Quem lê o diário de Cesare Pavese - O Ofício de Viver(1) -, escrito entre os anos de 1935 e 1950, percebe, em certo momento, uma inflexão rumo à angústia, um desvio na direção da morte, uma escolha que, a princípio apenas sugerida, acentua-se, ganha dimensões inusitadas e, por fim, encontra o desfecho do suicídio.
A 13 de janeiro de 1949, em breves linhas, o escritor expõe um novo sentimento em relação aos homens: "Viver entre pessoas é sentir-se folha solta. Vem a necessidade de isolar-se, de fugir ao determinismo de todas aquelas bolas de bilhar." A figura das esferas coloridas, espalhando-se a esmo sobre um plano coberto de feltro verde, explicita uma reação de estranhamento, como se Pavese olhasse as pessoas do alto e, o principal, como se não fizesse parte delas. As bolas que se entrechocam sem qualquer sentido, impassíveis, para, no momento seguinte, afastarem-se em outra direção, formam uma poderosa imagem da sensação de desencontro. Ela clarifica a percepção de Pavese sobre o quanto são fugidias as relações nos grandes centros urbanos, cujas aglomerações não passam de refúgios para milhares de solitários que, movidos pela pressa, apenas esbarram uns nos outros superficialmente.
Em fevereiro, a 27, ele reafirma, não só em relação às pessoas, o seu fastio:
"Noite nítida, limpa, fustigante. Antigamente excitava meus sentidos. Agora, não. Para senti-la, preciso lembrar-me e dizer: 'É como naquele tempo.' Nem aquele desejo intenso de falar, de me impor, me invade mais. Devo isso à ânsia eterna, à neurose do já acontecido, do iminente cataclismo? Ou à idade, à minha glória-segurança, de certa forma atingida?
Na realidade, o único motivo que me toca e mobiliza é a magia da natureza, o olhar cravado na colina. Não tendo em mente esse tema, mas um humano, um jogo urbano e moral, eis que a fantasia é preguiçosa."
Depois, a 28 de novembro do mesmo ano, as primeiras sensações físicas da angústia o torturam:
"Ocorre à noite, quando começo a adormecer. Qualquer ruído - estalo de madeira, barulho na rua, distante e inesperado grito - me sorve como um redemoinho que mexe com meu cérebro e mexe com o mundo. Na hora espero um terremoto, o fim do mundo. É um resíduo da guerra, das bombas aéreas? É uma consciência adquirida do possível fim universal? Esgotamento - é uma palavra -, mas o que significa? É agradável, ligeiro sobressalto, como que de embriaguez, e me recupero com os dentes cerrados. Mas se um dia não conseguir me recuperar?"
Lentamente, ele se rende aos mecanismos psicológicos da angústia, compartilhando seus dias com o desamparo e a crescente sensação de não saber lidar com os terrores e as emoções que o assaltam.
Em 1950, a 8 de maio, a tortura evoluiu para um tormento físico: "Começou o ritmo do sofrer. Toda tarde, ao escurecer, aperto no coração - até a noite."
Dois dias depois, 10 de maio, a evolução do quadro parece irreversível, pois ele encerra as poucas linhas que escreve com um período que irrompe no texto abruptamente, numa clara alusão ao suicídio:
"O gesto - o gesto - não deve ser uma vingança. Deve ser calma e cansada renúncia, balanço de contas, um fato privado e rítmico. O último compasso."
E, a 16 do mesmo mês, a angústia torna-se uma companheira inseparável: "Agora a dor invade também a manhã."
Os três meses seguintes são os derradeiros. Em 14 de julho, como se elaborasse uma justificativa teórica para sua decisão, Pavese define o suicídio como uma forma de estoicismo.
Em agosto, 16, inicia a despedida: "Meu papel público, eu desempenhei - como podia. Trabalhei, dei poesia aos homens, compartilhei os sofrimentos de muitos."
A 17, mostra-se absolutamente decidido:
"Nada mais tenho a desejar nesta terra, exceto o que quinze anos de fracassos já excluem.
Este é o balanço do ano não terminado, que não terminarei."
Pavese coloca um ponto final no diário em 18 do mesmo mês:
"Basta um pouco de coragem.
Quanto mais a dor é determinada e precisa, mais o instinto da vida se debate, e cede a idéia do suicídio.
Parecia fácil, pensando nisso. Entretanto mulherezinhas o fizeram. É preciso humildade, não orgulho.
Tudo isso dá nojo.
Não palavras. Um gesto. Não escreverei mais."
As últimas linhas denunciam os embates entre a vida e o anseio pela morte. Mas a frase final, o assassinato da escrita, símbolo através do qual ele sempre se expressou, é a antecipação da morte física. A decisão era irreversível.
Em 27 de agosto ele se mata, ingerindo barbitúricos num quarto de hotel, em Turim.
Os motivos que levaram Cesare Pavese a esse trágico final podem ser inúmeros, mas serão, sempre, suposições. O certo - como em todos os suicídios - é a vivência de uma situação limite, um estado para além do qual a possibilidade de continuar a viver é algo inaceitável. No caso do escritor italiano, em 25 de março de 1950 ele descreve uma de suas prováveis razões: "Ninguém se mata pelo amor de uma mulher. As pessoas se matam porque um amor, qualquer que seja, nos revela nossa nudez, miséria, inofensividade, nulidade."
Se nos sentimos nus, miseráveis e nulos, por que continuar a viver? Por que insistir no ofício da vida, se ela nos nega - apesar de nossa insistência - o que nos é essencial para usufruir dela com a dignidade que achamos merecer? Essas perguntas, o animal humano sempre as fará, sob pena de, não as realizando, abandonar sua condição de homem e, portanto, o bem que ele mais deve prezar: a liberdade. Uma liberdade que não deve conhecer limites, ainda que as religiões e o Estado pensem e defendam o contrário.
Os suicidas, seus prováveis motivos e as formas escolhidas para colocar um ponto final à participação no jogo do acaso que a seleção natural comanda, podem ser encontrados no Dicionário de Suicidas Ilustres, de J. Toledo (2). Todos estão lá: rejeitados pela sociedade, doentes, insatisfeitos, repudiados pelo objeto de seu amor, amedrontados, incapazes - física ou emocionalmente - para lutar e alcançar seus sonhos, ou até mesmo aqueles que se mataram sem qualquer motivo aparente. No centro de cada verbete, homens e mulheres que optaram por tomar as rédeas de suas vidas, inclusive - e principalmente - no que se refere a como e quando elas deveriam acabar.
O suicídio, é verdade, escandaliza. Para muitos, Walter Benjamin poderia ter esperado mais um dia, antes de colocar fim à ansiedade de se sentir uma caça prestes a cair nas garras dos nazistas. Para outros, o pacto de Paul Lafargue e Laura Marx - eles decidiram se matar antes dos setenta anos, para não conhecerem os horrores da degradação física - é uma decisão que avilta a natureza e, quem sabe, Deus.
Mas, no que se refere a Deus, qual espécie dotada de inteligência - ou do que ela imagina ser e define como inteligência - não pretenderia elaborar infinitas teorias que lhe assegurassem a vida além da morte? É do nosso instinto natural de autopreservação, portanto, a luta dos metafísicos de todos os matizes no sentido de provarem e assegurarem que nossa vitória sobre as demais espécies - e, presunçosos que somos, sobre a própria natureza - não se esgota com o fim da vida biológica.
O certo, no entanto, é que renunciar à vida pode significar um dever para consigo mesmo, principalmente quando continuar vivendo significaria chegar a um ponto onde seria impossível o cumprimento do que entendemos serem os nossos deveres.
Tal humilhação - a de não poder exercer qualquer controle sobre nossas escolhas - pode ser, a algumas consciências menos frágeis, uma condição inaceitável. Não foi outro o caso, por exemplo, de Artur Koestler, cuja carta de despedida estava escrita desde junho de 1982, preparada para o ato que se consumou em março do ano seguinte: "Depois de haver sofrido uma deterioração física mais ou menos constante durante os últimos anos, o processo chegou agora a um estado agudo, com complicações adicionais que fazem recomendável buscar a autoliberação agora, antes que me encontre incapaz de tomar as medidas necessárias. (...)."
Em suas lúcidas palavras, o escritor de 77 anos - que sofria de mal de Parkinson e de uma leucemia incurável - afirma a liberdade do homem contra a lei da necessidade, uma das desventuras da existência. Membro atuante da EXIT - The Society of the Right to Die with Dignity (Sociedade pelo Direito de Morrer com Dignidade)(3), o suicídio, para Koestler, era um ato deliberado de autodestruição que o libertaria da cega opressão da natureza.
Mas, e Cynthia Jeffries, mulher de Koestler? Aos 56 anos, em perfeito estado de saúde, nada, aparentemente, poderia justificar sua decisão de morrer junto com o marido. Contudo, em um adendo manuscrito à carta do escritor, ela nos explica seus motivos com inigualável simplicidade: "(...) Sem dúvida, não posso viver sem Artur."(4)
"Eu elogio a minha morte", diz Nietzsche em Assim falou Zaratustra, "a livre morte, que chega porque eu quero". Mais que um elogio, o gesto final de todos os suicidas é um ato de reverência ao livre-arbítrio, uma recusa a aceitar destinos que não escolhemos, última fortaleza do homem cercado pela dor, pelo opróbrio e pelas injustas penas da mãe-natureza.
Notas
1. Editora Bertrand Brasil, RJ, 1988.
2. Editora Record, RJ, 1999.
3. www.euthanasia.org/index.html
4. As informações sobre Artur Koestler e Cynthia Jeffries foram retiradas do ensaio de Bernard Avishai, Anales del matrimonio (los riesgos de la devoción), publicado em La Gaceta del Fondo de Cultura Económica, nº 315, março, 1997.
Nota do Editor
Ainda sobre o tema do suicídio, leia "Está Consumado".