Gostei tanto da última coluna do Paulo Salles que resolvi surrupiar sua idéia e fazer um balanço do meu primeiro ano no Digestivo. Começo 2002, portanto, com um plágio. Não poderia começar melhor: a tendência é que eu melhore ao longo do ano – ou, ao menos, seja mais original. É sempre mais recomendável progredir do que regredir, como disse o primeiro macaquinho ereto, milhares de anos atrás. Aliás, ele também começou com um plágio, “à imagem e semelhança de deus”. Evidentemente deu errado, e o macaquinho embruteceu – teria sido melhor nunca ter descido da árvore.
Foram 36 colunas, uma apresentação, um texto para o especial “Como tudo começou” e algumas notas para a seção Peristálticas.
Meu grande hit foi a coluna “Os universiotários”, uma quase bem-humorada crítica à falta de educação (em todos os sentidos da palavra) da maioria dos brasileiros. Me rendeu dezenas de emails ofensivos. Às vezes o colunista é como juiz de futebol – tem uma mãe só pra ser xingada. Quando resolvi explicar pormenorizadamente o que penso, em “Os universiotários 2 – a revanche”, fui bem menos lido – em compensação, bem menos insultado.
A lição que tirei é que os leitores preferem colunas diretas e engraçadas, e não têm paciência para algo mais sério e sofisticado. Se eu escrever um texto argumentando com infinita paciência por que sou totalmente contra o Lula, não obterei repercussão. Mas se publicar uma nota dizendo que ele não passa de um idiota cheio de dedos, aí sim serei lido e comentado.
Mas o que eu realmente gosto de escrever é literatura; ou imitação de literatura. Como nosso editor não quer morrer de fome, ele suplica para que façamos textos opinativos sobre assuntos atuais. Mesmo assim, eu dou um jeito publicar, de quando em quando, uma cronicazinha, uns versinhos, um fragmento literário. Cerca de 10% das minhas colunas podem ser chamadas, usando aspas, de literárias. As crônicas costumam fazer sucesso principalmente entre as mulheres. Várias me escreveram elogiando minha suposta sensibilidade, meu suposto talento. Uma ou outra viraram verdadeiras amigas virtuais. Lembro sempre do Bukowski abrindo a porta pra pegar suas cartas, enquanto duas mulheres semi-nuas enfeitam a sala. Bukowski era feio como o diabo. O carteiro, não acreditando naquelas mulheres, pergunta: “Mas Charles, me diga uma coisa: como é que você consegue isso?”. O velho safado responde: “Datilografando”. Mas posso garantir à vocês que na minha sala não têm mulheres semi-nuas. Aliás, nem móveis têm. Aliás, nem sala eu tenho. Continuo sem dinheiro e sem mulheres.
Outra coisa que gosto de fazer é misturar ficção com resenha e crítica. A maioria dos jornalistas brasileiros, quando comenta um evento cultural, é burocrática até o último botão do paletó. É sempre a mesma ladainha, os mesmos clichês. Quando trabalhei na Folha de São Paulo, convivi com alguns jornalistas que tinham personalidade, inteligência, espirituosidade e sabiam se expressar. Mas quando eu pegava o jornal pra ler, parecia escrito por uma única pessoa. Minha hipótese era de que um velhinho morava nas escadarias do velho prédio da Barão de Limeira, e quando todos iam pra casa dormir (ou pro boteco beber), o velhinho irrompia na redação e reescrevia o jornal inteiro. Velhinhos como esse são o grande mal da imprensa brasileira.
Quando visitei a mostra Bienal 50 anos, por exemplo, em vez de escrever seguindo o padrão convencional do jornalismo que se pratica nos cadernos culturais, inventei a Inquisição Cultural, uma organização formada por pessoas que odeiam boa parte da arte contemporânea. Fiz a Inquisição tacar fogo nas instalações da mostra e queimar uma professora de história da arte. O leitor pode ou não gostar do texto, pode ou não concordar com o que penso sobre instalações, mas uma coisa precisa me conceder: eu tento fugir da regra e nadar contra a corrente. Acima de tudo, tento não ser chato, escapar do monótono monotom do jornalismo robótico. Outro exemplo é a coluna que escrevi sobre o filme Amnésia. Foi escrita de trás pra frente e pode ser lida tanto de cima pra baixo, como de baixo pra cima. O resultado talvez tenha ficado ruim. Mas o principal, a meu ver, é lutar contra o velhinho da Folha.
Se vejo defeitos nos quase quarenta textos que escrevi, e vejo enxames deles, sei que não neguei meus princípios, que fui sincero com o que sou e que me dediquei para entreter o leitor ao mesmo tempo em que tentava estimular seu senso crítico.
Entre saldos e prejuízos, strikes and gutters, ups and downs, acho que, se não lucrei, também não perdi.
Agradeço a todos os leitores, e desejo-lhes um felicíssimo ano novo. Que o Digestivo tenha uma vida longa, e que continue sendo uma importante – e divertida - alternativa ao velhinho da Folha.
citação da semana
“A diferença entre jornalismo e literatura é que jornalismo é ilegível e literatura não é lida.”
Oscar Wilde