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Segunda-feira, 14/4/2003
Gatos em contos mínimos
Jardel Dias Cavalcanti

Para o escritor Franz Kafka, "nós precisamos de livros que nos afetam como um desastre, que nos magoam profundamente, como a morte de alguém a quem amávamos mais do que a nós mesmos, como ser banido para uma floresta longe de todos. Um livro tem que ser como um machado para quebrar o mar de gelo que há dentro de nós."

O livro Sete Vidas: sete contos mínimos de gatos, de Heloísa Seixas, lançado pela editora Cosac & Naify, está longe desta perspectiva lançada por Kafka. Os setes contos que fazem parte do livro encontram no título de um deles sua melhor definição: Zen. Longe de querer provocar sentimentos turbulentos, angustiosos ou desesperados, parece que o projeto da literatura de Heloísa Seixas é nos fazer entrar em contado com uma elegância polida e uma languidez de matizes suaves.

Embora em alguns momentos busque criar uma reflexão filosófica, a partir do universo dos gatos que são temas de seus contos, esse objetivo é quase nulo, se pensarmos no vasto universo filosófico ao qual qualquer leitor mediano pode hoje ter acesso. Mas o que interessa nesses contos é perceber que sua écriture, que forma as descrições de suas narrativas, é construída em comum identidade com o universo dos felinos. A escritura dos contos assemelha-se, portanto, ao "espreguiçar-se com elegância" dos gatos, nos levando a percorrer caminhos sedosos de sedução-descrição, num movimento semi-adormecido que se traduz na tradicional imobilidade dos monges zen-budistas e dos felinos.

Os temas não estão aí para nos provocar surpresas arrasadoras, ao contrário, são sutis, leves, movendo nossos sentimentos por um universo de percepção concentrada, produzida pela união de cores, movimentos anatômicos, sons e intensões próprias ao universo dos gatos. Atente-se para a seguinte descrição: "Ela é capaz de espreguiçar-se com elegância. Mais do que isso, com volúpia. O corpo farto, o ventre generoso, os pêlos sedosos que recobrem tudo — tudo, à exceção do nariz cor-de-rosa — exibem-se com harmonia, num ritmo próprio, enquanto ela se movimenta, lânguida. Esticando as patas dianteiras, alonga-se para trás, até o ponto de tensão máxima, e eu quase posso ouvir o estalar de suas pequenas vértebras. (...) Primeiro, deita-se de lado, deixando entrever a parte anterior do corpo, onde, em contraste com o dorso escuro, seu pêlo é de alvura difícil de acreditar". (do conto "o ritual das lambidas").

No conto denominado "Zen", esta escritura sobre a qual nos referíamos se torna mais clara. Num ritmo que acompanha o universo de um templo budista, "sempre silencioso", um gato passeia entre o colo de vários monges, esfregando-se em cada um, em busca de um carinho singelo e afetuoso. A meditação torna-se, para os envolvidos, a percepção desta carência solícita do gatinho. No final, ficamos sabendo que a mãe do felino havia falecido há pouco. Podemos acompanhar a narrativa deste conto como se estivéssemos entrando em meditação. Cada detalhe escolhido pela autora nos leva a isso. "Anoitecia.", diz ela de forma lacunar, ao abrir o conto. Esvaziamos nossa mente de qualquer interrogação. Estamos aprendendo a aceitar que "apenas anoitecia". Já nos sentimos entrando em meditação. Como os personagens que aceitam a presença do gato, que passeia sobre o colo de cada personagem, nós aceitamos as descrições que se entranham em nossas mentes, nos ocupando apenas com o visível, fazendo cessar qualquer interrogação que destrua esse estado de "vazio", onde a mente silencia-se aproveitando totalmente o momento presente — estamos desfrutando de um estado mental semelhante ao proporcionado pela meditação Zen.

Ao final do conto, o gato, com suas baterias de afeto carregadas, sai para perder-se na noite que se avizinha. Podemos aproveitar esta descrição para dizer que semelhante fato descreve o sentimento que brota de nossa leitura dos contos de Heloísa Seixas. Saímos do livrinho carregados de um afeto simples e sensual, semelhante aos dos felinos e, porque não, contaminados por ele. Atentos aos pequenos movimentos da escritura que se desenhou, à maneira de um monge zen ou de um gato, podemos sair pela noite suave com uma nova vida. E ainda sabemos que, das sete vidas a que temos direito, uma foi bem aproveitada, e que outras podem se desenhar de forma mais instigante ainda. Uma destas vidas, com certeza, será a literatura de Kafka quem nos dará.

Não se pode deixar de dizer que as ilustrações do artista Iran do Espírito Santo são excelentes acompanhantes para as narrativas do livro.

Para ir além




Jardel Dias Cavalcanti
Campinas, 14/4/2003

 

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