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Quinta-feira, 8/5/2003
Carga mais leve para Pedro e Bino
Adriana Baggio

Lembro de assistir Carga Pesada quando era criança. O seriado está no ar novamente depois de 22 anos. Ou seja, faz um tempão. Não recordo muita coisa, mas o que ficou foi marcante. Lembro claramente de uma cena onde bandidos esmagavam as mãos de um homem com um pedaço de pedra, talvez fosse um paralelepípedo.

Não sei se em geral o seriado era violento, mas acho que não era tão suave quanto o remake que a Globo passou a reapresentar desde terça-feira da semana passada. Apesar do clima pesado, eu gostava. Devo ter visto poucas cenas, pois se nem Roque Santeiro minha mãe me deixou ver, imagina Carga Pesada.

Quando a emissora anunciou a volta do seriado protagonizado por Antonio Fagundes e Stênio Garcia, fiquei esperando o mesmo clima do antigo Carga Pesada: aquela coisa dura da estrada, a pobreza dos lugares por onde Pedro e Bino passavam, os conflitos nos quais se envolviam. A estética zona sul da nova versão foi uma surpresa. Até o caminhão velho foi trocado por um novinho em folha!

A troca de caminhão fez parte da contextualização do novo momento da série. Pedro e Bino agora são dois senhores. Bino casou, deixou a estrada e montou um escritório. No entanto, ficou viúvo e descobre que tem um tumor. Aguarda o resultado do exame que vai dizer se é maligno ou não. Sem saber o quanto lhe resta de vida, Bino entra em contato com Pedro e volta para a estrada. Pedro, por sua vez, nunca deixou a profissão de carreteiro (não é caminhoneiro não, é carreteiro mesmo). Eles encontram-se em Bagé, de onde Pedro levará uma carga até Salvador. Bino embarca com o amigo em um caminhão velho, daqueles bicudos cor de laranja, do qual os dois são sócios. Em uma das paradas, o caminhão parece ter sido roubado, mas na verdade foi Bino que comprou um Volswagen novinho em folha, em substituição à velha máquina.

Enquanto Stênio Garcia encarna bem o papel, fica difícil transformar Antonio Fagundes no estereótipo que se tem desse tipo de profissional. O choque entre a pinta de galã de Fagundes e o estilo abobalhado do personagem causam uma dissonância cognitiva no espectador. O clima fica falso, e piora ainda quando se contrapõe o dia-a-dia de carreteiros de Pedro e Bino e a realidade do caminhoneiro brasileiro. Eles parecem mais estar fazendo turismo do que transportando uma carga. Jantam em restaurantes das cidades, e não nas paradas, param nas praias para tomar banho de mar, passeiam nas Cataratas do Iguaçu. Muito distante da realidade do caminhoneiro que dorme na cabine ou em hotéis de beira de estrada, almoça nos postos que dão a refeição como brinde pelo abastecimento, aproveita ao máximo o tempo na estrada para poder cumprir os horários de entrega, ou para poder pegar logo outro frete. Pedro e Bino não tomam "rebite" para dirigir de madrugada.

Antonio Fagundes é o mais deslocado na boléia, mas o personagem de Stênio Garcia também tem suas incoerências. Os diálogos de Bino parecem uma colcha de retalhos de clichês, provérbios e frases de pára-lama de caminhão. São textos como "Deus estava inspirado quando fez o Rio de Janeiro" (para cada cidade por onde passam Bino tem um comentário do mesmo estilo); "a estrada é um vício e eu sou um viciado", e por aí vai. Não consigo deixar de lembrar do Tio Ali, personagem do ator na novela O Clone, que como bom patriarca, vivia citando passagens e dando conselhos para os seus.

O clima está tão light que até os bandidos que eles encontram no primeiro episódio são personificados por uma moça de 16 anos e seu namoradinho. Nada de brutamontes quebrando ossos com pedaços de pedra. E no segundo nem bandido teve. Parece mais um episódio de novela: Pedro convida o filho de Bino (que é seu afilhado) para seguir com eles até Salvador. Os dois galãs - o macaco velho e o iniciante - revezam-se na conquista das moças que encontram pela estrada. Uma delas é Rosa, representada por Patrícia Pillar, que em uma cena de praia veste um maiô mais comprido que muita mini saia que se vê por aí. É, ser mulher de ministro tem o seu preço...

Mesmo em versão mais leve e mais fake, Carga Pesada não deixa de ser um bom seriado. Mas o que não dá pra perdoar são as cenas em que Pedro e Bino dirigem daquele jeito que a gente vê os caminhoneiros dirigindo nas estradas, e que causam tantos acidentes graves. Todas aconteceram no primeiro episódio. Não sei se houve algum tipo de protesto, ou se foi coincidência elas não aparecerem no segundo. Uma das cenas mostra os dois amigos comemorando o reencontro com brincadeiras, girando o volante de um lado para o outro, fazendo o caminhão andar sinuosamente em uma estrada de pista simples. Depois, quando Bino troca o caminhão velho pelo novo, Pedro fica tão feliz que passa a dar cavalos-de-pau com o cavalo do caminhão no pátio da parada. Para mostrar o perfeito funcionamento do freio, joga o caminhão contra a janela do restaurante e pára a poucos centímetros do vidro. A outra cena mostra os dois na estrada, à noite, apagando os faróis do monstro para poder enxergar os discos voadores que a mocinha-bandida tenta mostrar para eles. Já imaginou dar de cara com um caminhão de luz apagada vindo de frente em sua direção?

Mesmo que a nova proposta não seja tratar de conflitos mais densos, Carga Pesada poderia, ao menos, fazer merchandising não só dos caminhões Volkswagen e dos postos Ipiranga, mas tratar também de aspectos importantes sobre as estradas brasileiras. Apesar de ser um país onde a maioria das pessoas e das cargas viaja pelo asfalto (ou pelo barro...), o Brasil tem uma péssima malha rodoviária e uma infraestrutura de apoio pior ainda. São muitas rodovias sem sinalização nem acostamento, com mais buracos do que asfalto. No Nordeste, ônibus e caminhões viajam em comboios, em uma tentativa de se proteger e proteger as cargas e passageiros dos bandidos, que agem nos mesmo locais e horários, mas que mesmo assim não são pegos pela polícia. Só como exemplo, os trechos entre a divisa de Pernambuco e Alagoas e Maceió, e os 60 km após Feira de Santa, na Bahia, só são percorridos pelos ônibus em comboio de três ou mais carros.

Além dos perigos da pirataria de asfalto, há o risco da direção imprudente, do uso de álcool e drogas, do sono. O seriado deveria, ao invés de adotar essas atitudes para seus personagens, tentar influenciar um outro tipo de comportamento, deflagar uma campanha sobre direção defensiva, as condições das estradas, sei lá (de Bagé a Salvador, Pedro e Bino não passaram por nenhuma estrada com buracos...). Mesmo que não sirva pra nada, pelo menos a gente tem a valorização do que é certo, e não do que é errado.

Adriana Baggio
Curitiba, 8/5/2003

 

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