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Terça-feira, 10/6/2003
Picasso e Matisse: documentos
Maurício Dias

Pablo Picasso, Nature Morte, 1924

Tomei conhecimento de dois documentos, diante dos quais não vejo muita necessidade de me manifestar. Eles se auto-explicam:

Primeiro, a carta de Pablo Picasso a Giovanni Papini:

"Desde o instante em que a arte deixa de ser o alimento para as melhores mentes, o artista pode usar todos os truques do charlatão intelectual. Hoje em dia, a maioria das pessoas não espera mais receber consolo ou exaltação da arte.

"Os ‘refinados’, os ricos, os ociosos profissionais, os destiladores de quintessências buscam o que é novo, estranho, extravagante, escandaloso na arte. Eu mesmo, desde o cubismo e além dele, contentei esses mestres e esses críticos com todas as bizarrices mutáveis que me passaram pela cabeça.

"E quanto menos eles me compreendiam, mais eles me admiravam.

"À força de me divertir com todas essas brincadeiras, com todos esses quebra-cabeças, enigmas, e arabescos, eu fiquei célebre, e muito rapidamente. E a celebridade para um pintor significa vendas, lucros, fortuna, riqueza. E hoje, como o senhor sabe, eu sou famoso, eu sou rico.

"Mas, quando estou sozinho comigo mesmo, não tenho a coragem de me considerar um artista no sentido antigo e grande da palavra. Giotto, Ticiano, Rembrandt e Goya foram grandes pintores: eu sou apenas um divertidor do público – um charlatão.

"Compreendi o tempo em que eu vivi e explorei a imbecilidade, a vaidade, a avidez de meus contemporâneos. É uma amarga confissão a minha, e mais dolorosa do que parece. Mas ela tem o mérito de ser sincera".

Publicada por Giovanni Papini em 1952, em seu Libro Nero (1).

Em meados da década de 90, Lord Glendenvon – um ex-ministro britânico, apaixonado pelas artes plásticas – despachou para os principais jornais ingleses a carta, em protesto contra a compra de obras do pintor espanhol pelo governo inglês. Simon Wilson, o curador da Tate Gallery disse que a entrevista era uma notória cascata, tendo sido inventada por Papini.

Bem, quando da publicação do Libro Nero, Picasso era vivo e poderia ter se defendido, caso se sentisse vítima de calúnia.

E que Simon Wilson, um curador, defenda a legitimidade da arte moderna também não é de se estranhar. Ele vive disso, vai fazer o quê, matar a galinha dos ovos de ouro?

Sempre que estas discussões envolvem dinheiro público destinado às artes, tendo a ficar ao lado daqueles que defendem cautela. Por exemplo: gastar duzentos milhões do erário público na compra da franquia de um museu de arte contemporânea? Soy contra. Ser mecenas com dinheiro dos outros é muito fácil. E sempre fica a suspeita geral de ter gente ‘molhando o bico’.

Segue-se um outro documento, carta de Henri Matisse a Henry Clifford – diretor do Museu De Arte da Filadélfia –, escrita em 1948, antes de uma grande exposição do pintor francês que ia ocorrer naquele museu:

“Espero que minha exposição seja digna de todo o trabalho que está lhe dando e que me comove profundamente.

“Tendo em vista, porém, a grande repercussão que pode ter, e vendo quantos preparativos estão sendo feitos para ela, pergunto-me se o seu âmbito não terá uma influência mais ou menos infeliz sobre os jovens pintores. Como interpretarão eles a impressão de aparente facilidade que lhes produzirá uma visão geral rápida, e até mesmo superficial, de minhas pinturas e desenhos?

“Sempre tentei ocultar os meus esforços, sempre desejei que minhas obras tivessem a leveza e a alegria da primavera, que nunca nos permite suspeitar o trabalho que custou. Por isso, receio que os jovens, vendo em minha obra apenas uma facilidade aparente e negligência no desenho, se sirvam disso como desculpa para evitar certos esforços que me parecem necessários.

“As poucas exposições que tive a oportunidade de ver durante estes últimos anos levam-me a temer que os jovens pintores estejam evitando a lenta e penosa preparação necessária à educação de qualquer pintor contemporâneo que pretenda construir apenas pela cor.

“Esse trabalho lento e penoso é indispensável. Na verdade, se os jardins não fossem cavados no momento adequado, em breve não serviriam para nada. Não precisamos limpar o terreno para em seguida cultivá-lo a cada estação do ano?

“Se o artista não soube preparar o seu período de floração, mediante um trabalho que apresenta pouca semelhança com o resultado final, breve é o futuro que tem à sua frente: quando um artista que 'venceu', já não sente a necessidade de voltar à terra de tempos em tempos, começa a andar à volta, repetindo-se, até que sua curiosidade se extingue nessa repetição.

“O artista precisa possuir a natureza. Deve identificar-se com o seu ritmo, por meio de esforços que preparem o domínio que mais tarde lhe permitirá expressar-se na sua própria linguagem.

“O futuro pintor deve saber o que é útil para o seu desenvolvimento – desenho, ou mesmo escultura – tudo o que o levará a identificar-se com a natureza, entrando nas coisas – é a isso a que chamo natureza – que lhe provocam sentimentos. Considero essencial o estudo por meio do desenho. Se o desenho pertence ao Espírito e a cor aos Sentidos, é preciso desenhar primeiro, cultivar o espírito e ser capaz de conduzir a cor pelos caminhos espirituais. É isso o que quero dizer bem alto, quando vejo o trabalho de jovens para quem a pintura já não é uma aventura e cujo único objetivo é a exposição individual que os ponha no caminho da fama.

“Só depois de anos de preparo deve o artista jovem tocar na cor – isto é, não como uma descrição, mas sim como meio de expressão. Só então pode ele esperar que todas as imagens, ou mesmo todos os símbolos que usar sejam reflexo de seu amor pelas coisas, um reflexo em que ele pode confiar, caso tenha realizado sua educação com pureza e sem mentir para si mesmo.

“Então ele empregará a cor com discernimento. Irá colocá-la de acordo com um projeto natural, não formulado e totalmente disfarçado, que nascerá diretamente de seus sentimentos: foi isso que permitiu a Tolouse-Lautrec, no fim de sua vida, exclamar: 'Finalmente, já não sei mais desenhar.'

“O pintor que está apenas começando acha que pinta com o coração. O artista que completou seu desenvolvimento também acha que pinta com o coração. Só este último está certo, porque seu treinamento e disciplina lhe permitem ceder a impulsos que ele pode, pelo menos em parte, disfarçar.

“Não tenho a pretensão de ensinar: quero apenas que minha exposição não provoque interpretações falsas naqueles que ainda precisam abrir o seu caminho. Gostaria que as pessoas soubessem que não podem abordar a cor como se entrassem por uma porta aberta, que é necessário passar por um rigoroso preparo para ser digno dela. Mas, antes de tudo, é evidente que devemos ter um dom da cor, como o cantor deve ter voz. Sem esse dom, não podemos chegar a lugar nenhum, e nem todos podem dizer como Corregio: 'Anch’io son pittore.' O colorista faz sentir sua presença até mesmo num simples desenho a carvão.

“Meu caro Sr. Clifford, chego ao fim de minha carta. Comecei-a para dizer-lhe que compreendo o trabalho que está tendo comigo no momento. E vejo que, obedecendo a uma necessidade íntima, fiz desta carta uma expressão do que sinto sobre o desenho, a cor e a importância da disciplina na educação de um artista. Se acha que todas essas minhas reflexões podem ser úteis a alguém, faça com esta carta o que lhe parecer melhor...” (2)

Depois destas cartas, recomendo um texto meu, “Crítica à arte contemporânea”.

(1) A carta de Picasso pode ser lida em:
showgate
cressidastransformations
agricola2000.tripod
artcollection2002

(2) – Tradução para o português de Waltensir Dutra. Extraído de H.B. Chipp, Teorias da Arte Moderna, Ed. Martins Fontes.

Maurício Dias
Rio de Janeiro, 10/6/2003

 

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