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Segunda-feira, 21/4/2003
A paixão pela arte: entrevista com Jorge Coli
Jardel Dias Cavalcanti

"Pelo poder da música cumprimos nossa marcha,
Alegres, através da escura Noite da Morte!"
(A Flauta Mágica, de Mozart)

Jorge Coli formou-se em História da Arte pela Universidade de Provença (França). Doutorou-se em estética pela USP. Sua livre-docência é sobre "A Batalha de Guararapes", de Victor Meirelles. É professor do programa de pós-graduação em História da Arte e da Cultura, da UNICAMP. Dirige, com Pedro Paulo Funari, a Revista de Arte e Arquelogia. É responsável pela coluna "Ponto de Fuga", do caderno Mais!, da Folha de São Paulo.

É autor de O que é arte (ed. Brasiliense), Van Gogh: a noite estrelada (ed. Brasiliense), O mundo musical de Mário de Andrade (Ed. da Unicamp) e A paixão segundo a ópera (ed. Perspectiva/Fapesp). Recebeu este ano o prêmio "Gonzaga Duque" de Crítica de Arte da Associação Brasileira dos Críticos de Arte.

***

A seguir apresentamos a entrevista que Jorge Coli gentilmente concedeu ao Digestivo Cultural por e-mail.

1 - Em uma sociedade como a nossa, que vive sob um violento impacto visual, tecnológico, provindo da mídia e da publicidade, como deve ser o olhar sobre as obras de arte?

JORGE COLI: O olhar sobre a obra de arte necessita da lentidão e do constante retorno. Há uma exigência da preparação do espírito, da volta freqüente ao objeto, do prazer do encontro e do reencontro, do rastreio entre diversas afinidades que podem ser encontradas no interior da cultura e que vêm fecundar o objeto. Toda obra de arte pressupõe, de algum modo, uma gravidade por parte do espectador.

2 - O que determinou o interesse do Sr. pela Arte?

JORGE COLI: Creio ter sido uma grande atração pela história da cultura. Nunca pensei a História da Arte de maneira isolada e acredito que as divisões estanques em domínios precisos são prejudiciais. Explico-me. Dividir os campos da cultura e das artes em história da literatura, da música, das religiões etc. é evidentemente necessário. O especialista deve dominar um núcleo forte de conhecimentos para poder discorrer com propriedade sobre seus temas. Este núcleo, entretanto, torna-se longitudinal em relação ao tempo. O que significa um historiador da escultura, da literatura? Alguém que domina milênios de produção artística? É claro que esta situação - freqüente, no entanto - significa um contra-senso. As esculturas cicládicas e as de Michelangelo, para serem compreendidas dependem de universos culturais que as ultrapassam - no sentido da grande cultura, mas também no sentido da antropologia - e que o historiador não tem o direito de desdenhar. Desse modo, se é necessário fixarmo-nos em núcleos específicos de preocupação - trabalharmos, por exemplo, mais sobre a pintura ou romance - isso exige uma circulação nada superficial sobre as outras artes, sobre formas diversas de pensamento, sentimento e comportamento que lhes são contemporâneas. Um estudioso de literatura barroca que não tem idéia do que seja a arquitetura do período pelo qual se interessa, poderá, em seus trabalhos, trazer elementos interessantes de informação pontual, mas eles serão sempre limitados. Para ficarmos no mesmo exemplo - é absurdo que um historiador da literatura barroca desconheça o fenômeno da ópera; e um musicólogo do mesmo período, se não mergulhar em textos literários, reduzirá em muito o alcance de seu trabalho. Parece-me que mais fecundo e rigoroso é especializarmo-nos num período e dentro dele localizarmos um objeto mais específico.

3 - Para um estudioso da história da arte, como é o caso do Sr., o que significa, afinal, a arte?

JORGE COLI: A arte dispõe relações que se tecem de maneira intuitiva, provocando ao mesmo tempo prazer e percepção de fenômenos humanos. Ela é, portanto, lugar de prazer e de intuições secretas, cada uma alimentado a outra.

4 - Existe algum grande artista nas artes plásticas e na música que o toca mais profundamente, que o prende com mais força? Se sim, porque?

JORGE COLI: Quanto mais alguém mergulha num gênero ou num artista, mais amplia sua compreensão e seu prazer. Isso determina um fenômeno complexo: mesmo obras "menores" passam a ter interesse acrescido, porque se constituem como parte insubstituível de um organismo complexo.Na verdade, não se pode viver apenas de grandes autores ou de obras-primas; as obras menores enriquecem a inteligência e o gozo das maiores, e vice versa. Como cada obra é singular, esse prazer é irredutível e insubstituível. Escolher um autor seria injusto com todos os outros. Mas, por minha trajetória pessoal, tenho trabalhado mais alguns autores, como Verdi e Delacroix.

5 - O Sr. acaba de lançar um livro A Paixão Segundo a Ópera. A ópera, que parece um objeto de culto estranho, e que foi praticamente sepultada pelos compositores modernistas (com raríssimas exceções, como Schönberg na sua obra "Moisés e Aarão", de 1932), tem ainda algo a nos transmitir?

JORGE COLI: Tanto tem, que ela ressurge hoje com muita força. Os compositores contemporâneos, com algumas exceções, não descobriram ainda o caminho de uma ópera para os nossos dias, capaz de comover o público de hoje. Talvez os preconceitos modernos tenham sido mais fortes na música do que em outros campos das artes.

6 - No canto XII da Odisséia, de Homero, Ulisses se deixa prender ao mastro do navio para que, ao mesmo tempo, desfrute da beleza do canto das sereias e não se perca, sucumbindo ao maravilhoso canto que o levaria à morte. Poderíamos ver em Ulisses um exemplo de atitude que o historiador da arte deveria tomar frente às paixões que a obra de arte desperta?

JORGE COLI: Creio que não. A metáfora de Ulisses pôde já ser percebida como uma oposição entre a consciência analítica, "crítica", e os prazeres da arte. Esta oposição teve uma grande audiência em nosso século. Brecht empregou-a como dado fundamental num projeto teórico para o teatro. A idéia da consciência que não se deixa enganar pelos deleites da arte é do nosso tempo, do nosso século. Entre nós, nos anos 60, o professor Roberto Schwarz publicou um livro de ensaios que teve sucesso no meio universitário. Seu título era, justamente, A sereia e o desconfiado. Isto talvez esteja também veiculado ao prestígio que certa noção de "teoria" possui entre nós. Mais nobre e elevada que os trabalhos complexos, ela parece conferir um brasão ingenuamente "intelectual" ao papel dos historiadores. Tenho para mim, no entanto, a convicção de que esta postura, em verdade, rouba aquilo que é essencial: o prazer de fruir os objetos da cultura. Esta fruição é o mais fecundo. O amor pelo seu objeto deve ser a primeira postura do espírito. Creio que devemos confiar no objeto, na sereia. Ela nos faz ouvir cantos jamais emitidos: ela nos ensina, portanto. Não é nossa consciência lógica, fria, "crítica", que vai fazer com que saiamos de nós. Essa pretensa consciência nos amarra, como Ulisses ao mastro. Porém, a Sereia é a mestra. Ela nos ensina configurações do conhecer que nem poderíamos imaginar. Não há bom trabalho sobre arte sem paixão, sem amor, sem entrega à sereia. Se o navio arrebentar e naufragar, tanto melhor: ele o merecia. O pesquisador deve descobrir melhores navegações.

7 - Para o estudioso das artes plásticas, com a licença de Alberto Caeiro, "pensar é estar doente dos olhos"? Devemos calar um pouco nossos conceitos e aprender a pensar com os olhos?

JORGE COLI: Existe uma diferença entre os homens cultos, ou de cultura, e os intelectuais. Os intelectuais são embriagados pelas construções do pensamento, por suas articulações, por estruturas que se armam de modo fascinante. Uma boa metáfora seria a dos grandes ginastas. Isso, porém, com freqüência, desvia o olhar - ou antes, os sentidos - das percepções intuitivas e complexas, que só se entregam com uma longa e paciente frequentação dos objetos da cultura. É um pouco Poirot contra Maigret. O ideal, é uma junção entre as duas coisas, mas é raro que isto ocorra.

8 - Não existe no sistema educacional brasileiro um incentivo à cultura da música erudita. No caso da nossa conhecida MPB, já temos as letras dos idolatrados Caetano-Gil-Chico sendo colocadas em livros didáticos ao lado de importantes textos literários, tornando-se, inclusive, matéria para vestibulares. Como o Sr. vê este problema, que muitas vezes se baseia num opção pelo popular (do "povo") em contraposição ao erudito (tido como "elitista")?

JORGE COLI: Este é um grande vício que ocorre em certas opiniões correntes de meios intelectuais. É uma nivelação propriamente inculta. Todos os objetos da cultura são dignos de interesse. Mas é preciso que eles se insiram num caldo cultural coerente, que permita comparações adequadas e interações que se justifiquem. Essas atitudes, às quais você se refere, desconhecem o lugar mais fecundo para a disposição de cada obra. É assustador que uma coisa tome lugar e se imponha à outra. Quem nunca ouviu, de fato, com empenho, Beethoven ou Debussy, por exemplo, pode ter as suas necessidades musicais satisfeitas pela música popular. Mas ele está apenas arranhando a superfície de um universo muito mais complexo que imagina; e não tem, na verdade, noção do que a música possa alcançar. Se esse alguém possui alguma autoridade, pode impor os seus limites de compreensão a um grupo mais amplo. Isto significa duas coisas: pobreza e empobrecimento mental.

9 - Um amigo me disse certa vez que a única diferença entre São Paulo e Paris é que em um fim de semana em Paris acontecem perto de 500 eventos culturais, enquanto que em São Paulo no máximo temos 50 eventos. A partir da frequentação que o Sr. tem tido ao universo cultural americano e europeu, como avalia a cultura praticada no Brasil? Em que pé estamos, quando sabemos que produzimos ainda pouca cultura e que pouco (ou quase nada) do que produzimos torna-se referência internacional? Podemos falar em um padrão internacional para a cultura que o Brasil produz? Existe realmente uma diferença notável?

JORGE COLI: 1) é uma cultura pobre - note, não uma cultura "dos pobres" -, uma cultura de muitos limites e muito tênue. Os nomes mais importantes formam a exceção que confirma a regra. 2) Em que pé estamos? num pé só, e sempre a beira de uma crise. 3) A questão é menos de um "padrão internacional" - o que significa isto: presença, sucesso no exterior? - que de uma presença forte e sincera das manifestações culturais que ocorrem neste país. 4) Existe sem dúvida, em relação a países mais ricos e cujas práticas culturais são mais constantes, uma grande diferença, para mais frágil e ralo naquilo que ocorre no Brasil.

10 - Como tem sido sua experiência na coluna "Ponto de Fuga" do caderno MAIS! da Folha de São Paulo? Existe alguma preocupação central para a produção destes textos? Qual a recepção dos leitores?

JORGE COLI: É uma ótima experiência de disciplina da escrita. É preciso produzir um texto todas as semanas, que possui um formato e um tamanho muito precisos. Por jogo, eu limito os toques a 3900, e dou, para mim mesmo, uma folga de 10 toques a mais ou a menos. Tudo deve ser econômico e suficiente; dá um certo trabalho, muito mais do que escrever um texto longo; levo mais tempo na coluna do que num ensaio de 10 páginas. Decidi também, desde o início, jamais usar a primeira pessoa do singular, para evitar, nesses textos que voltam toda semana, o risco de um narcisismo insistente. Decidi ainda não tratar, nunca, de assuntos que já tenham grande lugar nas outras páginas do jornal, como a televisão e a música popular. Há uma preocupação de início: qual vai ser o título? sem ele, não consigo escrever. Depois, preocupo-me com a clareza: não há embuste maior do que escrever complicado e difícil, seja num jornal, seja numa tese. A recepção dos leitores é muito animadora. Recebo vários e-mails por semana; estabeleço, às vezes, troca de mensagens mais longas com certos leitores, que são muito interessantes. Nunca deixo, de qualquer forma, de responder aos e-mails que recebo.

Para ir além






Jardel Dias Cavalcanti
Campinas, 21/4/2003

 

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