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Sexta-feira, 27/6/2003
A Oposição Adestrada
Daniel Aurelio

Em 1999, o filme American Beauty (Beleza Americana), do laureado diretor de videoclipes Sam Mendes, transformou-se num libelo contra o chamado american way life, pejorativo sinônimo de liberdade (vigiada) e democracia (duvidosa) norte-americana, tomadas à fórceps como o modelo mais adequado de comportamento social possível (e se você não gostou do que vaticinei agora, vá ler o Norberto Bobbio. Depois conversamos). Até aqueles eternamente bufões críticos de arte maiúscula curvaram-se, no mínimo, diante da ótima atuação do irretocável Kevin Spacey.

Estranheza maior, no entanto, causou o resultado: uma multidão de entusiasmados espectadores, exatamente os mesmos ironicamente fotografados pela lente do diretor, e 5 Oscars reluzindo na estante da Universal Pictures.

Mas como poderia um longa-metragem descontínuo, sem aquelas definições cristalinas entre mocinho e vilão, um soco no estômago de pilares como as forças armadas e a família triunfar no sustentáculo maior da industria norte-americana, auto-júbilo sedutor de sua cultura? Não fora o mesmo cinema responsável por propagar nas artérias do ocidente as delícias de ser um estadunidense?

Continuo seguro de que a trama é excelente, tecnicamente criativa, com roteiro bacana e interpretações acima da média - exatamente a mesma imagem que me provocou à época. Cabe-nos, entretanto, avaliar em que medida a crítica subjacente à obra, alavanca e sua razão de ser, realmente resultou numa atitude mais reflexiva do cidadão atingido em cheio por estes valores retorcidos.

Se considerarmos apenas seus frutos factuais, nem uma módica pilastra oxidada fora removida desde então. Pior: sob suspeita de fraude, um ano depois, o trapalhão e plutocrata George W. Bush substituiu o debochado e diplomático Bill Clinton na presidência dos EUA, e aquilo que já seria um elementar anseio conservador (leve guinada à direita religiosa) tornou-se uma dramática encruzilhada: em seis meses de indefinição, abalou-se a legitimidade do espírito livre da nação e descobrimos, via satélite, o estilo obsoleto que imperava em seu pleito eleitoral. Mais: acordos internacionais algo flexíveis retrocederam ou foram rasgados, o ódio aos EUA reverberou no Oriente, atentados e guerras pipocaram cá e lá e a polícia do mundo estava de volta, agressiva como nunca e com a cega aquiescência popular, que preferiu consentir e digerir os quitutes requentados da receita clássica de Hollywood, o reino encantado da testosterona e do choro fácil. Entre comédias românticas redentoras estreladas por Meg Ryan à ação ultra-visual e descerebrada, peça pelo número.

American Beauty, em que pese sua singularidade, foi embalada e comercializada no varejo, misturada a toda sorte de maquinações massificadas: a arte produtora de encantamento e distração pode até tocar o coração de muitos, todavia a quem mudará as convicções? A inscrição "subversivo" no selinho da capa, por sinal, passou a ser um adjetivo cada vez mais aceito e consumido, da mamãe ao filhão, da titia ao vovô. É o princípio ativo da industria cultural.

Caráter transgressor ou não, a manifestação artística é inescapavelmente refém da realidade e seu refúgio mais covarde. Mesmo estilos socialmente violentos e contundentes, como o punk, desde o ventre estavam fadados ao fim que miseravelmente tiveram: as gôndolas dos magazines abarrotadas de seus discos e sua moda (?) barganhada nos pontos mais chiques de Nova York, Londres, Paris e a Oscar Freire aqui em São Paulo. A anti-estética absorvida: é a piada sendo retrucada na mesma moeda.

Aconteceu com The Simpsons, cuja crudele aciditia agrada tanto quanto o seu contraponto maior, o bom-mocismo descarado de The Jetsons. Triste sina esta a dos "não-virtuosos". Astros cintilantes, primeiros-ministros britânicos, senadores, presidentes, todo mundo quer ser sacaneado por Homer, Bart e Cia. A gente ri e fica nisso, prisioneiros de meta-linguagem inócua. É bom variar o cardápio às vezes.

Michael Moore, o caminhoneiro-gorduchinho vingador, autor de White Stupid Man e a bola da vez da mídia, teve o tal destino. Não assisti a Bowling for Columbine, mas sua estatueta dourada de Melhor Documentário de 2003 é paradigmática. Contanto que a economia daqueles que combate esteja bem aquecida, ele pode vociferar à vontade contra o poder. O microfone é todo seu, Michael.

Se nenhuma autoridade contestou os dados contidos no livro não foi por serem irrefutáveis, mas porque não machucaram dado o contexto ao qual foram realizadas as acusações. É o mal se lixando para isso.

Que o capitalismo é um equívoco histórico (como foram também o totalitarismo de esquerda e direita) isso ninguém, nem o mais aplicado e engomado aluno de MBA do planeta, discute. Aliás, eis a natureza da "mão invisível": você colhe o que semeia, aproveita o vacilo e rapina o que os outros semearam também e manda às favas qualquer fragmento extraviado de compaixão cristã ou bolchevique. Moore não é Chomsky, foi abocanhado também e deixará vagando em círculos o acanhado exército que angariou. Breve sofrerão fadiga e pedirão armistício.E o polemista, que não é bobo, logo logo tomará uns drinks com Donald Trump em Vegas ou na Mansão de Playboy. O capital, via de regra, se alimenta da letargia alheia.

E sobra para nós, enquanto tentamos escapulir da dor, aquela torturante questão das noites de sexta-feira: Michael Moore ou John Grisham? Simpsons ou Flinstones? Beleza Americana ou Homem-Aranha? Ramones ou Mariah Carey?

Menu de opções no máximo. Ação política, nem pensar. E não vai haver Robin Hood que nos livre disso.

Brasil Arcaico Na Veia

Ótima nova: o relançamento, pela épica José Olympio, do livro O Tronco, de Bernardo Élis, ícone do romance regionalista do Centro Oeste, espécie de José Lins do Rego do cerrado.

Élis é daquela turma seletíssima de autores que dominam o difícil processo de diálogo entre linguagem regional e erudição estética, o que torna a sua obra constantemente leitura obrigatória para vestibulandos brasileiros. Dispensável divagar sobre a natureza miúda da política e das relações sociais da região, o coronelismo aceso, as crendices. O painel clássico das capitanias hereditárias é a fonte na qual o autor bebe com satisfação.

Ao relê-lo, fiquei imaginando o que a TV Globo não faria com as construções psicológicas das personagens, numa dessas minisséries tapa buraco. Seguindo à risca a formatação tradicional de seus roteiros, escavaria de dez a quinze calientes romances, acentuaria o alheamento de uns, o caráter jeca-jocoso de outros e o maniqueísmo de todos. Reynaldo Gianechini seria o escrivão Vicente e sua prendada mulher, claro, Giovana Antonelli. Os Melos (qualquer alusão ao clã homônimo que conhecemos bem é mera coincidência) seriam interpretados respectivamente por Raul Cortez (Coronel Pedro), Gabriel Braga Nunes (Artur) e...Apaga, melhor não dar milho ao bode.

O livro, publicado em 1956, fala por si. É virulência normativa da estirpe de Cidade de Deus (concepção Paulo Lins) e Graciliano Ramos, com um irresistível sabor de carne seca da braba com cachaça de alambique.

Faltou um Lego No Meu Logos

Cognitivo: faltou conectá-lo quando me meti a escrever por ai.

Para ir além




Daniel Aurelio
São Paulo, 27/6/2003

 

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