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Sábado, 1/9/2018
Impressões Digitais
Ayrton Pereira da Silva
 
UM OLHAR SOBRE A FILOSOFIA (PARTE FINAL)

Como estas páginas já se alongam, força é convir ser necessário um corte epistemológico, para chegar-se até o Existencialismo, embora ao elevado custo de omitir referências a grandíssimos mestres da Filosofia, o que de fato é lamentável. Ser o copidesque de si mesmo é um castigo inimaginável, uma espécie de Caixa de Pandora cuja abertura me foi imposta.

Soren Kierkegaard (1813 – 1855), filósofo dinamarquês, é o fundador do Existencialismo, apesar de nem cogitar de atribuir uma denominação ao corpus em que embasou seus conceitos do que depois viria a ser chamado de Existencialismo Cristão. Foi ele o primeiro filósofo a aprofundar-se no tema da existência e da vida, que para ele constitui um enigma, uma contradição, algo que vai além de nossa finitude para alcançar a eternidade. 

Ao contrário de muitos existencialistas que surgiram mais de um século depois, Kierkegaard nunca foi arauto de si mesmo. Era um eremita urbano: separou-se da família, desfez o noivado para dedicar-se exclusivamente à construção de sua obra. Escrevia com diversos pseudônimos, construindo uma espécie de labirinto quase inextricável, onde se abrigava. Quem deu o nome de Existencialismo à sua corrente filosófica foi o filósofo francês Gabriel Marcel, logo depois da 2ª Grande Guerra, quando uma onda de reumanização arejou o planeta.

Kierkegaard professava o cristianismo, consistente no Evangelho. Daí ser considerado o fundador do Existencialismo Cristão, por crer no Cristianismo e não no Velho Testamento anterior a Cristo. Suas dissidências com os bispos e sacerdotes da igreja luterana se agravavam então a cada dia.

O Sócrates dinamarquês, como também o chamavam, é o pensador maior do século XIX. Para ele, existir é uma aventura perigosa, que envolve a opção de lançar-se à vida, construindo-se como se desejaria ser. Ele traça com clareza o perfil da individualidade a partir da dialética vida-morte, que no seu desdobramento nos disponibiliza os dons da existência e da liberdade em potência, que só se transformam em essência, quando o ser humano decide viver em plenitude, durante sua transitória estada no teatro planetário. Ou seja: “a existência precede a essência”, que veio a ser a pedra fundamental do Existencialismo. 

Kierkegaard também analisa, sob o prisma estritamente filosófico, a possibilidade de vivermos sem Deus, ou outro Ser Supremo, abordada por ele e, muito depois, reafirmada por Sartre na esteira do pensamento daquele.

Na visão do filósofo dinamarquês, o homem constrói-se a si próprio na medida em que é produto das suas escolhas ao longo da vida. Sempre estamos às voltas com as circunstâncias que nos envolvem a exigir de nós optarmos que decisão tomar, arcando, necessariamente, com as consequências boas ou más que dela advierem.

Há quem afirme que seria implausível uma filosofia no estádio evolucionário de hoje sem as concepções kierkegaardianas, entre os quais Ludwic Wittgenstein, um dos mais influentes pensadores do século passado.

O boom existencialista só ocorreu — mais de cem anos depois da morte de Kierkegaard — em meados de 1950, com Sartre, Heidegger, Camus e Simone de Beauvoir, entre outros. Todos se declaravam ateus, e rejeitavam ser tachados de existencialistas: diziam-se humanistas. Todavia, reafirmaram o princípio já visualizado mais de cem anos antes pelo Sócrates dinamarquês — quando acentuou que o ser humano é que define, por meio de suas opções, o rumo de sua vida.

Sartre diz, em última análise, o mesmo que Kierkegaard sobre tal aforisma, ou seja, ao nascer o ser humano apenas existe e só principia a viver quando adquire a consciência de si mesmo, de estar no mundo, que o filósofo francês define como o ‘para-si’ (pour-soi), em O ser e o nada. Antes, quando existe, o ser humano é um “nada”, que só começa a “ser” quando inicia as escolhas que irão talhar o seu caminho. E pode fazê-lo com total liberdade por depender só dele.

Jean-Paul Sartre foi o mais conhecido dos existencialistas daquele tempo, sendo tanto festejado quanto hostilizado. Sua obra maior já mencionada é um resumo do seu pensamento autointitulado humanista.

Já Heidegger cunhou uma linguagem própria para o que chamava de analítica existencial, enfeixada no livro Ser e tempo, incidindo no mesmo artifício de não se dizer existencialista e sim humanista. Heidegger não conseguiu deslindar seus próprios conceitos, que deixou no ar...

De Heidegger restaram os conceitos aflorados em seu Ser e tempo, como o ser-aí (dasein), o ser singular que possui existência e vida próprias, sendo o mundo o seu lugar.

Ao fim e ao cabo, o que dele restou não constitui um corpus filosófico, e sim uma série de questionamentos e indagações que deixou sem resposta, perdido na selva oscura de seu próprio linguajar. Isso sem falar nos polêmicos Cadernos negros em que o pensador alemão misturou Filosofia com política, gerando um verdadeiro nó górdio que não conseguiu desfazer.

Por mais um desses paradoxos de que a vida é pródiga, a obra de Martin Heidegger talvez ainda seduza alguns estudiosos em razão do que ficou sem ser decifrado, como uma espécie, algo atípica, de obra em aberto.

Albert Camus e Simone de Beauvoir completam o grupo existencialista do segundo quartel do século XX, ambos eram romancistas. Romancear é filosofar, disse o autor de O mito de Sísifo, prêmio Nobel de literatura.

Simone de Beauvoir teve uma relação conturbada com Sartre. Em A cerimônia do adeus, Beauvoir descreve as reflexões filosóficas de Sartre acerca do processo de envelhecimento.

É de se sublinhar a insistência com que os autointitulados humanistas daquela época negavam a existência de Deus, cuja presença imperceptível pelas vias sensoriais parecia perturbá-los. Este, a meu ver, o ponto nodal do existencialismo ateu, que não cuidou do tema com o devido aprofundamento, talvez por uma questão de coerência com sua ótica materialista, jamais se descolando dessa fixação.

A existência de Deus ou a sua inexistência tem dado margem a infindáveis indagações e especulações desde os pré-socráticos, há cerca de dois milênios e meio. E até hoje persiste sem resposta. Parece até que somos iguais àqueles reclusos da alegórica Caverna de Platão...

Para mim, particularmente, trata-se de um problema que desborda do espectro investigativo da Filosofia, embora me considere cristão. Mas isto é uma opção de foro íntimo. Ontologicamente, a Filosofia trata do ser enquanto ser, que desaparece ao morrer, deixando de ser. O que virá depois é algo que constitui objeto da teologia, da fé, das crenças diversas, das religiões, sejam monistas, dualistas e também da descrença, do ateísmo, do agnosticismo etc. etc. etc.

 Na verdade, a mim me parece, eu que não vou além de um mero aprendiz, que essa controversa e intrincada questão transcende a racionalidade que nos é própria, balizada pela finitude, ou seja, enquanto pudermos exercer o livre-arbítrio, seremos os únicos responsáveis por nossas ações e omissões, durante o tempo e o espaço de nossa breve permanência entre os viventes.

Depois vem o salto no escuro.

Ayrton Pereira da Silva



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Postado por Ayrton Pereira da Silva
1/9/2018 às 10h35

 
UM OLHAR SOBRE A FILOSOFIA (PARTE I)

De onde viemos e para onde vamos? — eis a pergunta multimilenária que já virou lugar-comum. Mas que jeito mais pífio de começar um texto, dirão uns, enquanto outros, no mesmo tom, hão de pensar: que falta de imaginação...

Doce e ledo engano. Nada há de tão complexo como tentar reciclar o chumbo em ouro, como pretenderam os alquimistas, e deram com os burros n’água, como seria de se esperar. É óbvio que aqui não queremos inventar nada; apenas recordar numa linguagem supostamente palatável o que já foi dito e repetido tantas e quantas vezes.

Mas do que se trata, afinal?

Simples: vamos falar de Filosofia. Ah, então talvez aí esteja a chave capaz de desvendar a famigerada pergunta que geração após geração persiste sem resposta, a despeito do assustador progresso da ciência e da tecnologia.

Lamento decepcioná-lo, meu hipotético leitor, mas não é bem assim. Então, pra que serve essa tal de Filosofia: discutir em mesa de botequim? Talvez sim. Pelo menos é o que narra Marc Sautet em seu belíssimo livro Um café para Sócrates, quando o filósofo francês se reuniu, em 1992, no Café de Phares, na praça da Bastilha, com alguns conhecidos para abordarem os acontecimentos presentes, passados, futuros, Filosofia e sabe-se lá mais o que, vindo a dar origem ao “Consultório de Filosofia”, que nada tem a ver diretamente com o Café de Flore, onde, muito antes, Sartre se encontrava com seus pares.

Tal questionamento basilar compele o ser humano a interrogar-se sobre a vida. A vida que nos surpreende quando menos esperamos, é assim mesmo: um eterno paradoxo. Ela, meu hipotético leitor, é hegeliana por excelência — um constante devir, imposto pela natureza para a perpetuação das espécies. A isto chamamos lei nomológica, (müssen, no idioma germânico) ou lei do ter que ser.

Vejam vocês, tão surpreendente é a vida que aqui e agora estou a dar palpites onde não fui chamado a meter o bedelho. É muita irresponsabilidade, convenhamos. Mas está escrito e não tem remédio. Devo prosseguir e ponto. Já estou pronto como a rês a caminho do abate.

Para mim, então, a Filosofia ou mais especificamente o pensamento filosófico é o modo pelo qual podemos entender o mundo e nele nos situar, almejando obter o melhor conhecimento de nós próprios para compreendermos as pessoas e também tudo que nos envolve. Não é para granjear seguidores que a Filosofia se presta, até porque não vai além de uma maneira pessoal, diríamos até personalíssima, de conviver com o mundo cuja face é moldada pelo transcurso do tempo. Ora, isso depende, em última análise, do grau de percepção de cada um. Ocorre em outra linha: a do sentimento, o sentimento do mundo, no dizer de Drummond ou o sentimento do tempo, segundo Ungaretti. Passa-se no território da sensibilidade onde o instinto e a racionalidade se completam para a persecução da verdade.

Trata-se de um problema de ponto de vista: uns veem o mundo em superficialidade, outros em profundidade. Os que enxergam o mundo pela superfície passam ao largo do que se oculta sob as aparências dos outros e do próprio mundo. São os pragmáticos: existem, mas não vivem em plenitude, são incapazes de contemplar um pôr-do-sol, perdem os espetáculos mais valiosos que a vida nos oferece de graça. E principalmente não percebem o que se oculta dentro de si, o estranho que nos coabita, o alter ego, o outro eu, que muitos conceituam como alteridade ou como outridade. É exatamente do ser humano e do mundo onde vivemos que cuida a Filosofia.

O fato de serem pragmáticos, porém, não ilide a capacidade de apreciar a natureza, se se dessem tempo para fazê-lo. Mas têm objetivos mais urgentes a atender e sua atenção se volta para eles.

Por outro lado, não há que confundi-los com os filósofos e doutos do Pragmatismo, corrente de pensamento assim denominada por William James.

Esse não foi o caso dos gregos da Antiguidade, que dispunham de tempo para refletir, quando surgiram os primeiros pensadores chamados físicos, porque physis era o nome dado à natureza. Foram eles os primeiros filósofos que começaram a investigar o mundo à sua volta. Eram os pré-socráticos, como Pitágoras, Heráclito de Éfeso, Parmênides e Tales de Mileto, tido como um dos mais proeminentes filósofos do seu tempo. Com efeito, foi ele quem especulou sobre a origem da natureza e se perguntou como era possível considerar todas as coisas como uma realidade única que se apresentava através de várias formas. Essa indagação foi o salto inaugural, o patamar evolucionário que impulsionou a Filosofia até os dias atuais: a ideia de unidade que nada mais é do que o conceito de essência, pedra de toque do existencialismo, que representa o patamar evolucionário a que se chegou no século XIX com o filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard, falecido por volta de 1855, com 42 anos.

A mitologia e a poesia da Magna Grécia constituíram as fontes primárias da imaginação, tão rica em achados. A figura mítica do centauro, metade cavalo, metade humano, nada mais significa senão o que fomos e ainda somos, seres congenitamente divididos entre instinto e razão. Complemento-a, por assim dizer, a poesia — notadamente a Ilíada e a Odisseia — de Homero, o cego que enxergava com a imaginação, abeberou-se naquela fonte cristalina, tão recheada de metáforas.

Com o surgimento da Filosofia liberta das amarras da imaginação, o pensamento voltou-se para o raciocínio lógico, para o exercício da razão.

Estava pronto o cenário histórico da época áurea da Filosofia, iniciada por Sócrates.

Sócrates, segundo a quase unanimidade dos especialistas, foi quem propiciou o desenvolvimento da Filosofia ao voltar seu olhar percuciente para o microcosmo, ou seja, o ser humano, já que os filósofos que o antecederam haviam explorado o universo, isto é, o macrocosmo. Desse modo atingiu-se a completude da Filosofia, abarcando a natureza em sua integralidade. Seu aforismo era: ”conhece-te a ti mesmo”, que até hoje subsiste entre nós e foi grafado no pórtico do templo de Apolo, onde se localizava o Oráculo de Delfos, cuja sacerdotisa o proclamou como o homem mais sábio já conhecido, ao que Sócrates murmurou com humildade: ”Só sei que nada sei”.

Para Sócrates só é sábio quem admite a própria ignorância, o que veio a ecoar, muitos séculos depois, por ninguém menos que Isaac Newton, formulador da lei da gravitação universal, bem como das leis do movimento. Eis o que disse o grande físico e matemático: o que sabemos é uma gota; o que ignoramos é um oceano.

Sócrates utilizava a dialética de modo construtivo, em tom de diálogo — isso consubstanciava a maiêutica socrática, ou seja, o parto das ideias. Consistia a maiêutica em uma sucessão de indagações que o filósofo fazia a seus discípulos, inclusive Platão, até chegar ao cerne das questões, isto é, até que se chegasse à verdade relativa de cada resposta. O grande pensador ensinava como alcançar, por meio da lógica, o significante que se oculta por trás do sentido das palavras, que, para ele não passavam de um meio de busca da verdade, ao contrário de Zenão e dos sofistas que valorizavam as palavras como um fim em si mesmas.

A morte de Sócrates, aos 70 anos (399 a.C.), condenado a beber cicuta, ocorreu por força da acusação de corromper a juventude ateniense com suas críticas a respeito dos privilégios da aristocracia grega em detrimento da plebe. Além do mais, renegava os deuses do Olimpo, pois acreditava num Ser Supremo desconhecido, talvez uma Inteligência Ordenadora do Universo. Sócrates era monoteísta, opondo-se ao politeísmo vigente na Grécia da Antiguidade.

Ressalta Will Durant, em sua História da filosofia, que Platão nos Diálogos (Críton e Fédon), produziu uma das páginas mais belas e comoventes da literatura universal, ao fazer a Apologia de Sócrates.

Platão, por seu turno, tornou-se mestre de Aristóteles, terceiro pilar do arcabouço que originou a Filosofia atual.

Em seu Corpus Aristotelicum, criou a Metafísica, que vem a ser algo “Depois da Física”, privilegiando o pensamento abstrato. O Estagirita, como também era conhecido, foi mestre de Alexandre, o Grande, que ampliou seu poder conquistando várias nações. Sempre foi grato a Aristóteles, ordenando que enviassem a Atenas animais e vegetais das terras distantes que agregava ao seu império, vale dizer, todo o mundo conhecido: a Grécia então unificada fazia parte da Macedônia.

Nenhum dos discípulos aristotélicos destacou-se como seu sucessor. Abriu-se então um hiato na Filosofia Ocidental até que surgissem novos filósofos que pudessem preencher o vazio deixado com sua morte.

Ayrton Pereira da Silva



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Postado por Ayrton Pereira da Silva
4/8/2018 às 17h52

 
PATÉTICA

Mais do que nada

Menos do que nada

Tudo e nada

Tudo é nada

O que se soma

e o que se subtrai

a vida traz

a vida tira

a vida trai

 

Eis que o passado

se passou num átimo

a quem atônito

viu nascerem os dias

para morrerem nas noites

ardendo queimando

anos a fio

até o fim do pavio

 

Não obstante seguimos

atravessando os caminhos

entre os amores e dores

entre desejos e sonhos

tropeços sustos recomeços

dramas mortes de permeio

 

Que belo quadro compõe-se

na manhã primaveril

que Cronos come aos pedaços

com seus dentes de esmeril

 

O aceno ao longe do cais

as formas se desfazendo

as cores esmaecendo

a densa névoa escondendo

o adeus de cada partida

o vento contra levando

todas as vozes amigas

 

Mirando a vida é o que vejo

no exílio de um quinto andar

Vejo um renascer do quadro

cor a cor traço por traço

em arte de imitação

um quadro que se repete

sem qualquer renovação

 

E a mecânica celeste

joga os dados da ilusão...

 

...e tudo afinal é nada

aquém ou além do nada

nem mais nem menos que nada

a quem se afoga no agora

na aridez dessas horas

como um náufrago sem mar

Ayrton Pereira da Silva



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Postado por Ayrton Pereira da Silva
2/6/2018 às 15h22

 
ZERO ABSOLUTO

Perdera-se de si mesmo: ignorava por que fora parar preso entre as quatro paredes de pedra daquela masmorra medieval em pleno século XXI, nas mãos de cruéis torturadores da Inquisição, acorrentado a uma tábua que ao girar de uma roda, manipulada por um carrasco esticava seu corpo até seus ossos estalarem, provocando uma dor lacerante que o fazia uivar em desespero, para confessar algo que nem vivera. Estava deslocado no tempo e no espaço e achava que enlouquecera.

Foi acordado com seus próprios gritos, suando em bicas e todo urinado. Que merda! xingou e correu até o banheiro para vomitar às pressas. Lavou o rosto e uma súbita sensação de estranhamento o dominou. Será que tudo aquilo não passara de um sonho, ou melhor, um pesadelo, ou será que não?...

Não sabia responder. Achava-se como um fugitivo de uma bolha do tempo, de onde escapara para uma nova vida, por artes bizarras, quem sabe até arcanas, que lhe evocavam resquícios de ocultismos e de magias.

Como quer que fosse, era foçado a começar do nada, do zero absoluto, como se voltasse ao ensino primário, aprendendo aritmética, as quatro operações, e voltando àquele suplício, que iria durar muitos anos que já não lhe restavam, seu horizonte temporal prenunciando a chegada do inverno de sua existência. Logo, logo, chegaria ao zero absoluto.

Não, não haveria tempo para reaprender álgebra. Meno male — o que já era um consolo.

Devia andar pela casa dos oitenta, segundo o testemunho dos vizinhos, aquele idoso polido, mas casmurro. Ouviam-no cantarolar às vezes alguns pedaços de árias que eles desconheciam, enquanto lavava a roupa no tanque ou tomava um banho, até outro morador idoso como ele reconhecer as tais cantilenas desconhecidas pelos demais, decifrando o enigma que embasbacava muitos moradores: eram árias, ou seja, partes de óperas. Então a cegueira linguística que toldava os olhos alheios desapareceu e abriu-se uma abertura para a luz...

Depois de seu banho matutino, aquele octogenário sistemático e casmurro ia à padaria comprar uma baguete ainda quentinha e o jornal do dia. Era um homem de hábitos austeros. De seus haveres, nada se sabia, apenas que não deixava de pagar suas dívidas, disso ninguém duvidava nem duvida, pois na portaria do prédio antigo e malconservado jamais chegou qualquer aviso de cobrança em seu nome.

Aos que, por mera curiosidade, mais que justificável e natural, devo responder-lhes com uma pergunta: num texto ficcional onde tudo é de mentira para que nominá-lo, se não tem certidão de nascimento, carteira de identidade, CPF etc. etc. etc.?...

Deem a ele o nome que lhes aprouver: Manuel, Sócrates, Eliot, Gaudí, La Fontaine, Freud, Goete, Van Gogh, Jacob, Rachmaninoff, o que quiserem — e tudo não passará de um rótulo, mero pedaço de papel que se cola em frascos, latas e embalagens de todo tipo.

Mas a curiosidade humana não tem limites. Às escondidas, abriram até a lata de lixo em frente à porta daquele velho casmurro e sistemático em busca de alguma pista e nada acharam além de uma caixa de leite desnatado, cascas de legumes de bananas, tiras de papel higiênico usadas para o que servem, enfim coisas irrisórias até para aqueles indivíduos da espécie saprofítica, que, conforme consabido, se nutem da podridão.

Na vida, porém, deixamos rastros visíveis e invisíveis. Estes, aliás, são os mais significativos, e se ocultam no acervo de ecos e de sombras que carregamos na mais recôndita memória, o que, de resto, não constitui novidade alguma sob o sol. Ali estão nossos segredos, nossos medos, nossas covardias, nossos amores, rancores e toda sorte de coisas que nos causam constrangimentos, nesse baú sem alça, que com enorme sacrifício somos forçados a levar conosco e pesam, pesam muito, além provocar pesares, como a hipocrisia e o farisaísmo com que nos portamos muitas vezes. Mas é melhor parar por aqui, para alívio nosso e felicidade geral da nação.

Trocou a rosa solitária na jarra de pescoço fino e longo, que discretamente fazia companhia à foto de uma bela senhora de aproximadamente quarenta anos, num ritual que a cada semana se repetia naquela sala modesta, onde mal cabia a mesa com quatro cadeiras, duas poltronas de espaldar alto e um armário baixo, que ele não conseguia identificar se era um buffet ou um étagère, antiga herança de família que lhe coube em sorte, à falta de outro herdeiro interessado.

Não saberia se fora isso ou algo completamente diferente. Seria ele um fugitivo de outra vida, vivida aqui mesmo, sabido que somos vários ao variar dos tempos? Recusava-se a refletir a respeito, embora a dúvida que o assaltava com certa frequência, que ele enxotava aos pontapés, sem buscar refúgio em teorias anímicas, às quais tachava de muletas metafísicas, nos momentos de ácida ironia.

Sobreviver a todos os amigos é a maior desgraça que pode acontecer a um homem — lera recentemente num livro de um autor de sucesso, cujo nome perdera nas lacunas infindáveis da memória. Grande verdade esta, ele comentava, às vezes, para a jovem senhora da foto, que franzia a testa para ele. Seria caduquice, ilusão de ótica, mas como, se já ocorrera toda vez que tocava no assunto e ela reagia assim? Melhor deixar quieto, como falam agora.

Talvez mosca quase despercebida no início destas páginas pudesse revelar o conteúdo do monólogo do velho casmurro e sistemático ante o retrato, mas seria exigir muito de um reles inseto, díptero e impertinente. Não estamos mais no tempo das prosopopeias e ponto. Manda a humana razão se conclua que para ali fora a mosca não por bisbilhotice, mas pelo odor da rosa emurchecente trocada por outra rosa em pleno viço, pois bem conhecido é o gosto do moscardo pela natureza morta em processo de decomposição.

Pelas frestas da veneziana descascada filtrava-se um caminho de luz iridescente, onde o brilho das partículas de poeira em suspensão era o luciluzir dos astros e estrelas dentro da sala acanhada. O velho casmurro e sistemático olhou aquela cena inusitada, mas continuou aferrado ao seu negativismo teimoso e mal-humorado, eu não preciso disso, prefiro as praias infindas de brancas areias e mares de um azul sereno, que revisito quando fecho os olhos, não em sonho e sim desperto. Visões encantatórias abriam-se então às suas retinas cansadas, com a concretude e clareza das coisas presentes. Quem sabe um dia, revisitaria, de fato, esses lugares mágicos e inefáveis. Era um projeto seu, talvez o último ou, quem sabe, um devaneio senil. Restou-lhe a dúvida...

... e aquela mosca pousada em seu ouvido esquerdo, sem qualquer gesto que a repelisse. Antes de explorar o labirinto dos ouvidos, que acenava com muitos prazeres para o seu paladar, a mosca, bem à vontade, esfregou as patas dianteiras uma na outra, daquele modo ancestral que todas as moscas fazem, à semelhança dos seres humanos ao lavarem as mãos, e preparou-se para o banquete...

Ayrton Pereira da Silva



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Postado por Ayrton Pereira da Silva
3/5/2018 às 17h07

 
TRÊS TIGRES TRISTES

  1. A MEIA VOZ

É preciso escrever baixo.

Então, rabisco em surdina:

a poesia, meu amor,

depois dos oitenta

  • — é clandestina.
    1. ANTIBIOGRAFIA

    Acho que a vida

    inteira

    entrei por portas cerradas.

    Ou me enganei

    de endereço

    entrando em portas erradas.

    (Assim me resumo

    à grafia

    de apenas duas palavras).

    1. MEMÓRIA

    Dela ficara um retrato.

    Um só.

    Apenas.

    E uma saudade

    imensa

    que dele transbordava.

    Uma dor-rio

    lágrima-mar

    oceanotristeza

    que nascendo juntos

    em correnteza

    daqueles olhos da foto

    invadiam o quarto

    e desaguavam

    nos dois olhos de fora do retrato.

    Ayrton Pereira da Silva



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    Postado por Ayrton Pereira da Silva
    5/4/2018 às 17h19

     
    ACHADOS E PERDIDOS

    Ao contrário de T.S. Eliot para quem “abril é o mais cruel dos meses”, aqui, do outro lado do Atlântico, é quando as folhas caem, atapetando os caminhos do Campo de São Bento e do Jardim do Ingá, enquanto uma brisa leve brinca nos cabelos das crianças nos balanços e nas gangorras dos parques e as andorinhas com suas caudinhas em formato de tesoura pousam nos fios elétricos para depois chilrearem nas copas das árvores frondosas e saírem em álacres revoadas desenhando nos céus caprichosos arabescos, para então pousarem de novo nos fios cruzando e descruzando as penas das caudas como se estivessem tesourando.

    Pode parecer o tema de uma paisagem captada pela paleta de um Monet ou um Renoir, trasladado para esses trôpegos trópicos, mas não é. É apenas uma cena corriqueira de um tempo que acabou. Não tem quadro na parede, como no poema de Drummond, mas como dói...

    Digamos que foi uma época em se respirava o ar fino de abril antecipando a chegada do inverno que ainda obedecia às fronteiras do calendário, com as quatro estações bem delineadas; tempo de roupas de meia-estação, de agasalhos leves tirados do fundo dos armários e gavetas, recendendo a naftalina.

    Sei que é muito nostálgico e até meio piegas falar assim do passado longínquo, ainda mais via internet cuja pós-modernidade não parece a mídia mais compatível com a memorialística.

    Corro, assim, o risco calculado de ser considerado um fóssil (que, alias, já sou), mas não aprisionado para sempre dentro de um pedaço de rocha, como um que encerrava um pequeno peixe visto por mim num museu, quando menino.

    Nos dias de agora, é o perigo que correm todos os que se dedicam a essa espécie de arqueologia no tempo, uma ciência que não trabalha sobre restos, despojos e escombros materiais, mas que se debruça sobre estratos e camadas intemporais, rastreando o inefável, ou, melhor dizendo, o incorpóreo, numa pesquisa imaterial.

    Creio que todos, de vez em quando têm vontade de fugir, o que por muitos é considerado um ato de escapismo diante da vida e até mesmo de covardia. Pra outros, porém, trata-se de um desejo saudável, desde que a fuga, longe de se realizar fisicamente, consista em distanciar-se internamente do aqui e agora, sem necessidade de deslocamento no espaço. Esta, sem dúvida, a fuga mais eficaz e preciosa. Você se move no tempo, entre o bricabraque de um bazar de paisagens, coisas, gentes, animais, revistas, livros, selos antigos, patacões do tempo do império e tudo mais que sua imaginação possa revisitar.

    Talvez isso demande uma preparação, é bem verdade, mas asseguro-lhes que vale a pena e é menos penoso do que esfalfar-se, suando em bicas, numa esteira ou numa bicicleta ergométrica em busca de apuro exterior. Nada contra o hábito saudável da ginástica, que afeiçoa nossa máquina corporal às exigências do quotidiano e tende a garantir, em termos, um envelhecer melhor.

    O que quero significar é que uma coisa não exclui a outra, já que tendem a estabelecer a equação de equilíbrio entre o corpo e a mente — o ideal de Juvenal, não aquele do comercial de uma logomarca conhecida, mas o poeta romano da mens sana etc. etc. etc.

    Você já escolheu para aonde fugir?

    1. PS) Respostas para a posta-restante.

    Ayrton Pereira da Silva



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    Postado por Ayrton Pereira da Silva
    4/2/2018 às 16h44

     
    UM VENTO ERRANTE

    Provindo de remotas mortas eras,

    um vento errante veio vindo veloz

    varrendo os tempos

    e desfolhou as árvores com fúria,

    parecendo trazer uma mensagem:

    “ O que já foi será

    e para sempre se repetirá.”

    Folhas caídas encobriam as ruas,

    os tetos, as calçadas,

    as árvores nuas pareciam espectros,

    vergadas em seus troncos sob o vento,

    e o passaredo com terror calara.

    As gentes se esconderam em suas casas,

    ouvindo os estilhaços das vidraças,

    coisas voando loucas sem ter asas.


    Subitamente então passou o vento.

    A paisagem foi-se aos poucos recompondo:

    era o Futuro, um pesadelo escuro,

    que trouxe o medo, trancado em seu segredo.

    O que será, o que virá agora?, se perguntavam

    mudos, sem articular qualquer palavra.

    Um pesadelo que viveram em sonho

    ou a verdade oculta do que somos?

    Essa verdade, então, se esvanecera,

    desfeita pelo sol do amanhecer.

    Aquele dia jamais se apagaria,

    sabiam todos, sim, todos sabiam

    — e se fecharam sem nada dizer...

    Ayrton Pereira da Silva



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    Postado por Ayrton Pereira da Silva
    3/12/2017 às 17h59

     
    VIVER É MUITO MAIS QUE EXISTIR

    Título capcioso este, não é? Seria bem mais fácil deixá-lo de lado, trocá-lo por outro como quem troca de camisa. Na verdade nem fui eu que o criei, ele é do poeta Jh Mon. Mas, não sei por que, talvez por se assemelhar a um sofisma que me provoca, decidi enfrentá-lo cara a cara, sob todos os riscos que poderão ocorrer.

    Faz muitos anos, em Nova Friburgo, ao voltar do bairro do Cônego, passando por um bosque, visto pela janela do carro, surpreendi-me com uma cena insólita: uma menina e um garoto tentando caçar, com uma rede na ponta de dois bambus compridos, umas borboletas multicores que voejavam por perto. Mostrei a minha esposa aquele flagrante da vida, um dado concreto de realidade, que poderia muito bem ter saído de um filme de Bergman, como Fanny e Alexander, por exemplo.

    Não sei se o bosque ainda existe. Aquelas crianças já serão adultas. Nunca mais voltei àquele amorável burgo serrano, apesar de ter vontade. Mas não somos nós que conduzimos o destino.

    Outra vez, saídos do Cine da UFF, em Icaraí, onde assistimos ao Anjo Exterminador, de Buñuel, impressionante por sua trama e atmosfera góticas, ao voltar para casa de carro, nos deparamos no meio de um cortejo de pessoas estranhamente vestidas, ostentando galhardetes, flâmulas, lanternas acesas com velas na ponta de longas varas. Aonde fomos nos meter agora?, sussurrei, perplexo, para minha mulher.

    Estaria de novo dentro de outro filme? Mas era real o que vivemos e vivenciamos. Era, creio eu, um séquito da PFP, se não me falha a memória já um tanto nebulosa pela corrosão do tempo. Cheguei à conclusão de que estava num mundo surreal que era, todavia, real, se é que dá para entender...

    Aí comecei a matutar sobre tais acontecimentos que desafiavam minha racionalidade e minha lógica. “Viver é muito perigoso”, já o dizia o inesquecível Guimarães Rosa, numa espécie de bordão, em Grande sertão: Veredas. E é.

    Então, tentei conciliar tais fatos inusitados com o nosso quotidiano, quer dizer, com o dia a dia da vida comum, onde o outro está fora do nosso alcance. Seria a vida, em última análise, uma falácia? Mas a vida é o pedaço de tempo e de espaço que a cada um cabe. Depois vem o depois... o desconhecido, o que não sabemos.

    Será que residiria em tal conciliação o misterioso segredo que o ser humano precisaria desvendar? Confesso que não sei, e isso me assombra porque esta questão fundamental envolve a minha própria percepção da vida — o desvelamento de minha verdade, que subjaz no intertexto das aparências. Mal comparando, seria uma espécie de palimpsesto, onde existe, pelo menos, um texto oculto pelo texto que se lhe sobrepõe e que somente nos tempos modernos, com a aplicação de sofisticadas tecnologias, se tornou possível decifrar o até então inextricável.

    Essa tentativa de descobrimento é um contraponto esfíngico: um paradoxo, um oximoro difícil de ser transposto, como a travessia de uma pinguela para chegar à margem oposta. Há o risco inevitável de cair que, aliás, corro agora.

    A meu ver, não há nada mais paradoxal que a vida. A vida, penso, é hegeliana por definição e essência. Desde que nascemos, marchamos da síntese para a análise, o ponto-final de cada um de nós, num processo que sempre se repetirá ao logo das gerações, enquanto vida houver.

    É a nossa predestinação ontológica.

    Durante nossa peregrinação terrena, usamos muitas máscaras, temos, pelo menos, duas personas, uma de uso externo, outra de uso interno, esta da qual fugimos, por ser muito penoso nos encarar diante de nós mesmos, com nossas fraquezas, nossas culpas, remorsos, rancores, pensamentos espúrios, sinistros, coisas que nos envergonham e supomos ter jogado na lata de lixo, mas permanecem naquele baú sem alça — a caixa-preta que todos carregamos dentro de um lugar ilocável do crânio, que não conseguimos abrir.

    Não passamos de reles atores de um teatro planetário, cujas peças inumeráveis são encenadas no velho palco do mundo. A vida de cada um, em qualquer lugar, se resume a isso. No entanto, há personagens que conseguem desempenhar seu papel com mais esmero que os demais. Eles conseguem viver em harmonia com a existência, colhendo as lições de seus erros e acertos, fruto das opções que todos tomamos ao longo de nossa jornada e aceitando-as, como uma forma de aprendizado. E aí se incluem todos os estratos sociais. Foi o grande Ortega y Gasset quem cunhou o aforisma “o homem e sua circunstância”, que significa não poder o ser humano viver sem conectar-se com a realidade exposta diante de seu olhar e que o condiciona a fazer opções em face das encruzilhadas de sua existência. A circunstância faz parte do homem.

    Acredito — porquanto é um imperativo categórico fazê-lo, para que a vida tenha algum sentido — existir ainda, entre nós, quem tenha alcançado o equilíbrio interno, de modo a conciliar-se consigo e com a própria vida, superando os percalços do pedregoso caminho.

    “Viver é muito perigoso”, todos o sabemos, porque não ignoramos nossa finitude. Exatamente por tal motivo, cumpre viver a vida em toda a sua extensão.

    Como é impossível prever o futuro e o passado não pode ser revivido, somente relembrado, o que nos resta é viver o presente, esta sucessão de instantâneos onde transcorre a vida, o nosso lugar, o nosso enquanto, o habitat em que vivemos, amamos, sofremos, viajamos, sonhamos, nos alegramos, nos entristecemos, nos realizamos. Esse breve lapso de tempo cujo espaço é o palco do teatro planetário.

    Ayrton Pereira da Silva



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    Postado por Ayrton Pereira da Silva
    1/10/2017 às 17h01

     
    PETITE FLEUR

                 Ora, a poesia vem

                 qual uma chuva fria

                 a me lavar por dentro

                 ou, quem sabe, o outro

                 que, sob meu protesto, parasita-me.

                 Esfrega então meu rosto na vidraça,

                 mas, vejam bem, é só uma metáfora...

                 Cá estou eu, e não aquele outro,

                 dando de cara em completo espanto

                 com esta folha de papel em branco,

                 e lá vou eu igual a uma criança

                 como se alguém sem nome me agarrasse a mão

                 a ensinar a ler e a escrever

                 num absurdo jardim da antiga infância.

                 Será mentira ou surto de insânia?

                 Não sei sinceramente o que dizer!

                 E ante mim, assim sem mais nem menos,

                 na lauda em branco brota uma flor pequena

                 sob a forma imprevista de uma poema

                 que o outro,  com o prazer cruel da malquerença,

                          — talvez me ensine novamente a ler...

    Ayrton Pereira da Silva



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    Postado por Ayrton Pereira da Silva
    8/9/2017 às 17h13

     
    O CIRCO ESOTÉRICO

    O circo chegou ao vilarejo em meio ao tumulto de clarins e fanfarras que não combinavam, despertando a fúria dos cães vadios do lugar que prorromperam em latidos coléricos, enquanto os galos dos quintais soltavam um canto extemporâneo e esganiçado em sinal de protesto contra a violação do silêncio da tarde.

    Uma estranha trupe de figuras bizarras foi descendo das carroças que mais pareciam aquelas do Velho Oeste, não fossem puxadas por enormes bois de canga, com argolas douradas nas ventas. O mugido dos vacuns se misturava à confusa melopeia como um contracanto de estranhas sonoridades.

    Logo, logo, a população local, acordada em plena tarde pela súbita algazarra, deixou as cobertas e saiu de suas humildes moradas a ver o que se passava.

    O circo, para desencanto geral dos circunstantes ainda estremunhados pela interrupção da sesta, não trazia leões nem elefantes, tampouco engolidores de fogo, mulher barbada ou palhaços.

    Alheia ao que se passava ao redor, a trupe circense começou a armar o picadeiro ao ar livre, e foi uma decepção total para os nativos a constatação que o circo nem cobertura de lona possuía.

    Em meio ao espanto geral, um cavalheiro surgido do nada, envergando fraque e cartola, desenhou no ar, com suas luvas brancas, o anúncio de que o espetáculo iria começar no justo instante em que a estrela Vésper acendesse a primeira luminária do céu. “Este é o Circo das Estrelas”, foi a frase final que escreveu, com letras maiúsculas, no ar. Deixou que as palavras, formando frases perfeitas pairassem suspensas no espaço, e depois as soprou, transformando-as num bando de borboletas multicores. Houve um oh! de surpresa de todos os moradores, já magnetizados por tantos eventos que contrariavam a realidade.

    Quando a noite desceu por trás dos montes, as lamparinas das casas se apagaram e o povoléu, umas cem almas, se tanto, acorreu ao logradouro baldio, carregando tamboretes, bancos compridos e cadeiras, pois o circo sem lona ali instalado só tinha mesmo o picadeiro. Estavam ávidos de curiosidade diante da perspectiva de sonharem, de novo, acordados.

    No centro do palco, apresentou-se um homem de bigode e cavanhaque bem cuidados, com um fardamento que lembrava o dos vaga-lumes dos cinemas antigos, dizendo-se um mago. A um gesto seu, ouviu-se o rufar de tambores e taróis que certamente não provinham de nenhum instrumento de percussão visível, nem

    de aparelhagem de som alguma, até porque naquele vilarejo remoto a eletricidade ainda era algo desconhecido.

    Então, o homem que se dizia um mago declarou que não era mágico, mas apenas um humilde aprendiz de feiticeiro. Os moradores se entreolharam em silêncio, mas o ilusionista não pareceu notar aquela troca muda de olhares que sinalizava o descrédito da plateia.

    Uma menina de uns nove anos, notória por sua beleza, foi convidada a subir no picadeiro, onde já se encontrava a estranha forma de uma caixa negra da altura de um pé-direito.

    “Pode entrar na caixa, Samaria”, disse-lhe o mago com delicadeza. A garota arregalou os grandes olhos de água-marinha emoldurados por pestanas muito louras, tal o seu espanto: como é que ele sabe o meu nome, se nunca vi esse mágico na vida? A menina murmurou para si mesma.

    Do sucedido entre o sorriso do mago e o sussurro inaudível da menina, o público nem sequer tomou conhecimento.

    Quando o mago abriu a caixa onde a menina entrara, uma exclamação de assombro estremeceu a plateia: a caixa estava vazia!

    Matronas de joelhos calejados por incontáveis genuflexões no confessionário da capela e nas duras penitências, persignaram-se em uníssono. A mãe de Samaria sofreu um desmaio, obrigando o pai a guardar a garrucha, que já sacara da cinta, para segurar a esposa obesa antes que se esborrachasse no chão. O pároco da aldeia ameaçou o mágico com os horrores do fogo do inferno, numa prédica virulenta, mais cuspida que pronunciada e que, devido ao tumulto generalizado, só foi captada pelos ouvidos apurados do ateu do lugar, que carregava consigo o estigma da licantropia. Ele sorriu então um raro sorriso, mostrando por momentos seu esgar canino.

    Como se não bastasse sua fama de lobisomem, eram seus os artigos heréticos da modesta gazeta de folha dupla, que circulava a cada quinzena entre os do lugar, composta numa prensa contemporânea de Gutenberg, cujos exemplares eram comprados na barbearia onde se juntavam os homens para assuntar as modas e maldizer dos ausentes. Esses artigos ímpios eram a matéria-prima dos sermões coléricos do pároco da aldeia, que, do alto do púlpito, relampejava e trovejava predições terríveis e indescritíveis castigos para os descrentes e os detratores da religião.

    Suando em bicas por todos os poros, o mago se esforçava por trazer de volta a menina desaparecida. A muito custo, surgiu em seu lugar uma ave imaculadamente branca com estranhos olhos de água-marinha e cílios louríssimos.

    − Eu bem que avisei a todos que não sou mágico! − declarou o homem fardado de vaga-lume, num tom solene e categórico.

    Nisso, o insólito pássaro saiu da caixa negra que estava aberta e tatalou as asas num voo majestoso, subindo aos céus. A plateia então prorrompeu em palmas estrondosas, enquanto um tiro certeiro desferido pela garrucha do pai da menina fez tombar o mágico no centro do picadeiro, mas a assistência, com os olhos pregados nas alturas e os ouvidos ensurdecidos pelas palmas ininterruptas, extasiada pelo espetáculo miraculoso jamais visto e sequer imaginado, nem se apercebeu da morte do mágico, como se fosse um dramalhão barato de circo mambembe de última classe.

    Ninguém jamais assistira a algo assim.

    E o fantástico episódio da menina que se transformou em avoante virou lenda, transmitida de boca em boca através das gerações, sendo até hoje contada e recontada, enquanto houver vida naquele lugarejo perdido...

    Ayrton Pereira da Silva



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    Postado por Ayrton Pereira da Silva
    13/8/2017 às 13h18

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