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Quarta-feira, 9/4/2003
O Auto da Paixão
Rennata Airoldi

É sem dúvida um grande desafio falar de fé em tempos de guerra. Mas devo dizer que, ao mesmo tempo, é tocante poder assistir, hoje, um espetáculo que, sem ser religioso, fala de nossas raízes, de nossa busca por nós mesmos, pela nossa essência. A fé é inerente à existência do ser humano. Não importa com qual religião, seita ou crença o indivíduo se identifique: importa, sim, a necessidade de encontrar paz. Assim, sem querer, há poucas semanas atrás, me deparei com o Auto da Paixão, direção e concepção de Romero de Andrade Lima, montado pela Companhia Branca de Circo.

Tudo começou em 1993, quando o Romero, também artista plástico, realizou uma exposição de 12 retábulos (esculturas) na Galeria de Arte de Renato Magalhães Gouvêa. Para essa exposição, foram agendadas três apresentações, onde as 12 pastorinhas, através de cânticos e encenações, percorriam as esculturas recontando a Paixão de Cristo. O sucesso dessa iniciativa, unir a exposição a um auto teatral, fez com que as apresentações se multiplicassem e percorressem não só cidades brasileiras, mas também festivais internacionais. A peça já esteve na França, Itália, Portugal. E por incrível que pareça, a procissão continua descobrindo novas ruas até hoje!

Depois desta breve introdução, tão necessária como aquilo que é visto nessa uma hora e quinze de mergulho nas tradições populares, devo dizer que, aqui, o máximo é o mínimo. O que garante a sobrevivência desse espetáculo ao longo de 10 anos? A honestidade, a verdade e a simplicidade. Difícil explicar essas três palavras com outras mais: elas resumem muito o que é a peça. As doze esculturas, que estão dispostas em um circuito determinado, são visitadas pelo público juntamente com as atrizes que cantam, dançam e tocam instrumentos ao longo da encenação. O texto é simples e uma parte dele interpretado por um ator, o único homem do elenco, trazendo assim um contra-ponto às doze vozes femininas. De maneira singela, ouvimos e vemos a história sendo feita a cada nova imagem que se desvenda através de um novo retábulo que é aberto. As portas se abrem e, como nos conhecidos oratórios, revelam esculturas, que se tornam verdadeiras personagens, que, por sua vez, passam a fazer parte da história. Com total interatividade, elas somam e ajudam a compor a cena.

A procissão vai seguindo e, pouco a pouco, os espectadores tornam-se parte daquilo que está sendo contado. A medida que todos se deslocam unidos, a impressão é de se estar fazendo parte do conjunto. É dessa forma que as reações da platéia e as interferências na cena são mais ousadas do que aquelas que normalmente as pessoas têm, sentadas num teatro. Com isso, os comentários são igualmente inevitáveis. Quebra-se totalmente o "gelo" presente na relação palco-platéia. Risos, choro, medo, reflexão. Algo que é tão presente em nossa cultura popular, em nossas festas religiosas e folclóricas. A procissão é, por si só, um espaço democrático, que propõe, de imediato, a comunhão. Sem cooperação e participação de todos, a procissão não segue!

Não me admira, assim, o sucesso dessa peça. É tudo muito nosso, muito brasileiro, mas, ao mesmo tempo, muito humano. Unindo o sagrado e o profano. Há o momento de se divertir e de se recolher. O canto é sempre um complemento às imagens, ao texto e aos instrumentos (que são tocados ao vivo). Todos os pequenos elementos ajudam a compor as cenas. O espaço livre faz com que o espectador não se sinta intimidado e isso resulta num espetáculo acessível à todos.

Além de tudo disso, independente da religião, todos conhecem um pouco da história da vida de Jesus. Como me encanta esse teatro simples: na era da tecnologia, a magia está justamente no elemento humano; e naquilo que a comunicação homem a homem pode despertar. Sensações, emoções, pensamentos. A peça sobrevive até hoje como um milagre dentro de nossa cultura, que estimula, infelizmente, cada vez mais, o descartável e o instantâneo. A realidade é que: por mais tecnologia, por maior que seja a novidade, ainda hoje, percorrendo os diferentes pontos de nosso país, encontraremos as procissões, as festas populares e religiosas, que se repetem ano após ano, na mesma data revelando a tradição imortal de nossas raízes populares.

Para ir além
O Auto da Paixão será apresentado dia 12 de Abril, na R. das Barcas, nš 827. Também no dia 13, na Biblioteca Pública Presidente Kennedy (Av. São João Dias, nš 822). Sempre às 19 hrs. Depois, a procissão segue nos dias 18 e 19, no Itaú Cultural (Av. Paulista, nš 149) às 19h30.

Rennata Airoldi
São Paulo, 9/4/2003

 

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