico: o poema chega de chofre e vai fluindo por si mesmo, como se proviesse do Inconsciente Coletivo, essa espécie de caixa-preta que todos carregam num ponto qualquer da mente, sem poder abri-la. Ali estão contidos os arquétipos, as imagens e signos remotos, decorrentes do passado pessoal e coletivo, nessa espécie de guardião avaro que somente, de vez em quando, os libera com extrema parcimônia, ensejando a feitura do poema.

Quem magistralmente definiu, numa só palavra, esse processo criativo foi ninguém menos que Fernando Pessoa ao batizar um de seus mais famosos poemas com o título de “Autopsicografia”.

O que se chama, correntiamente, de inspiração nada mais é que a “outridade”, a qual — segundo acentua o notável Nobel de literatura Octavio Paz — (...) “não está dentro, em nosso interior, nem atrás, como algo que surgisse subitamente do limo do passado; está, por assim dizer, adiante: é algo (ou melhor: alguém) que nos convida a sermos nós mesmos.” (“O arco e a lira”, traduzido por Olga Savary, Nova Fronteira, 1982).

Também Jorge Luis Borges observa que o autor deve interferir o mínimo possível na sua obra. Deve ser um escriba do Espírito ou da Musa, o que dá no mesmo. (“Nova antologia pessoal”, Ed. Sabiá, 1979).

Assim, a meu ver, o poeta se torna, por assim dizer, um médium de si próprio, ou seja, do “outro”, que nada mais é do que seu eu profundo, a quem dá vez e voz, daí surgindo o momento mágico da revelação poética, espelhado no poema.

Que tudo isso exalça e extasia, não há dúvida, mas não é maior que a vida, o enquanto em que duramos, meros transeuntes do tempo, nada mais.

A verdade é que, com o passar das décadas e o desgaste inevitável por ele causado, esses momentos vão rareando. Em geral, tem-se a disponibilidade que não se tinha antes, mas não se tem mais a faísca que ateia o fogo sagrado de Prometeu.

À medida que descemos a montanha pedregosa da vida com o sol pelas costas, e a visão crepuscular prenuncia o escuro do desconhecido, a natureza como que nos prepara: os sentidos vão, aos poucos, esmaecendo, o mundo vai perdendo as cores e as sinapses rateiam, numa espécie de anticlímax sem pompa nem circunstância.

Ayrton Pereira da Silva



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Postado por Ayrton Pereira da Silva
14/4/2017 às 16h09

 
DOIS POEMETOS E UM SONETO INÉDITO

ANTIBIOGRAFIA

Acho que a vida

inteira

entrei por portas cerradas.


Ou me enganei

de endereço

entrando em portas erradas.


(Assim me resumo

à grafia

de apenas duas palavras).

in Destempo, 7 Letras


LUSTRAL

Fora de tempo

Fora de hora

A poesia mostra a cara


Feito um dente já doente

Dói por dentro

Rói silêncio


Maturada cada sílaba

Deixa enfim sua crisálida

Veste a forma da palavra

idem


SONETO

Como a luz da manhã, sem prévio aviso,

aroma, flor, ninho de passarinho,

enfeitaste de sonhos meu caminho,

para que a vida tivesse sentido.


Muito cedo seguiste o teu fadário

com teu rastro de luz de ausente estrela

que o tormento mudo de não vê-la

acendeu-me no breu um fogo-fátuo.


Na escuridão da noite que me envolve,

mergulhando nas trevas nossa saga,

há de restar a luz que jamais morre


de um amor que persiste e não se apaga

como um espectro verde de esperança

que a longa mão da morte não alcança.


Ayrton Pereira da Silva



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Postado por Ayrton Pereira da Silva
21/3/2017 às 17h22

 
A TROCA

O senhor me perdoe a inconveniência de dirigir-lhe a palavra sem sequer conhecê-lo, mas um dos poucos benefícios que a idade avançada permite aos velhos é este — o de ser nada. E um nada não incomoda a ninguém porque inexiste. Portanto, faça de conta que não estou aqui, não tenho corpo e muito menos voz. O meu acidental interlocutor nem se tocou. Permaneceu mudo e quedo, uma estátua.

Então, de mim para comigo, sentado neste banco do cais, fiquei contemplando o crepúsculo sob a aragem do entardecer que tornava o ar mais leve e fino, matutando que a verdadeira beleza da vida estava na gratuidade das coisas e o que atrapalhava tudo, como quem picha um monumento público, era a realidade com seu pragmatismo nu e cru. Era ela, ou melhor, esse Leviatã que a espécie humana foi, aos poucos, através das gerações, gestando, nutrindo e aparelhando, que acabou se tornando o carrasco dos próprios sonhos da humanidade, os sonhos que, num tempo não muito distante, um dia todos tiveram e cuidaram como algumas pessoas até hoje cuidam de flores e jardins. Agora, se ainda houver sonhos, já nascem póstumos, o que é pior que natimortos. Os sonhos póstumos, como qualquer um de nós, também têm vida, só que, por assim dizer, intrauterina.

Não me contendo mais no silêncio absoluto de meus pensares e pesares, impulsivamente resolvi confrontar minha velha inimiga íntima — a consciência, essa tal que cada um carrega dentro de si, e com quem nada simpatizo, pois não raro ela me põe contra a parede, ora me censurando, ora me cobrando, logo a mim que já tenho um superego tirânico, como se isso, por si só, já não bastasse.

Estava disposto a vingar-me e comecei a provocá-la:

“Vamos falar de platitudes, pois é, platitudes... aliás, você sabe o que é? Ora, isso não é desdouro pra ninguém (se me permite a linguagem coloquial), platitude quer dizer banalidade em bom e puro vernáculo, outra palavra que faz tempo não ouço mais ninguém dizer e muito menos vejo escrever. Isso me entristece, mas não surpreende mais. Quem viveu até onde já cheguei e viu e leu, amou, sofreu, errou e acertou, sabe que no final a banca sempre vence.

A vida, na sua expressão mais simples, se resume a uma singela troca: não por acaso expressões como “o amor é o sal da vida” e outras que tais universalizaram-se desde as mais remotas eras. O termo salário provém de sal, quando o escambo ou troca, antes do advento da moeda, era a forma principal de pagamento de uma compra feita ou um serviço prestado. De lá para cá, só mudaram os condicionamentos exteriores, ou seja, o chamado processo civilizatório, tênue camada de verniz para melhorar as aparências.

Houve progressos sim, gigantescos até, e assustadores também, mas o descompasso, a dicotomia essencial ente instinto e razão não acompanhou a evolução científica e tecnológica que atingimos. Antes, agravou-se, face ao uso dessas conquistas tanto para o bem quanto para o mal. Como é notório, historicamente, as ferramentas da técnica e da ciência sempre foram caudatárias do poder, independentemente de seus criadores.”

Eu era um nada falando para o nada. Por meio desse exercício no vazio tentava também preencher as lacunas que cresciam no território da memória, assombrando-me.

Vivia o bizarro paradoxo da existência sobre que tanta vez meditei e bem ou mal escrevi, aludindo à cruel ironia da vida que marcha irrefreavelmente da síntese para a análise, do início para o inevitável fim, do alfa ao ômega. “Em meu fim está meu princípio” (“In my end is my beginning”) não é senão uma admirável imagem de T. S. Eliot, um dos luminares da poética universal, capaz, é claro, de nos tornar até um pouco mais humanos, como se tocados por algo de etéreo e iridescente que, do ponto de vista puramente material, não vai além de uma associação de palavras. Este o poder de transfiguração da poesia, carente de força motriz, valor mercantilístico, cotação na bolsa ou expressão econômica qualquer. Ou seja, um tudo que é nada ou exata e precisamente o contrário.

A vida como ela é, vida como vida, dura um mero enquanto. Sim, o fugaz enquanto de nossa transitória existência. Houve um filósofo cujo nome se esfumou na densa névoa de meus vazios que a figurava como um lindo bordado tecido por mãos caprichosas: na primeira fase da vida até o fim da maturidade, ele é visto em seu lado certo, embora, com o correr das décadas, já sem a mesma vivacidade das cores e riqueza dos finos detalhes de antes; na segunda fase, a do envelhecimento, o bordado mostra-se ao avesso — aquele emaranhado de linhas entrecortadas, embaraçadas e de nós cegos, indesatáveis, que não podem ser refeitos e, se desfeitos, desaparecerá por inteiro o bordado.

Numa reação instintiva de autodefesa, durante nossa breve vida ativa, nos iludimos e eludimos a consciência de nossa finitude, triste legado da racionalidade, numa espécie de jogo de esconde-esconde, faz de contas de falsa e triste brincadeira de adultos que tentam em vão, patéticos e desajeitados, ressuscitar a criança que foram um dia.

Mas é impossível transformar o enquanto, em que se resume nossa vida fugidia, num encanto, de modo a reencontrar o retorno ao solo mágico da fantasia, só à infância acessível. Ou talvez, quem sabe, os que perderam de todo o juízo possam retornar ao intransitável e encantatório caminho defeso aos adultos ditos normais.

Na busca de rotas alternativas, manobras diversionistas que nos afastem da ideia recorrente do desfecho que nos espreita, inventamos todo um rol inacabável de devaneios, de ilusões que não passam de melancólicos adiamentos da temível e indesejável hora — aquela que se evita pensar e muito menos falar e que, aliás, nunca andou tão próxima como agora com esses artefatos de destruição nuclear em massa encontráveis nos arsenais das mais diversas potências de matizes ideológicos divergentes. Outrora, as guerras, dada a limitação dos armamentos, tinham seu teatro de operações circunscrito; hoje, não. Eis o diferencial aterrador.

Daí a ânsia de viver o agora, e como ninguém oferece almoço de graça, a vida continua como começou, baseada na troca. Tudo tem seu preço. Nada mudou. Até o casamento, essa instituição praticamente falida, é uma troca de direitos e obrigações, de caráter contratual.

A racionalidade, que nos diferenciou e tornou a espécie dominadora de todas as demais, fez-nos também o mais temível dos predadores. Diz-se, por isso, que essa duvidosa faculdade é o tributo mais gravoso cobrado ao ser humano. Eis a superlativa ironia da vida...

Mas, creio, não devam levar muito a sério as divagações de um velho, que, não raro, se perde entre lacunas e hiatos, ziguezagueando sem mapa ou bússola nos descaminhos de um cérebro fatigado. Concedam-lhe, pelo menos, o benefício da dúvida. Garanto que dormirão melhor.

A essa altura, o sol já se pusera, a noite começava a cair. E meu suposto interlocutor ali estava, mudo e quedo, impávido e olímpico, uma estátua que não usava óculos. Lembrei-me, em contraponto, de Drummond, eternizado em bronze num banco da Praia de Copacabana. Com dificuldade, levantei do banco do cais em frente à pedra da Itapuca, em Niterói, ainda ofegante pelo esforço de falar comigo mesmo.

— “Você, além de velho, é maluco e um patético niilista, cuja obsessão doentia consiste em querer estragar a vida dos outros, com suas teorias mórbidas, roubando-lhes o direito de exercer, em plenitude, o dom da vida. No fundo, você não passa de um reles ladrão da felicidade alheia” — pareceu-me dizer, categoricamente, a voz de minha consciência. Era o seu revide, ao qual fingi não dar ouvidos, enquanto seguia a passos lentos para o exíguo apartamento de aluguel onde morava, tendo por pano de fundo a paisagem desalentadora dos edifícios que barravam a luz do sol e a passagem dos ventos.

Ela falara a verdade.

Ayrton Pereira da Silva



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Postado por Ayrton Pereira da Silva
2/3/2017 às 12h11

 
DESLEMBRANÇAS

O tempo não tem pressa

e lentamente

erige em seu lugar as deslembranças

pedaços de hiatos

fragmentos de espaço

decompondo a memória

e sua história.


O sorriso paterno

esbatido na distância

já é um rictus

nem riso nem sorriso

e sua voz não soa mais no ouvido.


O retrato da casa em si tão vívido

desenhado em relevo na saudade

vira saudade só

sem corpo apenas mito.


Assim o tempo desconstrói a sua obra

acrônica e atópica

que se afirma por si

tão metafísica quanto metafórica

de vácuo preenchida

na sua imponderável engenharia.


Ayrton Pereira da Silva

(in Umbrais, Sette Letras, 1977)



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Postado por Ayrton Pereira da Silva
5/2/2017 às 19h15

 
FRIBURGO, MINHA TERRA DE ADOÇÃO

”Soverteu num rompante. A terra encrespou e tudo veio abaixo”. Ouvi essas palavras de um peão de obra, que havia trabalhado na construção de uma casa na encosta serrana, tal como ele estava contando a seus companheiros, na folga do almoço. Isso ocorreu muito antes da tragédia que se abateu sobre a cidade. Mas já não seria o prenúncio do que viria depois? Não sei, a natureza tem seus caprichos, é imprevisível.

“Quando tomei tento, tinha sumido dali”, o peão acrescentou, enquanto jogava no chão do botequim de beira-estrada um pouco de cachaça, dizendo que era pro santo. E foi tudo que vi e ouvi, pois já saía do bar onde fora comprar um copo d´água mineral. Tinha pressa de chegar até a casa de campo onde a família me esperava. Entrei no carro estacionado no acostamento e parti.

Esse cara, pensei enquanto dirigia, estava repetindo, como tantos outros, sem saber, o gesto irônico de Sócrates, o grande filósofo grego, ao fingir entornar uma porção de cicuta, que fora condenado a beber, dizendo ao carrasco e aos discípulos ali presentes, solidários e comovidos ao lado de seu mentor nos últimos instantes de sua vida, que seria uma reverência a algum deus — e não aos deuses do Olimpo cuja existência negava — para que o guiasse em sua peregrinação rumo ao desconhecido. Esse gesto simbólico, em seu despojamento e singeleza, tem mais de dois milênios e está descrito nos Diálogos de Platão, que foi seu discípulo e depois mestre de Aristóteles.

Friburgo sempre me pegou por duas coisas: a paisagem bem diversa da orla do mar em que vivo e gosto de viver e um certo sabor encontrável em seus pequenos achados, diminutas pepitas ocultas no ramerrão dos dias. Às vezes uma surpresa, como a coleção inteira das aventuras de Sherlock Holmes, em primeira edição, que arrematei, a preço vil, num velho bazar de variedades em Olaria, ou uma informação, em português castiço, prestada por um modesto quitandeiro sobre a incidência do sol à tarde em Mury: “o lado de cá é solarengo, o de lá é noruega”, disse-me ele. E era um nativo do lugar, tão brasileiro como eu.

Friburgo me pegava também pela linguagem por vezes tão surpreendente e peculiar.

Então, fiquei matutando: esse quitandeiro, modesto, de origem humilde, nunca deve ter folheado um clássico qualquer, mas como, perguntei-me, de onde saíra aquela frase perfeita, de um vernáculo irretocável, deslocada no tempo e no espaço? E a resposta me acudiu rápida e prontamente: da tradição. Sim, da velha e boa tradição oral. Pois é.

As cidades montanhesas, creio, são assim: ainda reservam raras riquezas somente acessíveis às mentes e aos corações.

Quanto ao ato corriqueiro de saudar o santo nos botecos da vida, sua perpetuação no tempo em fora é algo que dá o que pensar. E, diga-se, não é somente um costume local; tanto quanto eu saiba, é comum aos bebedores da quase totalidade dos botequins e biroscas de nossa terra. Seria culpa do inconsciente coletivo de Karl Jung, responsável também pelo cisma que o distanciou de Sigmund Freud? Ou quem sabe da memória atávica, da psicogenética... sei lá. De qualquer sorte, resta um vasto campo aberto a inumeráveis lucubrações de ordem metafísica, transcendental, esotérica, extrassensorial e outras teorizações que tais. Há vertentes para todos os gostos. Façam suas opções. Mas, na verdade, sinto dizê-lo, não é nada disso. Trata-se simplesmente de uma tradição, a boa e velha tradição consistente na passagem da memória dos acontecimentos fastos e nefastos de uma para outra geração. Este o exato significado da palavra tradição: entrega, passagem de alguma coisa de alguém para outrem. Infelizmente, costumes como esses, que forjaram o caráter dos povos e das nações, estão caindo em desuso, cedendo lugar ao advento de uma nova era. Sinal dos tempos que avançam irreversivelmente.

Lembro que, criança ainda, quando de minha primeira viagem a Friburgo, pelos fins dos anos 40, foi como se vivesse um sonho acordado. As cenas de outrora agora me acorrem, vívidas, em slow motion, quadro a quadro, como num fotograma de que sou eu mesmo o roteirista.

Estou abismado, na estação da Leopoldina Railway, no centro de Niterói (ou Nictheroy, como se escrevia antigamente), diante daquele monstro negro de ferro resfolegante, que despedia faíscas e grossos rolos de fumaça para todos os lados, no esforço esclerótico das caldeiras, pronto para partir, tracionando uma fileira incontável de vagões. Chamavam carinhosamente aquele colosso ameaçador de Maria Fumaça, mas para mim talvez fosse preferível chamá-lo de Moura Torta, que eu não sabia bem como era, mas assombrava, às vezes, minhas noites com terríveis pesadelos.

Meu pai, munido de guarda-pó, para proteger-se da fuligem que invadia o trem, mal saíamos da estação, abria o Correio da Manhã para ler as notícias do avanço das tropas aliadas, retomando as cidades europeias que a máquina de guerra nazista ia abandonando em fuga. Já nossa mãe se azafamava em retirar da bagagem os agasalhos que iríamos vestir na subida da serra envolta em brumas, porque a temperatura despencava vários graus à medida que a locomotiva galgava as grimpas, bufando, arfando e apitando como um dragão ensandecido.

Quando a curiosidade do menino vencia a batalha contra o medo, era possível vislumbrar, em meio à névoa, pelo retângulo da janela do vagão em movimento, a beleza rara da paisagem serrana em sua versão altaneira, matizada pelo pincel e as tintas do clima frio e do ar balsâmico dos eucaliptos, o verdor exuberante das ramagens, o multicor buliçoso dos matizes da flora silvestre, nascida ao deus-dará, a folhagem prateada de árvores que se alteavam sobre as demais, as frondes das araucárias abertas em leque, o delicado esparrame de flores das quaresmeiras, a algazarra das cores berrantes dos ipês tão perdulários de beleza, a gratuidade da natureza em estado de plenitude e, quase, de pureza.

Mas nem tudo eram flores e cores. Havia também aquele zumbido chato nos ouvidos, uma surdez repentina provocada pela altitude, que os mais precavidos procuravam amenizar mascando chicletes, como antídoto contra a descompressão. Vencida a serra, o trem parava na estação de Cachoeiras de Macacu, onde ainda hoje ecoa, no labirinto de meus ouvidos, a mistura de vozes dos garotos apregoando suas mercadorias: pastéis, morangos, caquis, frutas-de-conde, curau, pamonhas, sucos. Eu e meu irmão menor a tudo assistíamos de dentro do vagão, com água na boca, pois era um risco ingerir algo de que não se soubesse a procedência. Portanto, nem valia arriscar um pedido aos nossos pais. Fôramos educados à maneira dos severos usos e costumes oitocentistas, pois nosso pai nascera antes mesmo da Lei Áurea e educou-nos na rígida disciplina do século XIX.

Dessa primeira ida a Friburgo restaram uns poucos fragmentos de recordação, que, anos após, com a ajuda de meus irmãos mais velhos, pude, em parte, recuperar. Mas são detalhes de somenos, valem somente para uso interno.

Retornei muitas e muitas vezes, de lambreta e de carro, a Friburgo. Alcancei ainda os tempos do Hotel Glória, os carnavais antigos do Clube Xadrez, a Confeitaria Danúbio Azul, que era um ponto obrigatório da juventude dos Anos Dourados. Que tempos aqueles! Pelo retrovisor da memória, cada vez mais distante, são como imagens fragmentárias de um caleidoscópio quebrado...

Lembro da chuva das cinco, sempre pontual, cujos primeiros pingos, em algumas férias de verão passadas ali, em minha infância, eu recolhia na concha das mãos, para beber direto das fontes do céu a água benta (assim pensava em minhas fantasias de criança); lembro do fog que baixava sobre a cidade ao entardecer, encenando uma atmosfera gótica que evocava as estórias de mistério e assombro ao estilo de Jack, o estripador, e do Cão dos Baskerville.

A regência do tempo obedecia a outro compasso e a vida montanhesa guardava os ares de um pacato burgo alpestre.

Mas são lembranças antigas, de que não ficou comigo sequer um retrato. Melhor assim, pois o filtro da memória, em sua benfazeja generosidade, somente libera as evocações de que os peregrinos de outras épocas carecem como um nutriente necessário à preservação do que restou da autoestima a caminho da desintegração — e não da ilusão barata da eternidade falsa dos retratos.

A Friburgo de hoje, como, de resto, parece que tudo, nesse mundo velho sem porteira, sofre os efeitos do esmeril de Chronos, Senhor do Tempo, e de nós mesmos, coadjutores do processo erosivo de destruição do planeta.

Apesar de todos os pesares, se rastreados bem, Friburgo ainda guarda em seus refolhos alguns achados que os raros, tenho certeza, inconscientemente, sabem onde estão e, os que não sabem, com certa dose de engenho, mente e coração, ah, esses, seguramente, também, quando menos esperarem, encontrarão.

Mas a história não termina aí, a vida continua, e aquele rio-tempo ou tempo-rio a que se referia Heráclito de Éfeso continua a correr, irrefreável, reinventando-se, sempre e novamente. A Vida em si é uma obra em comum perpetuamente em aberto, na qual cada um deixa o seu contributo, na breve viagem de navegante nas águas vertiginosas do tempo que lhe couber.

Ayrton Pereira da Silva



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Postado por Ayrton Pereira da Silva
3/1/2017 às 18h48

 
MARINHA

3

... e pois seguimos nós no mar brumoso

galgando ora montanhas liquefeitas

ou descaindo em socavões profundos

nesta casca de noz

escaler de papel

de velhas folhas de um jornal extinto

de um incerto dia onde se liam

em tipos garrafais

letras que agora não se leem mais.

5

porque a água em vagas salitradas

solapa letras sílabas palavras

a água lava apaga

mesmo a memória dos mais nefandos fastos

mas deixa um rasto enlutado

de borrão sépia

tinta de polvo

inventando ao acaso outro alfabeto.

6

esse mar de palavras revoltoso

é um mar de marés imprevisíveis

a que presidem lunações perversas

é um mar de profundas reticências

que volta e meia

circunflexo relampeja

e agudamente craseia.

9

essas palavras de mar viram oceano

são palavras demais

e aderem ao casco das naus

às quais retiram o sentimento das águas

o que é um risco

pois uma quilha sem corte

não enxerga

os perigos das sintaxes nas pedras

nem percebe

o cântico enganoso das semânticas.

13

semiótico enxergo claro o tempo

das palavras concretas em bom porto.

há de chegar o tempo, marinheiro,

de fundear o barco bonançoso.

“há de chegar o tempo

o tempo o tempo”...

repete a gaivota em pleno voo.

15

D. Giovanni:

“a esta hora os mortos retornam

à sua tumba de bravos marujos”.

era um crepúsculo

de brônzeos reflexos

um amarelo-magma

um ocre ígneo.

“não são de Deus esses marujos mortos

sem sepultura cristã”.

não são de Deus talvez

mas são de Posseidon.

... e esses peixes que devoram os olhos

dos náufragos são de Deus talvez?

ou essas aves que nada fazem

e mereceram citação supina?

D. Giovanni não responde, cala.

assim é ele: um velho marinheiro italiano

afeito às calmarias às bonanças

ao fogo de Santelmo e às borrascas.

18

um marinista melhor que um marinheiro

deve aos que chegam deixar esse registro

do cemitério naval onde carcaças jazem

as ossaturas de ferro velho expostas

à ferrugem do sal e à maresia.

num outro quadro a este justaposto

com essas mesmas tintas

misturadas de modo diferente

pinte-as de novo o marinista anônimo

para mostrar a todos que como Flebas

um dia essas carcaças foram belas.

21

...e no entanto esse mar emoldurado

pelas janelas francesas da varanda

é um mar sem magia, não espanta.

não é o mar de Homero

ou dos fenícios

é um mar sem história nem prestígios.

é um pedaço de mar

um mar urbano

exposto ao olhar profano dessas gentes

que desconhecem trirremes e tridentes

e só por isso não temem sua fúria

quando os tritões assopram as grossas nuvens

desatando os nós dos ventos e das chuvas.

Ayrton Pereira da Silva

(in Umbrais, Sette Letras, 1997)



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Postado por Ayrton Pereira da Silva
25/9/2016 às 15h52

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