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Segunda-feira, 19/5/2003
Silêncio nas trevas
Eduardo Carvalho

Caspar David Friedrich, The Pilgrim above Mist, 1818

Estava pregado, dias atrás, no mural da Atlética da Escola de Administração em que estudo, o jornalzinho do DA, na página da minha coluna, com trechos grifados, e a seguinte recomendação, redigida em caneta grossa: "Edu, você perdeu uma ótima oportunidade para ficar quieto!" Rapidamente alguém retirou a sugestão. Nem eu, quando procurei, a encontrei; amigos me descreveram, palavra por palavra, a frase do cartaz: e estava assim, "Edu", insinuando uma intimidade que eu não tenho ou convidando para uma aproximação que, com gente assim, eu não pretendo ter. O cheiro deve ser desagradável.

Não pode ser outro: não é só o espírito que certas pessoas emprestam do porco. Inclusive, aliás, o mesmo mural em que estava estendido o meu artigo - protegido e trancado, diga-se de passagem, com uma porta de vidro -, exibe também, há algum tempo, outro protesto, contra a Guerra promovida por Bush. É muito compreensível que a mesma pessoa que pretenda calar a minha boca prefira que Saddam Hussein continuasse calando a de um país inteiro. E é natural também que, em chiliques compulsivos, a própria personalidade totalitária mantenha-se, diante de argumentos fortes e opiniões abertas, calada - a não ser por frases vazias e sentenças autoritárias. Ou seja: enquanto exigem o meu silêncio, recolhem-se eles mesmos ao obscuro e gelado ambiente em que trabalham os seus neurônios. E ficam quietos.

Roberto Campos

Luiz Carlos Bresser Pereira é inteligente e sensato, mas, na última aula de Interpretações Econômicas sobre o Brasil, que tenho com ele, demonstrou que - apesar de ter convivido pessoalmente com Roberto Campos - ainda não conseguiu entender integralmente o economista. O erro talvez seja, em parte, do próprio autor, que reconhece, em muitos casos, sua inabilidade retórica. Mas não apenas: uma coisa é Roberto Campos ter lutado ferozmente contra nacionalistas de manual; outra, quase oposta, é que ele quisesse o pior para o Brasil, quando, por exemplo, reconhece a importância de capital estrangeiro para o nosso desenvolvimento. Não se pode confundi-las.

Nem se pode espremer Roberto Campos, uma personalidade complexa, em etiquetas simples, como faz Bresser Pereira, classificando a interpretação do autor de A lanterna na popa de "liberal-autoritária". Porque ninguém, com índole totalitária, escreveria assim, como escreveu Roberto Campos no artigo "Sobre a imbecilidade dos slogans", publicado no livro A técnica e o riso:

"Há quem pretenda que o processo democrático é incompatível com o rápido desenvolvimento econômico. Faz-se necessária uma disciplina totalitária para reprimir o consumo e arregimentar mão-de-obra. Essa doutrina era pregada pelos nazistas e hoje o é pelos comunistas. (...) Donde, nem o socialismo nem o totalitarismo serem necessários para o desenvolvimento."

Como essa, espalham-se, pela obra de Roberto Campos, várias passagens em que a democracia é vigorosamente defendida. Não é o caso de Bresser Pereira, mas o que certas pessoas querem, parece, é que o seu senso prático, e sua repulsa a ideologias, sejam condenados, como se ele fosse obrigado a conviver, a vida inteira, com uma fórmula que aprendeu na adolescência. Acusá-lo de infiel a um pensamento coerente e constante é culpá-lo justamente por aquilo que de melhor ele poderia ensinar: como nos distanciarmos da mentalidade fechada e comum. Chamem-no de vendido. Que, lá de cima, se ouvirá: vendido àquilo que vocês jamais conseguirão comprar: uma inteligência honesta.

O preto e o branco

O debate sobre cotas em universidades para minorias desfavorecidas - leia-se negros - chegou atrasado, no Brasil. Nós acompanhamos melhor as inovações tecnológicas do que o ritmo dos debates internacionais. Isso significa o seguinte: não assimilamos idéias nem tecnologia porque temos um espírito aberto e inovador, mas porque engolimos tudo que nos oferecem. É muito positivo que, para acumular lucros, empresas estrangeiras entrem no mercado nacional, e nos ensinem a usar celular e Internet - e, para isso, elas chegam correndo. Mas idéias novas - que circulam livremente pelo mundo - levam décadas para aportar no Brasil, e, quando isso acontece, esteja certo: estão atrasadas e, muitas vezes, erradas.

O affirmative action americano, com a intenção de integrar social e economicamente negros e hispânicos, revelou-se um desastre. A intenção original era ampliar oportunidades para certas minorias, incluindo, além das cotas, outras iniciativas, mas converteu-se, no fim das contas, numa discriminação racial disfarçada e invertida. Não há mais ingenuidade, hoje em dia, que aceite um discurso bonito e supostamente racional que sustente a rejeição de um aluno porque é branco, e a aceitação de outro, porque é negro. E, se é para defender alguém, onde estão os amigos do pobres, que - desarticulados e deseducados - não conseguem exigir seus interesses?

É fácil elaborar teorias polidas quando se tem, ao seu lado, a Levi's, o Bank Boston, a Fundação Ford, e outras infinitas multinacionais e ONG's financiando a pesquisa e apoiando a divulgação. Não é, porém, por mais dinheiro que se invista, esse o caminho. Não só todo mundo deve ser tratado de forma exatamente igual para ingressar na faculdade como, depois, precisa ser respeitado e punido, também igualmente, no mercado de trabalho. É querer muito?

Se isso acontecesse, o New York Times estaria, hoje, enfrentando uma situação bem menos constrangedora. Jayson Blair, jornalista negro, passou, durante cinco anos, escrevendo mentiras e absurdos no jornal, sem que ninguém analisasse mais atentamente os seus textos, para puni-lo ou despedi-lo. E isso não sou eu que estou dizendo: os próprios editores e colunistas do jornal assumiram esta falha: não tiveram coragem de enfrentar o exército politicamente correto. Se ainda alguma coisa parecida não aconteceu no Brasil, aguarde, com paciência: daqui a umas duas décadas, garanto - isso vai acontecer.

Quando éramos gatos

Convivo, há dezoito anos, com um gato em casa. Hoje, a rigor, em um apartamento, mas foi casa, durante uns quatorze anos. E confesso: nunca imaginei que fosse apegado a ele. Mudei, nesses anos, três vezes, e ele cinco, porque não nasceu comigo e, por um período, não morou com a gente. Dizem que gato, se não morre, não desaparece. Não mesmo, e nem o meu. Quando, porém, nos mudamos pela primeira vez, ele sumiu, depois de seis meses. E, um dia, misteriosamente - depois de outros seis meses -, quando já o considerávamos morto, ele reapareceu, como se tivesse ressuscitado, miando na beira da janela, enquanto jantávamos. Isso foi há oito anos. Eu não tinha barba, e nem sequer tinha a mais remota idéia do curso em que iria me graduar.

Estou, hoje, coberto por pêlos e por responsabilidades. Do jardim em que o meu gato cresceu, na Rua Sampaio Vidal, ao apartamento em que agora moro, na Alameda Franca, minha vida virou de ponta cabeça, digamos, umas cinco vezes. Mudei de idéia, e muita coisa mudou, na minha vida. Tentei, mas não consegui me preservar imune ao tempo. O que me surpreende, agora, em retrospecto, é que, apesar de tudo - de absolutamente tudo que acontece no mundo -, a postura do meu gato permaneceu igual: nunca ele precisou ou pediu mais do que comida e carinho, e viveu, a seu modo, sempre satisfeito.

Enquanto digito esta coluna, meu gato está imóvel, estendido no sofá. Sofre, ao mesmo tempo, de câncer e de Aids. Restam-lhe algumas horas, ou minutos, até que, de repente, seus olhos fechem definitivamente. É triste; e confesso, de novo: nunca imaginei que fosse ser assim. Sinto, agora, que estou perdendo um amigo - e das melhores companhias, especialmente nos momentos difíceis. Que nunca se deixou abalar com preocupações inúteis, como, afinal, todas as nossas são. Como talvez esta minha também seja: é difícil conviver com a idéia de que nunca iremos nos encontrar novamente.

Eduardo Carvalho
São Paulo, 19/5/2003

 

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