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Sexta-feira, 15/8/2003
Olavo de Carvalho: o roqueiro improvável
Paulo Polzonoff Jr

Grande - se não maior - prova da qualidade da música do Los Hermanos foi a presença do mítico e sempre polêmico Olavo de Carvalho* no show da banda, no Canecão, na última sexta-feira. No meio de menininhas de saias plissadas, pit-boys tatuados, surfistas com parafina no cabelo, quarentões de bermuda e até um ou outro punk de boutique, lá estava o filósofo e caçador de comunistas. Quando o vi pulando ao som de "Pierrô", já no bis, não pude acreditar. Como num desenho animado, esfreguei os olhos para ter certeza: era mesmo ele, Olavo de Carvalho. Vencendo minha timidez e também a resistência dos fâs que se acotovelavam na pista central, me aproximei e me apresentei:

- Oi.
- Boa noite - disse ele.
- Eu sou o Paulo Polzonoff - informei.
- Ah, tá.

Não foi um começo promissor, eu sei, mas supus que o filósofo não estava me escutando direito, depois de duas horas de show. Ora, é claro que ele me conhecia. E, se não conhecesse, iria conhecer naquela noite, ah, se iria. Insisti: fiquei na ponta dos pés para alcançar o ouvido daquele muitos consideram um gigante intelectual e perguntei, gritando um pouco:

- Você me conhece, não?
- Conheço, sim.
- Vamos conversar? - propus.
- Agora eu não posso.
- Por quê?
- Estou em êxtase divino.

Eu conhecia estes arroubos espirituais de Olavo de Carvalho. Convivi com algumas pessoas de sua trupe durante um tempo e fiquei sabendo que não só ele como seus discípulos são capazes de ascensões espirituais estratosféricas diante de um texto de Aristóteles. Mas aquela submersão espiritual bem na pista central do Canecão me pareceu um exagero demasiado, quase tanto quanto não sair de casa porque a Lua não está numa posição favorável. Desconfiei: o filósofo estava me ignorando, pura e simplesmente. Mas não desisti. Fiquei ali, esperando que o êxtase divino cessasse. Pensei em lhe oferecer um Luftal. Foi ele quem me chamou, depois de uns cinco minutos.

- E então? Gostou do show?
- Gostei. Mas me surpreendi com o senhor aqui.
- Me chame de você. Já somos praticamente íntimos. Você sabe.
- Sei, é?
- Poxa, eu sou seu leitor!
- Eu fui seu leitor. Mas toda aquela coisa de comunistas e Farc e coisa e tal me cansou.
- Não falemos destas coisas desagradáveis numa noite tão perfeita - pediu.
- Tudo bem. Aliás, deixe-me fazer um elogio: o senhor, digo, você, cheira muito bem.
- Como assim?
- É que uma aluna sua me disse que o você não gostava de tomar banho. E não foi por maldade, não. Ela achou isso algo excêntrico, charmoso, sexy...
- Não sei se devo agradecer.
- Não agradeça - pedi, atentando para a gafe que cometera. - Como eu estava dizendo, me surpreendi com você aqui no meio desta garotada. Achei que eu estivesse bêbado, mas depois percebi que eu não tinha bebido nada. Vê se pode.
- Ah, eu gosto muito do Los Hermanos.
- Como assim?
- Eu gosto, oras! Desde O Bloco do Eu Sozinho.
- E "Ana Júlia"?
- "Ana Júlia" não é ruim, não. Só que cansou.
- Essa conversa vai longe. Vamos nos sentar? - sugeri.

As pessoas aos poucos deixavam o Canecão. Uma menininha de seus dezesseis anos, que estava olhando para o filósofo já há algum tempo, se interpôs no nosso caminho e lhe pediu um autógrafo. Depois da assinatura numa agenda colorida, seguimos nosso caminho. Grupos andam mais devagar, por isso teríamos alguns minutinhos para nos sentarmos nas mesas já desocupadas. Pedi à garçonete mal-humorada uma garrafinha dīágua e Olavo de Carvalho pediu uma cerveja. Mas como eles não serviam Boehmia, tomou uma Coca-Cola mesmo. Enquanto nossas bebidas não vinham, conversamos. O arauto do conservadorismo brasileiro disse que conhecia o Los Hermanos de longa data e sempre botou a maior fé nos garotos.

- Eles são mesmo muito bons.

Expus minha incredulidade confessando que pensava que um homem como Olavo de Carvalho, admirador de Charles Murray e tal, só escutasse música clássica de obscuros compositores liberais. Ele riu, disse que de vez em quando gostava de reviver os áureos tempos. Não entendi e ele me explicou:

- De quando eu era jovem.

Pareceu-me uma tela surrealista, esta: Olavo de Carvalho, jovem. Eu sabia que ele, na juventude, tornara-se membro do Partido Comunista. Rindo, perguntei se ele usava camiseta com a cara do Che Guevara e ele riu novamente, diante do absurdo da pergunta. Suspiramos os dois antes de ele tocar no assunto:

- Bons meninos, né?
- Quem?
- O pessoal do Los Hermanos, ora!
- Ah...

Realmente, algo que distingue o Los Hermanos de qualquer outra bandinha de rock contemporânea (exceto, claro, pelos grupos de rock gospel) é o comportamento asseado. Eles não se vestem como maltrapilhos ou palhaços punk. Marcelo Camelo, o vocalista, parece até um daqueles menininhos inseguros para o qual a mãe, até hoje, compra camisas pólo, um número abaixo do ideal. Exatamente como as que eu uso, diga-se de passagem. Ele parece incomodado em ter de se parecer com um astro do rock, ainda que rock nacional - e ainda que rock nacional restrito. Tamanho bom-mocismo se reflete na platéia. A casa de espetáculos estava lotada, desde crianças de seus catorze anos (quando eu tinha catorze anos, odiava que me chamassem de criança) até quarentões e sessentões como Olavo de Carvalho e Nelson Motta. Não houve brigas, nem gente caindo de bêbada. No ar, não havia aquele cheiro característico dos shows de rock - o mesmo que sai da chaminé do Gabeira.

- E como são felizes, né? - comentei. - Digo, genuinamente felizes. Eu diria até que felizes porque surpresos - emendei.

Olavo de Carvalho riu. E começou dizendo que quase chorara no início do show, justamente por causa desta felicidade visível, principalmente no olhar de Marcelo Camelo e Rodrigo Amarante. Havia algo de infantil naquilo, como se fossem dois menininhos brincando de bandinha, mas com uma multidão real de fãs à sua frente. Mas não era só uma felicidade assim barata, não. Havia naqueles olhos também realização. Comentei com Olavo de Carvalho o que sabia sobre o assunto:

- Os caras começaram com "Ana Júlia", que foi hit do verão, lembra? Ninguém agüentava mais aquilo. Mas parece que eles tinham planos mais ambiciosos. Quando mostraram o segundo disco aos executivos da Abril Music, na época, os engravatados ficaram revoltados. Queriam mais músicas fáceis, como "Ana Júlia". E não músicas como cadê "teu suin-?" ou "Cher Antoine". Imagine?! Rock em francês!
- Tem um verso deles que eu adoro - disse Olavo de Carvalho.
- Verso? Mas se pode chamar de verso qualquer coisa deles? As letras são escritas em prosa! - discordei com alguma veemência. A água estava fazendo efeito em mim já.
- Que seja! É: "- Toma este anel que é pra anular o céu, o sol e o mar".
- Não acredito! - eu disse.
- Por quê?
- Eu estava justamente falando deste verso ou frase outro dia. Fala sério: o anel para anular é um trocadilho para lá de inteligente.
- E não é só isso - anunciou Olavo de Carvalho, abrindo outro parágrafo na conversa.

Discorreu o filósofo e neo-roqueiro sobre o conteúdo das letras compostas pela banda. Eu achei que, neste momento, se seguiria uma longa divagação sobre a infiltração comunista no subconsciente dos ouvintes de rock, mas que nada. Olavo de Carvalho estava exultante com o tom hedonista das letras. Até quando choravam de amor, eram brincalhões, riam da própria desgraça. Eles não ficam se lamuriando sobre a existência, não fazem considerações políticas de contestação barata, não tentam escrever um tratado de filosofia. Falam da poética pequena do cotidiano banal. O filósofo e roqueiro improvável disse ainda que o que mais gostava na música do Los Hermanos era o uso dos metais. Lembrava, claro, Os Paralamas do Sucesso, mas era algo mais elaborado. Muito mais elaborado. Ao ouvir as músicas, dava para imaginar os caras se divertindo ao compô-las. Podia-se ver que havia ali trabalho e uma paixão genuína por esta coisa pequena, minúscula, chamada rock.

- Eu achava que você achava que rock era coisa do demônio ou da Revolução Gramsciana - disse, rindo. Ele riu de volta:
- E é. Exceto Bob Dylan.

Era uma piada interna nossa.

O lugar estava vazio e pressenti que seríamos expulsos a qualquer momento. A conversa estava boa e seria um desperdício termos de ir embora. Por outro lado, não queria convidar Olavo de Carvalho para um jantar. E se, alta madrugada, ele começasse a falar sobre teorias conspiratórias? Preferia, sinceramente, manter aquela imagem insuportavelmente jovial do filósofo. Resolvi, portanto, que não daria a ele chance de me decepcionar.

- Acho que seremos expulsos.
- É. Acho que é melhor irmos embora.
- Poxa, foi mesmo um prazer te encontrar aqui - eu disse. - Jamais pensei que pudesse ser agradável conversar com você sobre rock. Assunto que, aliás, eu não domino.
- Mas quem disser que domina não só está mentindo como é um chato - sentenciou, se levantando.
- Será que eles voltam? - perguntei.
- Os comunistas?! - alarmou-se.
- Não! Los Hermanos. Faltou ingresso para as duas noites de show...
- Espero que sim. A gente pode combinar de assistir junto - propôs.
- Quem sabe?...

No caminho até a rua ele mencionou um texto meu, no qual eu descrevi a viagem que fiz com Rodrigo Amarante, um dos integrantes da banda. No tal texto, eu dizia que o Los Hermanos eram pretensiosos, mas o bom era que conseguiam corresponder à própria pretensão. Também escrevi sobre o comportamento um tanto quanto afetado do músico durante o vôo. Olavo de Carvalho me perguntou se eu tinha mudado de idéia sobre eles?

- Mais ou menos - respondi. - Hoje eu acho o tal do Rodrigo mais simpático. Mas ainda acho que o Los Hermanos é um grupo pretensioso. Ninguém entende que isso é um elogio! Eles são pretensiosos, sim, mas conseguem corresponder às expectativas.
- E você ainda continua achando o Ventura parecido com O Bloco?
- Não. É muito melhor. Não consigo parar de escutar.
- Melhor que Cole Porter?
- Ah, Olavo! Pára com isso! - brinquei, dando um tapinha nas costas dele. O filósofo estava tirando uma com a minha cara.

Já estávamos na rua. Uns poucos ambulantes vendiam cerveja, churrasquinho de gato, cachorro-quente, camisetas de bandas de rock e até discos piratas. Olavo de Carvalho foi até um deles e pediu uma cerveja. Depois, desviando dos grupinhos de adolescentes que esperavam ainda o transporte, comprou um churrasquinho de gato. Deu uma primeira mordida e ficou com a boca cheia de farofa e com um naco de carne entre os dentes. Eu desviei o olhar. Ele riu e eu perguntei por que estava rindo:

- Eu estava me lembrando de uma coisa.
- Diz, pô.
- É que eu fiquei o show inteiro reparando na cara dos garotos.
- Os da banda?
- Não. Os da platéia.
- E...
- E era legal - Juro: Olavo de Carvalho disse "legal".
- Desenvolva - ordenei.
- Sabe aqueles garotos já mais velhos, que tiveram ou tem ainda bandinhas de garagem, que um dia sonharam em ser astros? Pois então. Eles sempre tiveram desculpas na ponta da língua para o fracasso. As preferidas eram "a força das gravadoras" e "a burrice do público".
- Sim...
- E o Los Hermanos estão provando que isso era balela mesmo. Os caras fazem uma música realmente boa, bem cuidada e ainda peitaram a gravadora. Por isso, é legal ver a cara dos garotos mais velhos durante o show. Eles faziam uma cara de decepção. Estavam era decepcionados consigo mesmos. Porque perceberam que ou não tinham talento ou não tentaram com vontade. A maior prova de que estes meninos do Los Hermanos são bons é o reconhecimento destes garotos, sempre cheios de ressentimento com o sucesso alheio.

Despedimo-nos, combinando um encontro futuro. No caminho para casa, fiquei imaginando um jovem que tivesse o talento de Mozart hoje em dia. Não que os integrantes do Los Hermanos sejam Mozarts em potencial. Longe disso. Mas eu fiquei me perguntando: será que o Mozartezinho de piercing no mamilo preferiria o sucesso restrito das salas de concerto para aristocratas falidos ou o sucesso cheio de hormônios do rock? Quis me pôr no lugar de um músico talentosíssimo diante desta dúvida.

Mas daí eu desafinei e dormi.

* Olavo de Carvalho, auto-intitulado filósofo, hoje está esquecido, mas foi figura de razoável influência intelectual no Brasil do início do século 21. Considerado a voz na direita, travou batalhas retóricas com a esquerda que, naquela época, dominava os círculos intelectualizados. Quando Luiz Inácio Lula da Silva (2002-2010) assumiu o poder, O. de C. recrudesceu seu discurso e, por isso, foi chamado de paranóico. Defendeu até o fim a ligação da esquerda com o tráfico de drogas. Escreveu livros sobre filosofia, comportamento, esoterismo e alguns títulos infantis. Durante alguns anos, teve uma coluna no prestigiado jornal O Globo. Aliciou jovens até então sem destino para a sua causa e, por isso, foi chamado de guru da nova direita.

Nota do Editor
Paulo Polzonoff Jr. assina hoje o blog O Polzonoff, onde este texto foi originalmente publicado. (Reprodução gentilmente autorizada pelo autor.)

Paulo Polzonoff Jr
Rio de Janeiro, 15/8/2003

 

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