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Terça-feira, 26/6/2001
A morte do respeito
Vera Moreira

Estabeleci um ritual nas viagens a São Paulo: compro no aeroporto a Gula, na ida, e a Sabor Pão de Açúcar, na volta pra casa. Funciona como um doce que a gente guarda o dia inteiro para a sobremesa do jantar; reservo estas leituras mensais para o vôo. A coluna de Marcelo Fromer, na Sabor, era o recheio deste doce. Mandei um e-mail para a redação, destinado a ele, contando isto. Foi publicado com nome de outra pessoa e deram uma errata neste mês: as lágrimas me subiram aos olhos no avião, pois quando vi a revista, dia 20, Marcelo Fromer já estava morto. Fiquei ainda mais triste quando li a sua coluna, provavelmente a última, a não ser que a redação tenha ainda alguma "gaveta", como falamos em jornalismo.

Eu já tinha ficado passada, quando soube da sua morte, especialmente pela última coluna semanal de Fromer no Estadão, 8 de junho, apenas três dias antes do anjo negro se anunciar para o Titã. Fromer estava especialmente sensível naquela sexta-feira, contando como tinha deixado "a escura e obscura São Paulo" para ir a Portugal aplacar sua insuportável saudade de Alice e Max. Ele nos contava da dádiva e do privilégio de proporcionar e presenciar as descobertas gastronômicas de seus pequenos e adoráveis filhos, de como as crianças podem apurar o paladar quando estimuladas. E de como é importante recebê-las e tratá-las com o devido respeito em um restaurante ou em qualquer lugar. Respeito, este, que as pessoas parecem estar perdendo, não só pelas crianças e os adultos, como por si próprias, permitindo que a vida numa cidade como São Paulo as atropele, com a sua violência, o seu descaso, o apagão de todos os sentidos. "Com muita emoção revi meus filhos; o meu melhor alimento, só assim me sinto vivo", Fromer encerrou a sua coluna. Agora ele não vive mais, nem para seus filhos, nem para alegrar os nossos dias com a música e o texto refinado.

É absolutamente chocante sua morte: a fatalidade que nos coloca na definitiva posição de impotência frente à vida. Mas fiquei pensando muito sobre a agressão da escura e obscura metrópole, onde um inconseqüente a bordo de uma máquina estúpida numa noite perdida leva a vida de um homem sem deixar rastro, consciência aniquilada, o respeito há muito esquecido. Pobre São Paulo, tão bela São Paulo, com sua riqueza, sua pujança, suas inúmeras oportunidades, seu fascínio. Tudo indo pelo ralo. Jamais vou esquecer quando cheguei a São Paulo, 12 anos atrás. A cidade já tinha problemas, lógico, mas ou eram meus jovens olhos embevecidos ou as coisas realmente mudaram demais em uma década. Hoje só vejo sombras em uma cidade que me deu tudo o que eu queria! Fico pensando na minha parcela de culpa, pois tenho a impressão de que todos chupamos São Paulo como uma gorda laranja e agora deixamos o bagaço, cuspindo-o fora. Cumpro com meus compromissos, pago tudo em dia, aluguel, água, luz, gás, empregada, celular, contador, os altos impostos e consumo muita coisa em São Paulo, de comida à cultura, mas começo a pensar que eu deveria fazer alguma coisa concreta pela cidade. Afinal, é esta consciência que falta a quem mais a precisaria ter, o poder público. E aí, infelizmente não é só o poder público de São Paulo, mas o de todo o Brasil.

O perigo mora ao lado

Meu vôo de volta de São Paulo para Porto Alegre neste mês saía de Guarulhos. Deu saudades do velho Cumbica, um aeroporto muito mais civilizado do que a "rodoviária" Congonhas. Qualquer dia, haverá um acidente sério em Congonhas, dada a demência que se transformou a malha aérea daquele aeroporto. Todo mundo já falou, já alertou, os jornais voltam ao assunto de tempos em tempos, mas nada... Continua tudo igual; pior, só cresce o movimento, neste ano ganhamos mais uma companhia aérea operando em Congonhas.

Alta temperatura

O mundo gastronômico se amplia, acabou de entrar no ar o Portal do Sabor, da Abril.com. É um baita portal, com audiência estimada de 7,5 milhões de páginas vistas até o final do ano. Um atrativo e tanto para os anunciantes, apenas três patrocinadores-fundadores, a R$ 150 mil cada e mídias segmentadas. Coisa de Abril e a qualidade também. Tem de tudo, de receita a cultura e muita, muita informação, uma maravilha: 2,2 mil restaurantes, 4 mil receitas, 400 fornecedores, colunistas, etc, etc. Vale uma longa navegação e vou dar só uma dica, de um livro recomendado: Os endereços curiosos de Londres, de Cindy Wilk. Ela fala de uma loja de especiarias com mais de mil itens de todo o planeta, que fica em frente à estupenda livraria Books for Cooks. Quem for a Londres, não pode perder nem uma, nem outra.

The Spice Shop
1 Blenheim Crescent, W11 - Tel: 020 7221 4448.
Metrô: Notting Hill - Site: www.spiceshop.co.uk
De segunda a sábado, das 9h30 às 18hs; domingo, das 11 às 17hs.

Para se fartar

A Cultura, de São Paulo, é a melhor livraria do Brasil e é fantástico como ela cresceu na última década, se espalhando pelo Conjunto Nacional. Pedro Herz é um empreendedor e tanto e há títulos só encontrados na sua Cultura. A seção de gastronomia é pra se fartar. Bato ponto lá todo o mês e neste junho as prateleiras estavam de enlouquecer, um verdadeiro atentado ao cartão de crédito. Achei um livro que é literalmente uma obra-prima (carésimo também, por sinal): A feast for the eyes, de Gillian Riley. São as pinturas da National Gallery, em Londres, inspiradas na mesa. De Crivelli a Cézanne, o livro introduz os prazeres da gastronomia através da reprodução das obras de arte dos pintores renascentistas aos impressionistas. Tudo comentado e ilustrado com receitas, uma viagem! Outro livro interessantíssimo que achei foi Receitas inspiradas na Bíblia, da Melhoramentos. História e receitas dos pratos mencionados nos textos sagrados, como o Guisado de Esaú e o Pão de Ezequiel. Os pratos recriados por estudiosos bíblicos e especialistas em culinária, para os dias de hoje: delícias que Abraão e Sara serviram aos anjos, as iguarias dos banquetes do rei Salomão ou das bodas de Caná à sua mesa.

Vera Moreira
Gramado, 26/6/2001

 

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