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Quinta-feira, 29/5/2003
A cabeleira do Zezé não significa que ele é
Adriana Baggio

A publicidade é um termômetro do que a sociedade está pensando, gostando ou deixando de gostar. É um medidor cultural, como se fosse uma escala Richter aplicada aos movimentos sociais. Como a publicidade precisa falar sem rodeios com o público, ela sempre apela para aquilo que está na cabeça do povo. Não dá para deixar de notar a presença cada vez maior de anúncios dirigidos ao público homossexual, ou de uma estética gay aplicada à publicidade, não importa o produto ou o target para o qual anuncie. Talvez isso reflita uma maior tolerância social e cultural em relação ao homossexual, fruto de um processo de distensão política e moral que começou na década de 1970 e que hoje culmina com uma maior liberdade de expressão e luta pela legitimação de direitos civis – ou pelo menos do direito de estar com o namorado ou namorada sossegado em qualquer local público do país.

No entanto, por mais que as cabeças pareçam estar arejadas, é incrível a confusão que se faz em relação à classificação de alguém como hetero ou homossexual. As pessoas aprenderam a identificar e classificar o gay através da representação feita pela mídia – estereotipada, assim como acontece com a mulher, com o negro, com o machão, e por aí vai. Como não existe uma contrapartida informativa, o preconceito se alimenta da ignorância geral da população. Ignorância no sentido de ignoto, desconhecido, e não de burrice. Este preconceito se reflete desde as piadinhas e risinhos até atitudes violentas. Não importa o grau. Ninguém gosta de ser rotulado, enquadrado ou agredido.

Essas reflexões são fruto de parte de uma pesquisa de mestrado que pretende analisar a publicidade dirigida ao homossexual. Como fazer essa análise sem tentar entender um pouco mais sobre esse público? Acredito que as informações coletadas até agora podem ajudar a desfazer algumas confusões ou pré-conceitos.

Em primeiro lugar, é importante definir o que é o homossexualismo. A representação desse grupo na mídia reforça uma imagem gerada pelo preconceito que, normalmente, é estereotipada e carregada de aspectos negativos e degradantes. O processo de estereotipização, ao mesmo tempo em que revela as figuras associadas à homossexualidade, limita a identificação a um certo número de características que podem ou não fazer parte da personalidade, do modo de vida ou do aspecto físico de um homossexual. A identificação e o julgamento acabam sendo feitos com base no papel sexual, que não é o elemento determinante da homossexualidade. O que determina ou define o comportamento homossexual é a orientação sexual.

Antes de falar em papel e orientação sexual, vale expor uma discussão a respeito da noção de sexo que permeia nossa cultura. "O sexo é um nome dado a coisas diversas que aprendemos a reconhecer como sexuais de diversas maneiras. Certas coisas sexuais podem ser mostradas, como, por exemplo, as descrições médico-fisiológicas do aparelho genital. Outras, como descrições de sensações corporais, são reconhecidas pela mostração e pela interpretação, como orgasmo, que aprendemos que é 'algo sexual' mas que poderia ser sinal de possessão pelo demônio ou espasmo muscular. Outras, como descrições de sentimentos afetivos ou amorosos, são puras realidades lingüísticas, que não podem ser mostradas e nas quais o suporte corporal é absolutamente dispensável como critério de uso correto dos termos e expressões. Outras, finalmente, como regras de parentesco e valorização moral de condutas dependem do conhecimento prático ou abstrato de instituições culturais e sociais complexas, sem relação direta com atos e condutas observáveis" (COSTA, 1996, p. 64).

Segundo Jurandir Freire Costa, aquilo que unifica e identifica os atos sexuais como da ordem do sexo na nossa cultura podem inexistir em outras culturas. Os Sambia, uma tribo na Nova Guiné, tem como princípio da vida o sêmen. Conseqüentemente, o valor do sêmen é que determina a ordenação moral das práticas sexuais. A sua produção e distribuição é feita de diversas maneiras, inclusive aquelas que, na nossa cultura, estão na ordem da identificação com o sexo. Por exemplo: entre os Sambia é costume haver a transmissão de sêmen de homens adultos aos meninos através da felação para que cresçam, adquiram força e possam ser bons produtores de sêmen quando ficarem adultos (1996, p. 67). Em nossa cultura essa prática seria classificada como homossexualismo, por ser realizada entre duas pessoas do mesmo sexo, e como pedofilia, por envolver um adulto e uma criança. Entre os Sambia, o que tem valor é o sêmen e as situações de sua produção e distribuição. Um indivíduo moralmente valorizado e responsável, seja homem ou mulher, adulto ou criança, é aquele que se coloca no lugar certo e no tempo certo na cadeia de produção e distribuição do sêmen. "Conclusão: expressões sexuais usadas para falar de sexo tais como 'o mesmo sexo' e o 'outro sexo' naquela cultura soariam tão estranhas quanto nos pareceria estranho dividir os indivíduos modernos entre 'felaciofílicos' e 'felaciofóbicos' ou definirmos alguém como 'impotente para a felação', se esse alguém, por acaso, dissesse ter nojo ou inibição para praticá-la (IDEM, 1996, p. 67).

A idéia da homossexualidade na nossa cultura é possível pela forma como a noção de sexo evoluiu até chegar à atual. Até o século XVIII, a concepção científica dominante da sexualidade era a do one-sex model, onde os humanos tinham um só sexo e a mulher era entendida como um homem invertido e, portanto, inferior. Por essa concepção, todas as relações seriam homoeróticas, já que envolveriam a fricção de duas partes sexuais iguais, mesmo que uma fosse o inverso da outra. A partir do século XVIII concebe-se a noção de sexualidade através do two-sex model, que mesmo distante da noção atual, já previa uma diferenciação básica entre o homem e a mulher a partir das diferenças anatômicas.

"A invenção dos homossexuais e heterossexuais foi uma conseqüência inevitável das exigências feitas à mulher e ao homem pela sociedade burguesa européia. (...) No modelo médico do one-sex model, o sexo referia-se exclusivamente aos órgãos do aparelho reprodutor. Não era algo invasivo, que perpassava e determinava o caráter, os amores, sentimentos e sofrimentos morais dos indivíduos. Este sexo absoluto, onipotente e onipresente só tornou-se teórico-culturalmente obrigatório a partir do momento em que se criou a noção da bissexualidade originária. (...) A homossexualidade será, inicialmente, definida como uma perversão do instinto sexual causada pela degenerescência de seus portadores e, depois, como um atraso evolutivo ou retardamento psíquico, manifestos no funcionamento mental feminino do homem" (COSTA, 1996, p. 86-87).

As noções de sexo, papel sexual, identidade sexual e orientação sexual, que devem ser consideradas para a classificação de um indivíduo como homossexual, derivam dessa evolução da concepção científica da sexualidade (É curioso observar que, com base nessas concepções, os aspectos negativos da homossexualidade masculina são originários da presença de aspectos "femininos" no homem. Não é à toa que em seus movimentos de reivindicação por respeito aos direitos e modo de vida, os homossexuais façam uma comparação com o movimento feminista, que também precisou levantar bandeiras para que a mulher deixasse de ser considerada um produto inferior ou defeituoso da raça humana.). De acordo com a psicóloga, sexóloga e prefeita Marta Suplicy, "o sexo de uma pessoa é determinado antes do seu nascimento por uma definição biológica. O papel sexual é determinado por leis sociais que indicam como cada sexo deve se portar. (...) O indivíduo desenvolve dois esquemas de identidade (papel) sexual no cérebro. Um é o esquema de identidade de si mesmo e o outro é o do sexo oposto. A identidade sexual é a percepção de ser homem ou mulher que cada indivíduo tem a seu respeito. Ao contrário do que se acreditou durante muitos anos é diferenciada principalmente após o nascimento e infância. É determinada muito cedo, provavelmente até aos 2 anos de idade. A orientação sexual significa a expressão sexual de cada indivíduo por um membro de outro sexo, do mesmo sexo, ou por ambos os sexos. Não se sabe se a orientação sexual é determinada pelo social, por fatores biológicos ou ambos" (SUPLICY, 1986, p. 265-266).

O que normalmente acontece é uma confusão entre orientação sexual e papel ou identidade sexual. Um indivíduo do sexo masculino pode ter características do papel sexual feminino e uma orientação sexual para o sexo oposto. A orientação homossexual não tem como prerrogativa a identidade sexual contrária ao sexo. Muitos homossexuais, sejam homens ou mulheres, têm uma identidade sexual correspondente ao seu sexo (homem com identidade sexual masculina, mulher com identidade sexual feminina), enquanto outros têm uma identidade sexual oposta ao seu sexo.

A representação do homossexual na mídia é feita com base no papel sexual. O homossexual masculino é representado com características do papel sexual feminino, e vice-versa. Pela disseminação dessa associação na nossa cultura, os indivíduos cujo papel sexual não esteja de acordo com seu sexo são imediatamente classificados como homossexuais, sem que se leve em conta a orientação sexual da pessoa. Homens com gestos e feições mais delicados, ou que prefiram atividades mais ligadas à sensibilidade que à força, são tachados de homossexuais, da mesma maneira que mulheres que não dêem tanta atenção à vaidade, ou que prefiram atividades e profissões ditas "masculinas", também recebem esta classificação. "O homossexual é freqüentemente estereotipado, tanto social quanto cientificamente. Como se os homossexuais fossem todos iguais, tivessem as mesmas profissões, interesses, educação, estilo de vida, personalidade e aparência física" (IDEM, 1986, p. 266).

Esta é uma pequena parte de um trabalho que se aprofunda paulatinamente. Os equívocos são inerentes ao seu caráter de incompletude. Mesmo depois de concluída, essa pesquisa não terá a pretensão de esgotar o assunto, que envolve abordagens tão diversas quanto as da psicologia, sociologia e antropologia. No entanto, o pouco que existe aqui pode servir como uma espécie de facho de luz a varar os cantos mais escuros da nossa mente, permitindo observar este tema com uma clareza maior do que nos impõe a representação estereotipada. Uma representação que a publicidade vem fazendo pelo lado inverso: ao perceber o grande filão mercadológico que é o grupo consumidor homossexual, parece estar procurando padrões cada vez mais simpáticos de representação do público gay. Neste caso, talvez os fins estejam justificando os meios.

Para saber mais:

COSTA, Jurandir Freire. O referente da identidade homossexual. In: PARKER, Richard e BARBOSA, Regina M. (orgs.) Sexualidades Brasileiras. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996.

SUPLICY, Marta. Conversando sobre sexo. Petrópolis: Edição da Autora, 1986 (Distribuição: Editora Vozes).

Adriana Baggio
Curitiba, 29/5/2003

 

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