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Sexta-feira, 9/5/2003
As Quatro Salas
Alexandre Soares Silva

Todos os assuntos do mundo são discutidos em quatro salas: a dos chatos burros, a dos chatos inteligentes, a dos divertidos burros e a dos divertidos inteligentes.

Sempre foi assim. Quatro salas, ao longo de milhares de anos.

Por vaidade, acho que estou na dos divertidos inteligentes. Todo mundo acha que está na dos divertidos inteligentes. Menos os chatos burros, que se orgulham da própria chatice; mas esses também se enganam ao achar que estão na sala dos chatos inteligentes.

Uma coisa sobre a hierarquia das salas: a mais respeitada é a dos chatos inteligentes. Porque os chatos fundamentam tudo o que dizem, e fundam sistemas e são coerentes.

Freqüentemente, nesta que eu acho que é a sala dos divertidos inteligentes, digo casualmente alguma coisa sobre, digamos, a lei. Não fundamento nada, porque não quero ser chato. Uma regra para não ser chato: chute. Nenhum chato chuta o que diz. E ninguém que chuta é chato.

Mas daí aparece alguém e diz: lá na sala dos chatos inteligentes já refutaram isso que você disse faz tempo, ó.

Entro na sala dos chatos inteligentes para perguntar se é verdade. Um grupinho de homens (homens são mais chatos que mulheres. São mesmo) estão conversando, digo, monologando em turnos, com vozes lentas e pastosas. Espero por uma pausa para poder fazer a minha pergunta, mas não há pausa. Alguém me faz um gesto para que eu sente; eu sento.

Por acaso, o sujeito gordo que está falando (canetas no bolso. Chatos têm canetas no bolso) está falando exatamente sobre lei. Está se aproximando do exato tópico em que supostamente fui refutado. Mas ele fala pau-sa-da-men-te, entre uma palavra e outra engole e dá para ouvir o som do ventilador e de um carro passando na rua, e eu tiro um cochilo, e acordo, e ele ainda está no mesmo período começado lá atrás com um outrossim.

Todo debate sério é feito nessa sala. São inteligentes, mas me fazem dormir. Pessoas caídas nos cantos acordam de vez em quando e prestam atenção no que está sendo dito, e comentam: "Ah, você ouviu o que o gordinho disse?" E você só é respeitado intelectualmente se passar por esse ritual, e ficar anos e anos estirado ali no chão, lutando contra a narcolepsia como Dostoiévski lutando contra um ataque epiléptico.

Voltei para a minha sala, seja ela qual for, porque não quero ficar ali estirado no chão dormindo. Quer saber? Ninguém está certo por ser chato. Ninguém está errado por ser divertido. E acima de tudo, ninguém está certo porque é tão chato que ninguém ficou acordado tempo suficiente para refutá-lo.

Aborígenes na Blockbuster
Considerando-se os quadros hediondos que as pessoas colocam em suas casas, até que elas se vestem bem.

Aliás, é surpreendente que pessoas que se vestem razoavelmente bem ouçam as músicas que ouvem, por exemplo, ou leiam os livros que lêem. Se alguém usasse roupas tão ruins quanto a ruindade de Deepak Chopra e Celine Dion, à sua passagem cavalos sangrariam pelos narizes e hidrantes estourariam.

Você vê um casal jovem e bem vestido na locadora, e nem suspeita que estão iniciando o filho na parafilia de gostar de Martin Lawrence. E eles te convidam para jantar, e você não percebe que não está falando com pessoas cililizadas até o momento em que você vê os móveis deles, ou até que vê os exatos quinze livros na estante - os habituais dois dicionários, um guia de praias, um livro sobre "Como Falar em Público", dois best-sellers históricos que vieram de presente, mais cinco livros que sobraram do colégio, e quatro revistas Playboys americanas (edição especial de aniversário, deluxe edition for the tasteful collector).

O retrato em tons pastéis do collie da família dá uma certa dica. Ou a estátua dourada de mulher pelada, sustentando o tampo de vidro da mesinha central com o traseiro e as omoplatas.

Eu realmente não sei como essa gente consegue encontrar o caminho para fora da cama de manhã, ou dar um nó numa gravata.

Aventura
Se a aventura é a vida nos momentos em que deixou de ser chata, só se pode escrever sobre isso, sob o risco de ser chato. Existe uma poesia da aventura, só as crianças percebem, e as pessoas muito muito imaturas.

Uma vez vi (ou sonhei que vi) o finalzinho de um filme em preto e branco, no qual DŽArtagnan estava morrendo de velhice, na cama. Dava pena de ver DŽArtagnan tão velhinho, com a filha e netos chorando em volta dele.

Daí ele morre. Seu espírito sai do corpo, jovem e pimpão. Vai até a janela, e lá embaixo, perto de um chafariz, vê Athos, Porthos e Aramis. Estão jovens também. Ele dá uma última olhada no quarto, lança um beijo para a filha e os netos, tirando o chapéu e fazendo uma vênia, e salta da janela para o cascalho. O filme termina com a imagem dos quatro amigos vistos de costas, de braços dados, rindo e indo embora. Estão andando, quase correndo, mas sobem na direção do céu noturno.

Suponho que para gostar de aventura, como gênero, é preciso acreditar que a masculinidade é um jogo, é realmente um jogo. Ela lhe foi dada justamente para isso, para que você a use. Fala-se tanto nos mistérios da feminilidade - por que não acreditar nos mistérios da masculinidade?

Pode-se ser um virtuose da masculinidade, como se pode ser um virtuose do violino. E é isso que é um herói, não? Um gênio da masculinidade?

Que aliás é uma vocação mais ou menos frustrada em todos nós. Não há moleque que não tenha uma certa convicção de que vai ser parecido com James Bond quando crescer. Mas cresce e vira um gerente de marketing que faz rappel nos sábados.

Nos filmes de Hitchcock ou nos romances de Eric Ambler, um homem pacato se vê envolvido etc. Nos romances de Eric Ambler chega a ser um homem meio fora de forma, que subitamente tem que lutar contra um traficante de armas turco adepto do fitness. É sublime, porque se trata da vida despertando uma vocação adormecida, como se Isaac Stern nunca tivesse encostado num violino, nem soubesse o que é um violino, ou tivesse medo de violino, e de repente a vida o forçasse.

A vocação de todo homem é ser o deus Marte.

Nota do Editor
Alexandre Soares Silva assina hoje o soaressilva.wunderblogs.com, ondes estes textos foram originalmente publicados.

Alexandre Soares Silva
São Paulo, 9/5/2003

 

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