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Terça-feira, 15/4/2003
Arte em meio à tragédia - Roman Polanski
Maurício Dias

O cineasta Roman Polanski nasceu na França em 1933. Seus pais, judeus, se mudaram para a Polônia quando ele tinha três anos. No futuro, iriam se arrepender desta decisão: imprensada entre a União Soviética Stalinista e a Alemanha Nazista, a Polônia foi o país que mais sofreu com a Segunda Guerra Mundial. Quando Roman tinha oito anos, seus pais foram levados para um campo de concentração, onde sua mãe morreu. O garoto vagou pela zona rural, morando com diferentes famílias católicas. Entre suas lembranças do período está a de soldados alemães disparando na sua direção apenas para vê-lo correr.

Após a guerra, reencontrou o pai. Aos quatorze anos começou a trabalhar como ator no teatro e no cinema. Roman Polanski foi um dos primeiros diretores célebres a ter estudado numa escola de cinema - em Lodz, na Polônia. Podemos traçar muitos paralelos entre sua vida e a do tcheco Milos Forman, diretor de Hair e Amadeus - também perdeu os pais no Holocausto e estudou numa escola de cinema, e ambos teriam uma carreira internacional.

Na escola de Lodz, antes já estudara Andrzej Wajda, diretor altamente politizado e mais conhecido no Brasil por títulos como "Danton, O Processo Da Revolução" e "Um Amor Na Alemanha". Wadja daria as primeiras chances de atuar no cinema a Polanski - o qual, alguns anos mais tarde, dirigiria seus primeiros curta-metragens, algo humorísticos/surrealistas.

A estréia de Polanski no longa-metragem se daria em 1962, com "Faca na Água", filme fortemente influenciado pela nouvelle-vague francesa. Foi o primeiro filme polonês do pós-guerra a não ter a guerra como tema, para se ter uma idéia de quão fortemente o horror do conflito havia ficado gravado no inconsciente coletivo nacional.

A carreira de Polanski logo se tornaria internacional. Em 65, na França, dirigia Catherine Deneuve no esquizofrênico "Repulsa ao Sexo", onde uma mulher reprimida repele violentamente as investidas dos homens. A carreira nômade o levaria para a Inglaterra, onde, no ano seguinte, dirigiria Cul de Sac (por aqui chamado "Armadilha do Destino"; quem bola estes títulos em português?), estrelado pela irmã de Deneuve, Françoise Dorléac. Este interessante filme mostra uma dupla de ladrões que ficam presos numa casa insular com uma família, esperando que a maré baixe para poderem dar o fora do lugar. Os conflitos que se seguem à convivência forçada são de um patético altamente aflitivo, que pode-se determinar como sendo uma marca registrada do diretor. Os dois filmes citados acima ganharam respectivamente o Urso de Prata e o Urso de Ouro em Berlim (primeiro matam a mãe dele, depois lhe dão prêmios).

Seguiu-se o hilário "A Dança dos Vampiros", estrelado por Polanski e pela então sua mulher, Sharon Tate. Os distribuidores americanos reeditaram o filme e o rebatizaram The Fearless Vampire Killers ou Excuse Me, Your Teeth Are On My Neck. Polanski quis que seu nome fosse retirado das cópias americanas - o que era evidentemente inútil e impossível, já que ele era também ator. De que adianta tirar o nome dele e deixar sua a imagem lá?

Já nos EUA, fez "O Bebê de Rosemary" (1968), um dos filmes de terror mais charmosos já feito. O filme é sobre Satanismo, e a encomenda de um bebê por parte do demo, tema que depois seria reexplorado no bom "A Profecia" (Richard Donner, 1976) e geraria todo um filão de filmes de horror, a maioria puro lixo. Mas há todo um folclore em torno de "O Bebê de Rosemary". Problemas no set, a tragédia que aconteceria no ano seguinte - da qual já falaremos -, e o fato de John Lennon ter sido assassinado em 1980 diante do prédio onde ocorreram as filmagens (o famoso edifício Dakota, em Nova York) semearam a idéia de que o filme era amaldiçoado. O mesmo seria atribuído à série "Poltergeist", onde, após cada filme, um ator morria.

Passemos à tragédia: em 1969, Charles Manson e seguidores de seu culto fanático invadiram uma propriedade onde se realizava uma festa, e mataram várias pessoas. Este incidente, assim como o assassinato de um negro no Show dos Rolling Stones em Altamont, são considerados pontos finais do movimento hippie. Entre as vítimas da quadrilha de Manson, estava Sharon Tate, mulher de Polanski. Grávida de oito meses.

Não que eu queira atribuir alguma responsabilidade ao próprio Polanski - ele é a vítima, não um criminoso -, mas mexer com certos temas é arriscado, como percorrer lugares perigosos. "Eu não creio em bruxas, mas que elas existem, existem." - diz um ditado hispânico. Arte e magia caminham juntos pela psiquê humana desde a aurora dos tempos; os homens das cavernas encenavam teatralmente as caçadas, antes de saírem atrás de suas presas, esperando que o ritual lhes trouxesse sorte. Se um diretor roda um filme que é quase uma variação perversa sobre o mito da concepção de Jesus (Há no filme frases como: - Você foi escolhida por ele para ser mãe de seu filho, Rosemary, embora eu esteja citando de memória), e sua mulher é assassinada antes de conceber, isto fornece material para reflexão. Peço que não encarem isto como obscurantismo ou fanatismo de minha parte. Não estou relativizando ou justificando uma barbárie inominável. Manson é um monstro, e mesmo a utilização de seu nome como chamariz por parte de um oportunista, como faz o roqueiro Marylin Manson deveria ser proibida. É um assunto sórdido, mas creio que qualquer ator com formação teatral sólida que tenha interpretado um personagem "do mal" entenderá o que estou falando.

O próprio Polanski escapou da chacina porque na hora não se encontrava ali. E antes de escapar de Charles Manson, já havia escapado de Hitler. Mas estes lhe ceifaram membros familiares.

Além de psicopatas que desprezavam a vida humana, havia algo mais em comum entre Hitler e Charles Manson? Havia. Pretensões artísticas irrealizadas. O primeiro era pintor, o segundo, músico. Embora nenhum dos dois fosse grande coisa como artista, também não eram piores do que a maioria. Mas não conseguiram sucesso, e o ressentimento pode ter desencaminhado qualquer racionalidade que estes homens possam ter tido algum dia. Podemos dizer que, em toda sua vida, Polanski foi vítima dos ressentidos.

Em 1971, faria uma versão de Macbeth bancada pelo dono da revista masculina Penthouse.

Em 1974, realiza o deslumbrante "Chinatown", filme cuja trama é tão complexa, que há o risco do espectador se entediar. Polanski tem todos os méritos, inclusive o de ter senso de humor e aparecer como ator para ser esculhambado pela sua baixa estatura - o que nos remete a Orson Welles, que em seu filme A Marca da Maldade, escuta de Marlene Dietrich: "- Você tem comido muito doce."

A química do casal central Jack Nicholson/Faye Dunaway parece estar sempre a um passo da combustão, e a cena dos tabefes é antológica. Mas em "Chinatown" há que se salientar o talento do roteirista - mais tarde diretor, sem o mesmo brilho - Robert Towne. Há sutilezas no roteiro que só interessam aos muito fanáticos por cultura: a sutil distância de classe entre o detetive, grosso por força da profissão, e a grã-fina, quando ela cita uma frase em francês e ele não tem nem idéia do que ela está falando. E o trocadilho Glass/Grass (óculos/grama), involuntariamente cometido por um jardineiro chinês, que seguindo o estereótipo tradicional, não consegue pronunciar a letra "R".

A fotografia em tons pastéis substitui inteligentemente o preto-e-branco dos filmes de detetive noir tradicionais. A música também dá o maior clima. Uma obra-prima.

Na França, Polanski dirigiria - e estrelaria - o claustrofóbico "O Inquilino" (1976). Há críticos que defendem que este filme, junto com "Repulsa ao Sexo" e "O Bebê de Rosemary", formem uma trilogia de filmes de apartamento. De qualquer forma, há muito em comum entre os três, todos eles angustiantes.

Alguns anos depois, o diretor foi banido dos EUA por um escândalo sexual, como antes Charles Chaplin já havia sido. Bem, pedofilia é algo moralmente indesculpável, mas é tudo muito esquisito. Se todo escândalo sexual fosse ser punido, Hollywood já tinha se mudado pra Tijuana, México.

Daí em diante, diminuiria sua carreira cinematográfica, alternando-a com produções teatrais - chegou a dirigir e interpretar nos palcos a peça Amadeus - que, ao virar filme, seria dirigida por Milos Forman.

Na década de 80, Polanski rodaria uma superprodução na França, com elenco internacional, um projeto acalentado por oito anos e que seria um fracasso: "Piratas". Um filme que não chega a ser chato, mas realmente não diz muito a que veio.

E ele dirigiu o astro Harrison Ford - então no auge do sucesso - no thriller - pretensamente Hitchkockiano - "Busca Frenética", onde aproveitou para revelar ao mundo sua nova mulher, a deslumbrante Emmanuelle Seigner (como antes já havia feito com Nastassia Kinski, em "Tess", de 1979). Já na década de 90, fez uma crônica de perversidades em "Lua De Fel", com o canastrão Peter Coyote.

Fez mais alguns filmes, sem grande repercussão. Seu último grande projeto foi "O Pianista" (2002), sobre um homem que sobrevive ao Gueto de Varsóvia, na Segunda Guerra Mundial.

(Na foto: O diretor anda no 'set', durante a filmagem
de "O Pianista". Ver texto abaixo.)

Este filme ganhou os principais prêmios em Cannes, e recentemente rendeu a Polanski o Oscar de melhor diretor (o qual ele não pôde receber, ou seria preso) e o Oscar de melhor ator para Adrien Brody. Um belo filme, mais um sobre o holocausto nazista, desta vez mais legítimo do que o usual, pois feito por alguém que passou pelos apertos na pele. Imagine a carga psicológica que deva ter recaído sobre Polanski ao fazer esta obra. Curioso que termine com um "final feliz", depois que os nazistas são derrotados, e o personagem-título possa seguir tocando sua música. Na verdade, quem já leu sobre a Polônia no período pós-guerra, sob o jugo do Stalinismo soviético, sabe que a vida ali não justificaria um Allegro.

Maurício Dias
Rio de Janeiro, 15/4/2003

 

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