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Quarta-feira, 27/6/2001
Os ossos do ofício
Daniela Sandler

Um rosto feminino que vale um milhão de dólares? Uma moça que, aos 20 anos, ganhou US$ 16 milhões - e reclama de ter "pulado a vida" entre os 14 e os 20? Atores que faturam dezenas de milhões por ano e reclamam da, digamos, "falta de privacidade"???

Esse tipo de questão sempre me incomodou. Agora, com evento de moda por começar na quarta-feira, os rostos, nomes e números têm me cercado por todo lado, em todas as páginas e telas que abro. Sobre o tal evento nem direi muito, ao menos por enquanto - apenas pergunto por que uma semana de moda de São Paulo tem de ser intitulada SP Fashion Week. Será que estamos atraindo tantos compradores e jornalistas estrangeiros para ter um nome em inglês? E olhem que eu nem sou contra os anglicismos (como alguns colunistas deste Digestivo).

Mas voltando às minhas perguntas iniciais. Eu me acho razoavelmente humanista e preocupada com questões morais. Eu sou contra a invasão de privacidade, a violência da mídia, a exploração do trabalho alheio, o tratamento das pessoas como objetos. Eu não assedio nem bisbilhoto, não consumo os produtos da bisbilhotice jornalística, e no que depender de mim não vou forçar nenhuma adolescente a viver à base de alface e a dormir em aviões por uma semana para cumprir contratos de trabalho. Mas, desculpem, eu não consigo me comover com o "choro" das celebridades que reclamam das desvantagens de sua ocupação.

Ora, vejamos. De fato, muitas das modelos têm de trabalhar jornadas longas, não têm horas suficientes de sono, e sofrem tremendo desgaste físico. Depois de cinco desfiles seguidos, seus pés têm bolhas e machucados como os de uma bailarina. Para ter sucesso, seguem dieta espartana - uma vez eu li que uma modelo ficou o dia todo sem comer porque teria uma sessão de fotos e não queria que o estômago ficasse proeminente. Desmaiou antes de chegar ao trabalho. Gisele Bündchen contou ter ficado quatro horas com vontade de ir ao banheiro numa temporada em Milão, sem poder trocar o absorvente. Reclamou que estava sendo tratada como objeto.

Ué, mas não é justamente o fato de ela ser tratada como objeto que deu a Gisele os US$ 16 milhões (por enquanto) em seis anos? No que consiste a "indústria da moda" (o termo é clichê, mas friso a palavra "indústria" para ressaltar o espírito materialista e comercial da coisa), ou, mais especificamente, um de seus componentes: o circuito das modelos, desfiles e fotografias? São clientes "alugando" o corpo de jovens bonitas para registrar suas imagens e depois vendê-las (as imagens) e, com elas, seus produtos. O cliente pode ser um estilista, um perfumista, uma revista. Vocês podem até me dizer que as modelos estão vendendo sua força de trabalho - mas digam então qual a linha que separa o trabalho de uma modelo de seu corpo e de seu rosto? Esses, claro, são em parte fruto de trabalho (dieta, exercício), mas vocês hão de convir que os atributos mais valorizados são todos genéticos: simetria de traços, altura, cor dos olhos, textura da pele...

Antes que eu cometa uma injustiça, não vou negar que não basta nascer bonita. As modelos ainda desconhecidas dão duro e engolem sapos para crescer na carreira. Gisele mesmo, pelo que li, foi uma dessas que insistiram, deram a cara a bater, bateram perna e se esforçaram para ter contratos e trabalhos.

Mas aí entra a minha pergunta. Quanta gente vocês não conhecem que "insistiu, deu a cara a bater, bateu perna e se esforçou"? Quanta gente no mundo, no Brasil, em São Paulo, não trabalha jornadas longas, não tem tempo de dormir o suficiente, e desgasta o corpo de inúmeras maneiras em seus trabalhos?

Nos meus tempos de arquiteta, visitei a Cohab de Santa Etelvina. Fica a uns 40 km do centro de São Paulo. Muito longe. O caminho é de terra, não tem luz, tem terrenos baldios; o lugar é uma desolação só: predinhos de quatro andares a perder de vista, todos iguais e muito simples. As pessoas que moram lá são pobres. Ouvi relatos de gente que acorda às 3 da manhã, anda uma hora até o ponto de ônibus e toma o ônibus das 4, porque se deixar para tomar o das 5, o veículo vem muito cheio e não dá para subir. Tudo isso para chegar até a estação de metrô menos distante, e daí tomar metrô e mais ônibus para o trabalho. Trabalham o dia inteiro e aposto que também têm bolhas nos pés e varizes, ou mãos machucadas ou desgastadas por produtos químicos ou máquinas. Chegam em casa tarde da noite (além do longo trajeto, há o trânsito), cuidam da casa, da família, e vão dormir muito tarde.

Nenhuma dessas pessoas ganha US$ 250 mil por ano (faixa de faturamento mínima que as agências consideram lucrativa - se em um ano a modelo não ganhar tudo isso, suas chances minguam). As modelos reclamam do estresse de viver entre Nova York - Paris - Milão, circuito percorrido no mais das vezes na primeira classe. Que tal viver entre Itaquera - Jardins ou Capão Redondo - Perdizes, viajando apertado no corredor do ônibus? Famosos diversos (atores, políticos, modelos, artistas) reclamam da falta de privacidade. Pois eu vi famílias inteiras dividindo o mesmo cubículo de um cortiço no Pari - pais, filhos, primos, tudo junto e sem paredes - e compartilhando o banheiro com vinte outras famílias. Isso é falta de privacidade.

Não venham dizer que exagerei (mesmo porque, com a distribuição de renda brasileira, não é exagero usar as classes baixas como fulcro de análise). Pensem em vocês, nos seus amigos. Todos os meus amigos passaram quatro, cinco ou mais anos na faculdade, estudando e se preparando para ser bons profissionais (que estudo seja em parte privilégio sócio-econômico eu sei; mas o bom uso que se faz desse privilégio depende de esforço, trabalho e dedicação). Todos trabalham feito loucos, quase dez horas por dia, às vezes têm de varar noites ou trabalhar de fim-de-semana. Quase nenhum é contratado, não ganham hora extra, não têm benefícios trabalhistas.

Ah, os pés das modelos... Quando trabalhei no jornal (também sem contrato), passava dez horas queimando minhas retinas na frente do computador. Vários amigos meus tiveram lesões nos tendões por esforço repetitivo com o mouse (se o esforço é repetitivo, imagine o trabalho). Não preciso dar mais exemplos - vocês hão de ter muitos mais.

A desigualdade social é muito mais antiga e complexa do que pode supor minha vã filosofia. O fato de as profissões ligadas à mídia e à imagem serem mais valorizadas é um fenômeno social e histórico, com o qual todos nós, parte integrante da sociedade, compactuamos de uma maneira ou de outra. Não é a Gisele que decidiu ganhar os tais milhões - são os empresários que decidem pagá-la (e que devem, portanto, faturar ainda mais), é o público que compra as roupas ou perfumes anunciados, que baba na frente da revista ou do programa de tevê. Também não quero reduzir o problema à "sociedade do espetáculo" (há tantos outros milionários e bilionários cuja riqueza também não compreendo - especuladores financeiros fazendo dinheiro em cima de dinheiro, à custa de desigualdade social; políticos metendo a mão no dinheiro dos nossos impostos; empresários que exploram o trabalho de seus operários). Mas ainda gostaria de entender por que é que no topo estão as tops, enquanto ficam cada vez mais para baixo os professores, engenheiros, médicos, enfermeiros, lixeiros, arquitetos, cozinheiros, jornalistas, escritores, limpadores, mecânicos, operadores de máquinas... Como se alguma dessas e outras profissões fosse inútil, supérflua, desnecessária ou secundária. (Para que limpar a casa ou a rua, consertar o carro, comer; para que ter casa ou carro, quando posso comprar umas roupas da última moda? Para que ler os clássicos quando eu posso ler a Marie Claire?)

Não vou definir, neste texto, se é justo ou não que as tais modelos ganhem tudo o que ganham. Pessoalmente, acho a Gisele linda, e torço por todas elas - muitas, meninas de origem simples. Não quero tirar nada de ninguém e não sou dessas de ficar infeliz com o sucesso alheio.

Mas não vou engolir a comoção humanitária e os ataques de compaixão aparentes no tratamento dado por boa parte da mídia e do público à vida de pessoas famosas, de atores ou de modelos. Não vou esconder o meu riso - de escárnio, claro - quando leio depoimentos de modelos reclamando da sua vida dura, de ter "jogado fora" sua adolescência. Não aceito que leitores escrevam cartas de apoio a artistas cuja privacidade foi invadida enquanto outras questões sociais imensamente mais prementes ficam esquecidas sob os nossos narizes todos os dias. Não tenho inveja - mas também não tenho pena.

Daniela Sandler
São Paulo, 27/6/2001

 

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