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Quarta-feira, 14/5/2003
As Pérolas Que Eram Teus Olhos
Alessandro Silva

O SESI Av Paulista está homenageando a cultura negra em uma exposição de suas obras de arte. A coisa em si está bacana, bem arranjada, e as paredes estão decoradas por poemas. A mostra não pretende nada além de criar um ambiente caseiro para que os negros sintam-se mais fortes. Com efeito, as obras são de fatura clássica, e eu diria mesmo artesanal.

Duas coisas.

Primeiro, não há razões suficientes do ponto de vista do espírito para que as obras pertencentes a um certo povo sejam categorizadas. Se entre as máscaras de madeira tivéssemos posto uma obra daquele Picasso de vinte anos influenciado pela escultura negra, a coisa passaria sem ser notada. Sabemos que Picasso foi um homem branco, ocidental, careca e machista: portanto, biologicamente ( para usar um advérbio de fatura pedante ) um ser universal.

Isso é como pensar em literatura gay.

A CULT deve ser a revista responsável pela criação filosófico-estética dessa categoria, pois há dois ou três meses atrás trazia esse assunto como reportagem de capa. ( E depois falam que a irrealidade não existe ).

Jean Cocteau, Marcel Proust, Oscar Wilde, André Gide e Jean Genet não foram literatos gays, mas sim "homens" brancos, ocidentais, europeus, escrevendo acerca de emoções universais, que tanto o chinês, como o angolano, como o argentino tem. A faceta boa da grande arte é que ela é universal. Enganou-se Nabokov na histórica entrevista à Paris Review quando sugeriu que uma emoção presente em todos os povos deveria ser investigada empiricamente. Ora, porque complicar? Dorian Gray está desesperado com o tempo porque terá sua beleza roubada; igualmente o tempo é matéria para uma multidão de sonetos de Shakespeare. Desesperar-se com o tempo destruindo a beleza é privilégio de um tipo de homem, e propriamente do homem ocidental?

"Suave é a Noite" trata de um exuberante psiquiatra idealista derrotado pelo álcool. Essa situação é passível de acometer apenas brancos ocidentais ou japoneses e russos não padecem desse vício?

"Os Prêmios", do escritor argentino Julio Cortazar trata de homens amotinados num navio durante um cruzeiro. Amotinar-se diante de um mistério é privilégio de brancos?

Se a literatura trata de sentimentos universais, não existe algo como "literatura negra" e muito menos "literatura gay".

Com efeito, o que seria literatura gay? Seriam escritores gays tratando de situações encontradas por gays?

Gays não amam, não lastimam a passagem do tempo e não podem ser vítimas do vício? Esses conflitos não são centrais em suas vidas?

Não há literatura gay, não existe escritor gay e vamos fazer de conta que "literatura gay" não foi algo cunhado pela revista CULT de dois ou três meses atrás para vender mais revistas.

( O problema é que a polêmica gerada por esses termos é tão dispendiosa e gartuita! )

Mas falávamos da exposição de arte produzida pela cultura negra.

Não precisa nem ser um Picasso entre aquelas; pode ser um Modigliani. Quem mais universal que ele que da pintura renascentista herdou a elegância dos pescoços e cabeças alongados, da escultura grega a palidez dos olhos e da arte negra o aspecto escultórico das máscaras?

Curadoria em negócios de arte é algo que não deveria existir. Aliás, ficaria melhor ( e mais autêntico ) se as sociedades adotassem uma forma mais primitiva de dar-se com o artista, sacrificando-o depois de um tempo de criação ( e para que não comece a se repetir, como Salvador Dali )como um bruxo e bebendo seu sangue em honra à natureza. Aliás, inclino-me a pensar que a feitiçaria é mais desembaraçada do que os sindicatos de trabalhadores.

Isso de organizar arte por nação, língua, credo, cultura, gene, DNA, pigmentação dos tecidos ( boa essa não? ) só pode ser coisa de gente preconceituosa. É como se antes de entrarmos num diálogo carimbássemos a testa do indivíduo de acordo a subclassificação aristotélica da categoria bípede em gênero, espécie e grau a que pertence. Os curadores do SESI não passam então de caras sádicos que muito hipocritamente fazem questão de expor cultura negra?

Enquanto caras como Picasso diziam:

- Quando visitei o museu do Trocadero, compreendi que a humanidade havia matado a arte.

Porque "matou"? Porque os objetos de arte são feitos para conviver com os indivíduos.

Alguma coisa está errada quando nem sequer sabemos - nós, na condição de brasileiros - o nome das duas senhoras que vão nos representar na próxima Bienal, em Veneza.

E aqui chegamos ao segundo ponto de que eu gostaria de tratar.

Toda a questão da alienação da arte em relação a sociedade prende-se a outra questão mais profunda: o grau de desenvolvimento ( ou de pedantismo ) a que essa chegou.

O filósofo romeno Emil Cioran, falecido em 1998, ao mencionar a "nossa" arte, usou o termo "esquizofrenia". Com isso, ele se referia ao status do artista. Jackson Pollock evocava seus oráculos para produzir num estado de transe; Francis Bacon criava a partir do álcool e das drogas, cultivando uma angústia deveras bizarra. E esses fatos tornam a nossos olhos o artista mais admirado: sua vida, as transgressões coisa e tal.

Em termos de arte, há mais dela em qualquer exposição dessas que acontecem no SESI do que em qualquer Bienal. Com efeito, a arte de fatura clássica é ainda muito difundida e também apreciada pelo público comum: e esse é o divisor de águas. Pois a arte moderna não consegue agradar os "sentidos educados tradicionalmente". Na realidade, a contradição, está presente em nós mesmos. Eu mesmo senti-me profundamente dividido na mostra de arte do SESI, tendendo ao respeito e ao sarcasmo.

Quando me deparei com "Doze Espaços Com Nuvens", de fatura clássica e meio surrealista, tendi à reverência; mas quando me deparei com "São Domingo de Gusmão", coisa maneirista, barroca, identificando o cão cuja a cabeça era a de um jovem branco e as orelhas seus cabelos lisos empastelados, diante dessa figura senti-me então inclinado à zombaria.

Para os sentidos de um jovem artista sério, deixar de produzir arte com pincel é deveras tolo, pois sem o pincel, os "arranjos", as "disposições" ou "instalações" produzidas com outros materiais dificilmente são finais.

Porque será que Picasso não se decidiu pela mais evoluída Arte Abstrata depois de sua fase mais crucial do cubismo analítico? Depois que havia introduzido todo tipo de material em sua tela alimentando-a com meios espúrios? Se Picasso teve necessidade de retornar ao desenho, ele que fartou-se da tarefa desde criança, então algo está errado com a arte moderna, que pode assumir o nome que quisermos, abstrata, não-figurativa ou pós-moderna: algo está errado com o fazer moderno da arte. E é aqui que nos cabe uma conclusão.

Se a arte hoje perdeu o respeito por suas ferramentas abandonando seu público é justo que seu público a abandone: daí não vermos interesse por noventa e nove por cento dos bípedes racionais e naquilo que denominamos "arte moderna" ( as piadas que partem dos salões são mais interessantes muitas vezes que a arte: bom esse vinho não? ).

É que a arte hoje está demasiado engajada na luta política. Até Siron Franco, com toda a Amazônia diante de si para matá-lo asfixiado de tanto oxigênio e exuberância, faz "arte ecológica". Os materiais empregados pelos jovens artistas são "reciclados"; estão "reaproveitando o lixo utilizado no planeta": são os serventes sofisticados bancando os espertalhões. E isso para gente comum, que gosta de bife e ervilhas com azeite não passa de basbaquice.

Com efeito, criou-se um círculo tão fechado de admiração pela arte quanto o formado pelos velhos anacrônicos em torno do xadrez no Clube Paulista. De tal modo que a arte ganhou a importância de uma coleção de tampinhas.

Como um pouquinho de machismo não pode ser muito prejudicial, quero dizer, juntamente com as pessoas que gostam de bifes acebolados e ervilhas: ora, deixe de frescura rapaz! O que nós, os verdadeiros amantes da arte, nós os que admiramos a linha Cézanne-Picasso-Bacon - por extensão, senão a arte completamente figurativa, mas a que é grata às possibilidades do desenho - o que devemos fazer é dar uns chacoalhões nessa pivetada estudada empoleirando-se em bienais. Pois não há coisa mais chata do que artista explicando sua obra: nisso conseguem ser mais superficiais que os estilistas.

Quanto à exposição do SESI, é só mais uma coisa caseira, como aquele tipo de romance familiar tão criticado pelo saudoso senhor Sigmund Freud.

Alessandro Silva
São Paulo, 14/5/2003

 

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