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Terça-feira, 20/5/2003
Por onde anda a MPB atualmente?
Maurício Dias

"Falo assim sem tristeza
Falo por acreditar
Que é cobrando o que fomos
Que nós iremos crescer"
(Milton Nascimento e Fernando Brant, em "O Que Foi Feito Devera", de O Clube Da Esquina 2.)

Como já falei numa coluna passada, volto a insistir na criação dos bunkers contra a massificação imbecializante. Aqui segue um kit básico que um bom bunker deve ter em sua discoteca de MPB:

* Chega de Saudade - João Gilberto
* Clube da Esquina - Milton Nascimento e Lô Borges
* Samba Esquema Novo - Jorge Ben
* Matita Perê - Tom Jobim
* Transa - Caetano Veloso
* Eu Não Tenho Onde Morar - Dorival Caymmi
* África Brasil - Jorge Ben
* João Gilberto Prado Pereira de Oliveira
* Construção - Chico Buarque
* Caça à Raposa - João Bosco e Aldir Blanc
* Gal Costa - o segundo, de 69
* Da Lama Ao Caos - Chico Science & Nação Zumbi
* Secos & Molhados - O 1º.
* Galos de Briga - João Bosco e Aldir Blanc
* Jorge Ben (1969. O disco-tropicalista)
* Descendo O Morro, vol. 2 - Roberto Silva
* Amoroso - João Gilberto
* Cantar - Gal Costa
* Recital Na Boite Barroco - Maria Bethânia
* A Peleja do Diabo com o Dono do Céu - Zé Ramalho

Os de Roberto Silva e Caymmi são coletâneas contendo músicas previamente gravadas. Sendo assim, não são álbuns, como Construção ou o messiânico A Peleja do Diabo com o Dono do Céu, que lançam músicas novas. A própria "Chega de Saudade" já tinha sido gravada por Elizete Cardoso, com João Gilberto acompanhando no violão antes do próprio João gravar o disco do mesmo nome, que seria um divisor de águas da MPB. Aliás, sobre este disco todo mundo já disse algo, não há mais o que se falar, é chover no molhado. Basta dizer três palavras: João-Jobim-Vinícius.

Não podemos esquecer Jorge Ben e suas constantes pesquisas percussivas dos anos 60/70. Muitos encaram Jorge Ben como o 'negão cheio de suíngue', mas isto é apenas uma faceta deste grande compositor, um dos maiores de sua época. África Brasil é uma aula, do começo ao fim. É de se lamentar que o atual Benjor quase nunca toque músicas como "Meus Filhos, Meu Tesouro" ou "Xica da Silva" em shows. Há muita coisa maravilhosa destes tempos que o público ignora, pois a ênfase é sempre nos hits - todos maravilhosos - e não se tem acesso a pérolas como "Cinco Minutos" ou "Descobri Que Sou Um Anjo". E há na lista a Gal da fase roqueira dos tempos do píer, constantemente acompanhada dos amigos baianos, incluindo a fusion de João Donato no ótimo Cantar. E João Bosco e Aldir Blanc, em suas crônicas cheias de humor ácido sobre os subúrbios cariocas, sempre com um violão de primeira, como pode ser conferido no fado que dá nome ao disco Galos de Briga.

No ótimo Transa, nem em vinil nem em CD, nunca foi dado o crédito a Jards Macalé pela participação nos maravilhosos arranjos. Caetano nos dá o mix tropicalista It's a Long Way, juntando Caymmi, Beatles, Vinícius de Moraes e Baden Powell, antropofagia musical como nunca mais se viu.

Ecos dos Beatles também podem ser ouvidos no assombroso Clube Da Esquina (que nos EUA foi lançado pelo prestigioso selo de jazz Blue Note), um disco mais-que-perfeito. Os vocais de Milton Nascimento evocam melancolia contemplativa a cada estrofe. Seu falsete, já comentado por Caetano Velloso na capa de um de seus discos, é um portal para novos níveis de percepção. Por um instante, o mundo muda, as coisas fazem sentido; isto é o máximo que eu posso querer ou conceber da arte.

É como se aquele grupo de amigos soubesse que a separação estava próxima - não por alguma animosidade, mas por que a vida nos leva a caminhos diferentes - , o disco tem uma aura um pouco triste. Lô Borges, então um garoto com menos de vinte anos, mostra uma maturidade impressionante, como vocalista e músico, nas belas parcerias com seu irmão Márcio. O time de arranjadores e maestros inclui gente como Eumir Deodato e Paulo Moura; Beto Guedes mostra sua habilidade nas cordas em vários instrumentos. "Cravo e Canela", com a introdução em assobio, é uma das mais perfeitas canções de todos os tempos.

No delicioso João Gilberto Prado Pereira de Oliveira, o mestre canta "Joujou Balangandãs" com Rita Lee - que esbanja leveza e graciosidade - e interpreta Ary Barroso, Johnny Alf (o clássico "Eu e a Brisa") e outros.

Em Matita Perê, Jobim, o maior de todos, transpõe Guimarães Rosa para o universo musical de forma espantosa. Ele canta e você vê as imagens. Como um sujeito consegue fazer um filme só com um piano?

Ficaram de fora da lista discos com cara de songbook, como o ótimo Elis Regina & Tom Jobim. Ou encontros entre compadres para celebração de seus repertórios, como Edu Lobo & Tom Jobim, que além de ser maravilhoso tem uns solos de trompete de Marcio Montarroyos que são do outro mundo.

Discos instrumentais de repertório exclusivamente nacional também não foram incluídos, embora a bossa do Zimbo Trio, Dom Salvador Trio e outros seja indispensável.

Falta muita coisa na lista, Orlando Silva, Lúcio Alves, Carlos Lyra e outros. Todo mundo ao ler uma seleção de melhores discos, filmes, etc., lembra de um título que foi omitido. Aceito sugestões, vai que descubro algo que não conhecia. O Brasil é de uma diversidade musical absurda. De repente, no interior do Piauí tem um garoto ultra-criativo e que toca pra burro, mas não lhe é dada a oportunidade - quantas vezes algo parecido não aconteceu? Aliás, o espaço para o talento se exibir é cada vez mais restrito, em que pesem as facilidades de gravação proporcionadas pela tecnologia contemporânea. Idiotas de terno decidem o que o público vai ouvir, e as gravadoras e o meio musical são dominados por filhos de músicos ou pais ricos. Mas isso é assunto pra outro texto.

Ainda faltam muitos clássicos da discografia nacional serem lançados em CD, às vezes só dispomos de coletâneas meio sem vergonha, sem nenhum dado sobre a gravação ou crédito para os músicos que participaram - a eterna falta de memória brasileira. Há títulos que só se encontram no Japão, pagando uma nota. Há faixas que só se encontram em coletâneas, como na ótima "João Gilberto - O Mito" (também lançada nos EUA pelo selo Blue Note), que de quebra traz todo o disco "Chega de Saudade" e mais 26 (!) canções de um nível espetacular. Há coletâneas que são lançadas em série, tipo Os Bambas do Samba, que são ótimas. O selo Revivendo também tem maravilhas, entre elas um CD com todas as primeiras composições de Tom Jobim gravadas na fase pré-bossa nova, incluindo a "Hollywoodiana" Sinfonia do Rio de Janeiro.

Há também discos de intérpretes dando releitura a músicas já consagradas que são excelentes, como o do Quarteto Jobim-Morelembaum (creio ser o primeiro deles), que tem versões deslumbrantes de "Água de Beber" e "O Boto". Aliás, há que se dizer que o que falei sobre os filhos de músicos não vale para todos, e entre eles, Paulo Jobim. Em Matita Perê ele já tinha contribuído com uma belíssima faixa instrumental, "Mantiqueira Range", que reaparece no disco do quarteto; e no altamente recomendável Clube da Esquina 2, há um adágio de rara beleza, parceria sua com o craque Ronaldo Bastos, a linda "Olho d'água", cantada por Milton Nascimento e o coral dos Canarinhos de Petrópolis.

Agora, perguntar não ofende: quantos discos, de 1990 para cá, poderiam entrar numa lista de melhores da MPB? Enfim, o que se há de fazer? Comprar todos os antigos que puder. Fuçar as lojas, mesmo aquelas sujinhas, que tem balcões de usados. E comprar os livros de Ruy Castro, Sérgio Cabral e Sérgio Augusto sobre MPB, excelentes guias para quem quer se aprofundar.

Maurício Dias
Rio de Janeiro, 20/5/2003

 

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