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Terça-feira, 3/7/2001
Histórias de quando eu tinha tempo livre de sobra
Rafael Lima

Em sociedade não há mal educados, há excêntricos

Em 1994 o Castelinho, uma construção histórica na Praia do Flamengo, mostrou que os difíceis anos de sobrevivência da década de 80, quando esteve ameaçado até de ser demolido, não foram à toa, ao sediar uma convenção que trouxe pela segunda vez ao Rio o Bill Sienkievicz. Quando o pessoal da Panacea (uma revista de "cultura jovem" que não existe mais) me ligou pedindo uma entrevista, eu fiz as contas e vi que era terça-feira, eu tinha duas provas até sexta, o Bill chegava na quinta e ia embora domingo de tarde. Apesar dele falar muito bem, eu não estava seguro do meu inglês, nem tinha gravador. Quer dizer: topei sem hesitar. As coisas se movem de maneira meio estranha para mim quando se trata de histórias em quadrinhos. Descolei um gravador emprestado, comprei uma fita, colei no gringo e marcamos uma entrevista no fim da tarde de sexta-feira, no bar anexo ao Castelinho. Estava até parecendo fácil. Como sói acontecer nessas situações, o Ota, editor da Record, tinha o seqüestrado (volta e meia o Ota seqüestra um quadrinhista estrangeiro que esteja por essas bandas) para um tradicional passeio ao Pão-de-Açúcar, que teria sido o máximo -- não fosse aquele o dia mais nublado do ano... Como se isso fosse pouco, ainda me aparece, simplesmente do nada, uma repórter-nunca-vi-antes, correspondente de um diário de Campinas (Campinas! Não podia ser mais longe, pra dar mais chance do avião cair no caminho!) com seu gravadorzinho e estoque de perguntas imbecis... (o editor da Panacea tinha me passado por telefone umas perguntas beeeem cabeça na véspera). Para completar a cena, uma mesa com oito pessoas conversando em clima de happy hour total ao fundo proporcionavam uma versão turbinada do que o vulgo chama por aí de ruído fundo para o tom pausado e educado da voz de Sienkievicz, fatalmente o que menos se ouvia na fita cassete... Eu devo ter inventado metade do que ele disse. A outra metade eu tive que deduzir. Mas mesmo assim foi um fim de semana excepcional: apesar da celebridade, Bill se mostrou extremamente paciente e atencioso, e nem desconfiou que suas roupas, especialmente as botinhas com bico metálico no pior estilo jeca-texano-que-acha-que-é-hype, tinham sido responsáveis por criar, nos termos de Carlos Maçaranduba, "dúvidas acerca de sua masculinidade" entre alguns fãs maledicentes. Pude vê-lo declarar paixão por canetas esferográficas, falar sobre sua adaptação para os quadrinhos de Moby Dick, ensinar o povo a pronunciar seu sobrenome, conhecer em primeiríssima mão a xerox da biografia de Jimi Hendrix em quadrinhos que ele acabara de concluir, mas acho que o grande momento foi a resposta que deu à inocente pergunta de um fã sobre sua idade:

- Tenho idade suficiente para beber bebidas alcoólicas, dirigir e fazer sexo seguro consensual.

Ave, César!

Uma das presenças mais aguardadas na segunda Bienal de Quadrinhos era a de Gaetano "Tanino" Liberatore, o brilhante desenhista de Ranxerox, provavelmente o quadrinho mais violento da década de 80 - e olha que a disputa pelo título era briga de cachorro grande. Italiano e profundo conhecedor de anatomia humana, como Milo Manara (que, assim como os sutiãs, é mais chegado à anatomia feminina), a exposição dos seus originais criou uma espécie de concurso informal entre os desenhistas profissionais e wannabe para tentar descobrir as técnicas utilizadas para capturar todo aquele realismo. Dizia-se que até batom e maquiagem ele colocava no papel para conseguir certos efeitos. Em uma palestra, Lourenço Mutarelli, ganhador do prêmio de melhor história da primeira Bienal, perguntou:

- Quando você termina de desenhar uma página, também dá um murro em cima do papel e grita, 'Parla, parla!'?

Mas isso foi depois que todo mundo sacou que ele era sangue bom. Antes, apesar do belo bronzeado e do ar de folgada simpatia transmitido por um sorriso largo, ainda tínhamos um pé atrás, afinal, tratava-se do autor de uma história em que um ciborgue espanca metade de um bar com um telefone público recém-arrancado da parede... Enquanto procurávamos a melhor hora de pegar seu autógrafo, vi-o entrar num botequim em frente ao Centro Cultural dos Correios, sede do evento. Ferrou, pensei com as minhas revistas, desenhando os quadrinhos que desenha, no mínimo ele vai sair lá de dentro com uma caipirinha, se não vier coisa pior, e aí melou o autógrafo. Para nossa surpresa e felicidade, saiu com um guaraná, chupando de canudinho! Poucas vezes lembro de ter mudado tão rápido minha idéia sobre alguém, e como Liberatore já se adaptara completamente ao gentio local, pouco depois estava de papo na nossa rodinha, na escadaria em frente aos Correios... Voltamos correndo para mostrar o troféu reluzente a um amigo, dono de uma loja de quadrinhos aberta naquele ano, e que tinha um stand na Bienal: "Liberatore, cara, Liberatore!". Pô, legal, hein, dizia ele, enquanto fazia que sim com a cabeça, o beiço esticado para frente. Foi a gente desviar para a esquerda, saindo do seu alcance, que ele perguntou à quem estava mais à mão:

- Quem é esse Liberatore?

A melhor resposta tinha sido dada pelo próprio, naquela mesma palestra:

- Io sono una personna piu dolce.

O velhinho é demais

Os produtores do documentário em 3 partes sobre Will Eisner seria exibido pela Tv Senac acharam por bem trazê-lo para a pré-estréia, haja vista a imensa amizade que se estabelecera entre eles e o cartunista norte-americano, e o gosto que Eisner não era de hoje nutria pelo Brasil (era a quarta ou quinta vez que ele nos visitava). Nada disso seria de se admirar se Eisner fosse um músico novato estreando em Free Jazz, ou um videomaker dinamarquês só conhecido por quem lê suplemento cultural de jornal paulistano com lupa, e não o maior verbete de qualquer enciclopédia de histórias em quadrinhos publicada nos EUA - e em mais algumas da Europa. Costuma-se compará-lo a Orson Welles, pela revolução da narrativa que ambos realizaram em seus respectivos campos de trabalho, Welles com Citizen Kane; Will Eisner com The Spirit, mas eu diria que Eisner vai mais longe: ele seria o Chaplin dos quadrinhos, alguém que atuou nos primórdios, tanto ajudando a definir o próprio caráter - e a cara - do meio quanto subvertendo-o ao mesmo tempo, descobrindo todas as possibilidades que ele oferecia. Eisner criou The Spirit mais como um comentário do que propriamente um modelo de super-herói em 1940 e produziu histórias semanais de 7 páginas até 1952, contando com a ajuda de um estúdio no período em que esteve na guerra. Largou os quadrinhos para só voltar em 77, quando ajudou a formatar o mercado para um novo gênero, o graphic novel. Desde então, criou umas 20 graphic novels, algumas com mais de 100 páginas, entre elas seu livro de memórias. Aos 83 anos, lépido, bem humorado, ainda produzindo uma página completa por dia (roteiro, desenho, arte-final e letras!), é um prazer para Eisner dar autógrafos à uma das poucas filas em que estive onde dizer que havia gente de todas as idades não era mera figura de linguagem. Disse-lhe que faziam 8 anos que eu havia pego seu primeiro autógrafo.

- Oito anos!... você não parece oito anos mais velho!

Não deixei por menos:

- A gente deveria marcar de se encontrar a cada 8 anos para eu pegar o seu autógrafo...

Rafael Lima
Rio de Janeiro, 3/7/2001

 

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