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Segunda-feira, 5/5/2003
Olhos Cor de Chuva, de Felipe Machado
Jardel Dias Cavalcanti

"Pois vivemos na sedução
mas morremos na fascinação
".

(Jean Baudrillard - Da Sedução)

"Diz a lenda que, no início do mundo, todos os seres humanos eram hermafroditas, com quatro mãos, quatro pernas e dois rostos, virados cada qual para um lado. Esses seres eram tão poderosos e arrogantes que Zeus resolveu separá-los, numa metade masculina e outra feminina. A partir daí, cada parte viveria eternamente à procura da outra metade, numa busca incansável e na maioria das vezes frustrante."

Esta lenda da antiguidade grega é usada no livro Olhos cor de chuva, de Felipe Machado, editado pela editora Escrituras, para explicar a personalidade artística e amorosa eternamente insatisfeita de Alex, principal personagem do romance.

Alex é um escritor que escolheu viver uma vida de solteiro, estando sempre pronto para se entregar a qualquer aventura sexual que a noite ofereça. Sua família não partilha de bons sentimentos quanto à "vida de artista" de Alex, marcada por este "estilo de vida" flutuante. Alex também reprova o modus vivendi de sua família, ajustada ao mais medíocre status quo social.

Dentro deste quadro de tensão entre o escritor e seus parentes vai se desenvolvendo um inesperado número de fatos que abalam a existência de Alex.

Sensível à beleza feminina, inicialmente Alex apaixona-se por uma jovem chamada Manoela, que encontra no bar que sempre freqüenta. Após o envolvimento íntimo, decidem morar juntos na casa do escritor.

A reflexão que surge deste momento da vida de Alex é a seguinte: "Não estavam preocupados com documentos ou registros. Viviam como marido e mulher, partilhando intimidades nunca antes divididas com ninguém, com todas as qualidades e defeitos que esse tipo de verdade pode suscitar. E um desses defeitos, como em qualquer relacionamento, era a inevitável aniquilação da personalidade dos dois indivíduos envolvidos, provocando a criação de um terceiro ser formado não necessariamente pelas qualidades dos dois, mas, ao contrário, pela eventual seleção dos piores defeitos de cada um. Alex entendia agora por que os casais recém-casados tinham tendência ao isolamento. Casar, podia constatar, é ver televisão juntos. É não se incomodar com o silêncio entre conversas. É gostar de ficar sozinho, mesmo estando ao lado de alguém. Com uma grande vantagem. Não era preciso um grande esforço de sedução para se conseguir sexo todas as noites."

Dias depois, ao voltar para casa, Alex encontra sua companheira assassinada em sua cama. Acaba por descobrir que seu nome não era Manoela, que ela havia mentido quanto à sua origem e que, além do mais, antes de conhecê-lo, vivia como garota de programa. Esta era a primeira falsa imagem que ludibriou nosso personagem dentro do romance.

Em seguida, apaixona-se pela amiga de Manoela, também garota de programa, que é levada a coabitar com o escritor. Insatisfeito com esta nova relação, encontra-se mergulhado nos braços e entre as pernas de outra mulher. No entanto, acha-se sempre à deriva, insatisfeito. Carrega consigo a idéia de que Manoela seria a verdadeira mulher de sua vida. Mas isto é apenas uma das ilusões que traz consigo. Se tivesse estendido a relação com ela, vivendo o massacrante cotidiano que acusa seus familiares e amigos de viver, com certeza deixaria de amá-la. Como ela desapareceu antes dessa decepção, a imagem que lhe restou foi a da paixão viva que puderam experimentar por curto tempo.

O que Alex procura nas mulheres é o que o artista que ele é também procura: a perfeição de uma imagem ideal, capaz de dar conta de todos os sentimentos e carências que a vida impõe. No entanto, a imagem perfeita que encontra não é real, mas fabricada por um computador: é a mulher ideal que sai da pasta de um produtor e que é colocada na mesa do bar onde estava com seus amigos. Apaixona-se por esta imagem de mulher perfeita, fabricada, comercial, tal qual as mulheres que desfilam diariamente em nossos vídeos e nas revistas femininas, banhadas em luz artificial, corrigidas por programas de computador e que acabam por causar extrema infelicidade em quem procura nessas "bonecas" o ideal de mulher.

Esse ideal, também procurado por milhares de mulheres que se sacrificam diariamente nas academias de ginástica e clínicas de cirurgia estética, não pode ser realizado, pois trata-se de um artifício programado por recursos fotográficos. Um corpo sem emoção, malhado para ser construído e consumido como objeto mercadológico, sem os riscos da emoção que a paixão pode trazer. O status quo agradece a preferência.

Ao fim de sua trajetória, Alex tranca-se com essa imagem no seu apartamento, exilando-se de qualquer contato humano real, mergulhando seus desejos nessa ilusão fabricada. Não lhe resta outra alternativa senão o suicídio, pois longe desta imagem apenas pode encontrar a realidade, com seus defeitos, suas misérias e, mais, seus riscos incontroláveis.

Olhos cor de chuva é um romance que pode ser pensado como uma alegoria da vida urbana que se traça nos nossos tempos, mergulhados que estamos em imagens que consomem nossos desejos e não nos trazem nada mais que uma eterna insatisfação. Triste sina a que se destina a vida urbano-social contemporânea: as pessoas tornaram-se imagens, querem se constituir como imagens e só podem ser consumidas enquanto tal.

Para ir além




Jardel Dias Cavalcanti
Campinas, 5/5/2003

 

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