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Quinta-feira, 17/4/2003
Babenco traz sua visão do país Carandiru
Lucas Rodrigues Pires

Mesmo depois de mais de 30 anos morando e filmando no Brasil, Hector Babenco não perdeu o sotaque de quem nasceu e viveu infância e adolescência na Argentina. Sua fala mansa e ponderada nada tem a ver com a força e a contundência das imagens registradas em quase duas horas e meia de sua adaptação ao livro de Drauzio Varella, Carandiru. A figura humana e tranqüila do cineasta contrasta com a crueza das cenas que Carandiru carrega, muitas delas próximas do mesmo impacto causado por Cidade de Deus, outro filme que traz a bandidagem como protagonista.

Recentemente, Babenco esteve no MAM de São Paulo exibindo o making of do filme e respondendo a perguntas das mais de 80 pessoas que lá estiveram. Entre os presentes, dois ex-presidiários (um deles morador do Carandiru por mais de dois anos) que tiveram a coragem de se expor e acrescentar algo à discussão. "O mais importante do livro do Drauzio é que ele mostra que a cadeia não é um inferno, tal qual a idéia geral difundida na sociedade. Aqueles homens são seres humanos, com sentimentos e dramas pessoais", afirmou um ex-detento que ficou por sete anos preso em Porto Alegre. Mesmo sem ver o filme, ele conseguiu compreender a visão do cineasta para o livro de Varella.

Assim como em Estação Carandiru, o filme assume declaradamente a visão dos presos. "No livro, o Drauzio conta que só ouviu os presos. Adotei o mesmo ponto de vista do médico-narrador", afirma o diretor. Mesmo assim, não deixa de frisar que seu filme, ou qualquer outro que venha a ser feito, impõe uma verdade que no fundo é um discurso, ou seja, está imbuído de parcialidade. "O filme emana da leitura do livro, não de páginas deles. Eu trago imagens do que é a minha visão daquelas palavras. Qual a versão verdadeira? Todas. Amanhã pode vir alguém e fazer algo dizendo o contrário", explica Babenco.

Carandiru foca o cotidiano de mais de sete mil presos no até então maior presídio da América Latina (o complexo foi desativado e demolido ano passado). A experiência de Drauzio Varella em buscar conscientizar a população carcerária do perigo da Aids, doença que se tornara uma epidemia no complexo penitenciário, começou em 1989. Foi durante esse trabalho que o médico escutou relatos, confissões mesmo ouvidas na enfermaria, localizada no primeiro andar do Pavihão 5. Esses retalhos de vidas, por incentivo de Babenco, começaram a ganhar forma de texto, no que resultou o livro que já vendeu mais de 350 mil exemplares e agora no filme que promete atrair milhares aos cinemas e reaquecer o debate levantado por Cidade de Deus no ano passado.

Muitos críticos vêm afirmando que Carandiru é uma revisita do diretor a sua mais conhecida produção, Pixote - A Lei do Mais Fraco. Babenco já declarou que só foi relacionar os dois mundos quando da montagem do filme, mas relembra que cada um tem história própria e Carandiru não foi realizado com espírito de continuação, apesar de concordar que "os Pixotes de ontem estão no Carandiru de hoje". No fundo, ambos tratam do mesmo espectro social - os marginalizados a quem a sociedade finge que dá chances de recuperação, mas acaba apenas por reforçar o estigma de malfeitor.

O cinema brasileiro contemporâneo tem-se voltado muito à temática social. Seu maior exemplo talvez esteja no ótimo documentário Ônibus 174, de José Padilha. Aqui, o episódio célebre do seqüestro de um ônibus e a conseqüente morte de uma refém e do bandido Sandro do Nascimento, ocorrido em junho de 2000, outra chaga exposta da violência nacional, é o detonador para uma pesquisa sobre os "invisíveis da sociedade" (nas palavras do secretário de segurança do RJ Luiz Eduardo Soares), os excluídos sociais que a classe média alta insiste em ignorar e a segregar em guetos, sem perceber que há muito tempo esses guetos já invadiram seu mundo.

No campo da ficção, Carandiru chegou para somar ao debate levantado por Cidade de Deus, o filme de Fernando Meirelles que narra a ascensão do tráfico e da violência numa favela carioca. Após ver a obra de Babenco, não há como não enxergar paralelo entre eles. Carandiru começa onde Cidade de Deus acaba...

O filme de Meirelles traz o mundo dos bandidos nas ruas, nas favelas. Mostra a evolução do tráfico, as normas de conduta e sobrevivência da malandragem na Cidade de Deus. Termina com a morte do então líder Zé Pequeno, a prisão de outros e a substituição na hierarquia do tráfico. Carandiru desemboca nessa extensão, quando o criminoso chega ao presídio e deve se acostumar com a "nova" vida, ser útil ao grupo para sobreviver. Sobreviver no meio da guerra entre facções criminosas em favelas como a Cidade de Deus descrita por Meirelles é tão difícil ou até mais do que sobreviver dentro do Carandiru. "O grau de marginalidade dentro da prisão é o mesmo de um bairro como Capão Redondo, por exemplo", afirma Babenco, que antes da desativação do presídio acompanhou Varella numa visita, conheceu algumas normas e leis que há entre os presos e até bebeu uma limonada com eles. Conta ele esta experiência: "Um dos detentos me chamou à cela para tomar uma limonada. Tudo limpíssimo! Nem na minha casa teria aquela limpeza, talvez na casa da minha mãe. Aí um deles estava me encarando e eu tremendo de medo. Sabia que não devia demonstrar isso e acabei por perguntar se tinha algum problema. No que ele me respondeu: 'O senhor se importa de eu estar sem camisa?'".

As regras sociais na prisão formam um complexo a mais na exploração da vida na cadeia. O respeito às visitas, às mulheres, à dívida assumida e, principalmente, ao código de silêncio, de não delatar nenhum companheiro, deve ser seguido à risca, sob pena de morrer na ponta de uma faca durante a madrugada. "Eles criaram um código de convivência que no fundo é um modelo de sobrevivência para quem não quer sair dali morto", afirma o diretor. Essa nova sociedade hierarquizada que se vê na Casa de Detenção, assim como na Cidade de Deus, reflete o próprio país, num espaço geográfico em menor escala. Enquanto vemos pela televisão presidente, ministros, executivos, políticos e jornalistas, não temos a oportunidade de ver como funciona a mesma hierarquia no microcosmo desses guetos sociais. São traficantes, faxineiros, enfermeiros, cozinheiros, laranjas pra assumir o crime de outrem e muitas outras "funções" que se amontoam dentro daquele espaço limitado.

Temática corrente nos dois filmes é a exclusão social. Ambos tratam de marginalizados, de "outsiders" da sociedade atual, em que apenas aqueles que têm poder aquisitivo são considerados cidadãos. Nesse sentido, não há diferença entre o bandido Bené de Cidade de Deus e Ezequiel de Carandiru. Enquanto um está preso, endividado e marcado pra morrer, o outro é um dos "donos do pedaço" na favela, mas não tem a liberdade para ir onde quer e nem comprar o que quer. "Olha o grau de exclusão a que chegamos. O cara tem dinheiro pra comprar um shopping inteiro, mas tem de pedir a outro pra comprar umas roupas, pois nunca tinha entrado num shopping. Falta ao Brasil vergonha na cara. Ele se resume a pessoas que freqüentam shopping e assistem TV a cabo", desabafa o cineasta, lembrando que deu emprego a 14 mil pessoas durante quatro meses com a produção de Carandiru.

Na miríade de personagens descritos por Drauzio Varella em Estação Carandiru, Babenco e os roteiristas tiveram o mesmo trabalho que Meirelles e sua equipe enfrentaram para condensar as centenas de páginas e vidas descritas por Paulo Lins em Cidade de Deus. Enquanto um é o retrato da marginalidade em campo aberto, Carandiru limita o espaço físico e remonta as vidas e ramificações daqueles que foram presos.

Babenco elegeu alguns personagens e foi com eles até o final. Entre principais e secundários, são quase 150 atores que desfilam nas telas. A rostos desconhecidos juntam-se famosos, mas sem que estes tenham papel de maior destaque ou importância. Assim, vemos Rodrigo Santoro, Milton Gonçalves, Antonio Grassi e Caio Blat contracenando com uma nova geração de atores que (re)surgiu com a Retomada do cinema brasileiro (Wagner Moura, Sabrina Greve, Lázaro Ramos, Robson Nunes e Gero Camilo) e com rostos inéditos ao público (Aílton Graça, Milhem Cortez, Julia Ianina, Dionísio Neto). Babenco faz questão de lembrar que foi Rodrigo Santoro que se ofereceu a viver o personagem Lady Di ("uma flor brotada no asfalto", diz o diretor), um travesti que teve mais de 2 mil parceiros sexuais e milagrosamente não se infectou com o vírus HIV.

Enquanto no livro a presença subjetiva do médico é sentida a cada linha lida, no filme houve a opção de incluí-lo como mero observador dos fatos, o que é mais fácil de ser absorvido por imagens do que por palavras. Com isso, o Carandiru ganha vida própria, sem a intermediação de uma voz que nos apresente o local (apesar de duas ou três intervenções em off do personagem do médico) e as pessoas. Assim, Babenco buscou escapar de qualquer forma de glorificação ao amigo que lhe salvou a vida quando teve um câncer linfático. "Filmar o livro fazia com que corresse o risco de transformar o Drauzio numa Madre Tereza de Calcutá. Esse afastamento dele no filme foi uma opção de linguagem, narrativa. Sua presença tinha de ser discreta, passiva, mas com a impressão de que ele esteve em todo o filme", confessa o cineasta.

No mosaico de "short cuts" que se tornou Carandiru, o fio condutor da trama parece ser mesmo o próprio espaço físico - o presídio. Seus corredores, suas celas escuras onde se espremiam dezenas de presos, o pátio onde recebiam as visitas, a enfermaria suja e pestilenta, o campo de futebol de barro... Por este espaço, ao mesmo tempo opressivo e libertador, seus personagens desfilam dilemas, escolhas, dramas, sentimentos, arrependimentos, saudades, lembranças. Por dar vazão ao ser humano que existe em cada um dos criminosos, uma opção clara à proposta de Varella em ver os presos como seres humanos e não como bandidos assassinos ("estava ali para ajudá-los e não para julgá-los", escreveu o médico), Babenco traz no gene do filme sua postura diante da crise penitenciária e da violência imposta a todos atualmente. Essa crítica, acentuada pelo tom seco e cru (que muitos identificam com certo tom documental) da fotografia de Walter Carvalho, está longe do denuncismo panfletário barato e atingirá seu ápice no final da fita, com a seqüência da rebelião no Pavilhão 9 e conseqüente invasão e massacre por parte da tropa de choque da PM, fato ocorrido em 2 de outubro de 1992.

Babenco acredita numa verdade - a sua - e, mesmo que transmitida via ficção, vai às últimas conseqüências, colocando claramente que houve um massacre contra a população desarmada e sem chances de defesa (numa cena, um policial invade uma cela, metralha vários e deixa um vivo e diz: "Você fica pra contar a história". Sai da cela, o preso sorri aliviado, mas o mesmo policial volta, dá um sorriso cínico, diz que mudou de idéia e o fuzila a queima-roupa). Mesmo que sejam questionáveis fatos que o filme retratam, como a chuva de facas e paus que se segue após o diretor do presídio pedir aos presos que se acalmassem e voltassem a suas celas, Babenco ousa dizer o que muitos têm medo. "Os personagens do filme não existem naquela totalidade. Todos os nomes são fictícios, a personalidades. Os únicos que coloco e deixo claro são o governador, o secretário de segurança e coronel que deu a ordem de invasão". Ainda indignado, confessa: "Quantos foram mortos não importa! Se 111, 14 ou 184, isso não tem a menor importância!!".

Uma cena em Carandiru talvez sintetize bem a visão do diretor para o fato: entre os cadáveres ao chão ensangüentado jogados no corredor do pavilhão, um cão pastor caminha farejando algo. Ele encontra um gato e, com delicadeza e receio, se aproxima dele, quase a lhe tocar focinho. Um não ataca o outro. Eis talvez a maior mensagem de Carandiru...

Post Scriptum
Para quem gosta do tema, no Festival de documentários É Tudo Verdade está sendo exibido o filme O Prisioneiro da Grade de Ferro, dirigido por Paulo Sacramento. Nasceu de um projeto junto a presos do Carandiru em 2001, quando a equipe de Sacramento entregou aos próprios presos câmeras digitais para eles próprios filmarem o que quisessem. Daí o subtítulo de auto-retratos dado ao filme. Carandiru é película em forma de ficção; O Prisioneiro da Grade de Ferro tem praticamente o mesmo conteúdo, as mesmas abordagens temáticas daquele, com a vantagem de ser um documentário filmado pelos próprios protagonistas...

Lucas Rodrigues Pires
São Paulo, 17/4/2003

 

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