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Sexta-feira, 18/7/2003
Os Axiomas Populares de Thom Yorke
Daniel Aurelio

O Radiohead acaba de lançar mais um álbum. Você já leu aqui no Digestivo ou em qualquer caderno cultural que se digne. A imprensa "especializada" tratou-o com ganas de Copa do Mundo, com direito a capa, "entrevista exclusiva e comentários faixa-por-faixa". Da Inglaterra ao Japão, da Austrália ao Brasil, o mesmo entusiasmo detectado. Idêntico alvoroço só foi visto nos bons tempos de uma certa cantora e performer nascida na pequenina Pontiac, em Detroit: Madonna Louise Ciccone.

Madonna era um furacão performático ("era" porque atualmente utiliza-se de tática marqueteira dessemelhante à do passado: mais espiritualizada, menos espirituosa), uma inesgotável fábrica de sucessos e turnês disputadíssimas, apimentadas por um comportamento pouco ortodoxo de camaleoa visual, responsável inconteste pelas revoluções no jeito de se portar da adolescente dos anos oitenta (a bem sucedida balzaquiana do séc. XXI). Quanto a nós, pirralhos embasbacados, restava o fascínio de seu dilacerante sex appeal - um tanto ambíguo, por isso atiçador.

Já o músico inglês Thom Yorke é um homem feio e retraído, quase a cortejar o solipsismo. É o líder do conjunto de rock supracitado, que surgira na metade dos anos 90 proclamando, na ressaca pós-Kurt Cobain, que eles não passavam de uns pulhas, inúteis e horrorosos. "Creep", em verso, era o avesso da fúria nietzschiana e libertária de Madonna: um tributo à fragilidade sufocada do jovem varão, uma trova elétrica pela musa inatingível. Em rápido comparativo, enquanto o "alto-astral" da material girl gerou quantias milionárias, a morbidez do capitão Thom tangenciou a linha do "alternativo" e do "comercial", quando muito. Uma jactava-se no signo da dança, esse milenar chamado da natureza ao banquete de corpos; o outro emite um canto afônico e engasgado pelas ondas da invenção, sempre a explorar o auto-asilo; em ambos os casos, busca-se a perfeição, respectivamente estética e musical, do pop, corruptela de popular que hoje é sinônimo de cultura referencial e bricolagem dos cacos urbanos. Um aceno irresistível para a jovialidade, a quem atribui-se o consumo desta linguagem.

Thom Yorke não é Madonna. Não rende boas fotos para tablóides e seus companheiros de banda levam uma vida provinciana e pacata. Gozam fama no Reino Unido, mas inferior a das estrelas cadentes do Oasis. No Brasil, ficaram conhecidos exclusivamente por serem os autores de "Fake Plastic Trees", trilha sonora daquele belo e antológico reclame sobre Síndrome de Down (segundo o próprio Yorke, a sua canção mais otimista). Porém nada que possa competir com o furor causado por um, digamos, Foo Fghters, notório potencial mercadológico de flagras, matérias "polêmicas" e clipes ostensivos. A que, portanto, se deve a balbúrdia criada em torno de "Hail To The Thief" , novo trabalho do grupo?

Não se trata apenas de uma excentricidade da parcela minoritária e segmentada de seus entusiastas, cujo habitat são as redações jornalísticas e talvez os palcos, porque celebrar o próprio tutano é fato corriqueiro de quem se intitula "antenado e eclético" (binômio mais mal utilizado, desconheço) e o espaço existe na Internet, nos zines e em cafés das vilas e bairros que "respiram" cultura. O Radiohead, alimentado claro pelo rótulo messiânico que lhe foi impregnado, ultrapassou a fronteira do culto de sua confraria e virou tradução (livre) de arte vanguardista em terreno efêmero. São como Neil Young ou Chico Buarque. Muitos sequer os ouviram; todos os reverenciam num eterno voto de confiança coletiva.

A questão é que o simples estigma de "inteligente" (faço aspas e coro com o Julio Daio Borges neste ponto), que agrada àquela turma "muito metida a muito louca", não serve como parâmetro convencionado de definição. Yorke almeja, e isso é observável na audição dos discos, a excelência da canção pop de popular, e sua química que vai do rock ao eletrônico, do piano e voz a guitarras incandescentes, tem por objetivo a expressão última da existência proletária, com seu corpo biológico furtado e anseios bêbados da madrugada. Se é de uma musicalidade pouco familiar aos que lhe servem como tema em geral , sempre acabará, em específico, atingindo em cheio o coração leigo com uma "Fake Plastic Trees", "No Surprises" ou "Karma Police". Assim como é recorrente na obra de Young e Chico. É este o axioma do grande artista.

O Radiohead muda e surpreende não para o deleite dos conhecedores da matéria; seu objetivo é comunicar-se, em variadas facetas, com o mais renegado dos "creeps": aquele que só poderá adquirir (por razões financeiras ou excrementos tomados por emblema) uma coletânea, pois seus integrantes estão afetivamente mais próximos do cidadão feito de "massa de manobra" de políticos e publicitários que dos exageros da mídia, tanto quanto as coreografias de Madonna eram um convite ao possível para suas "amigas" tímidas, desajeitadas, pobres e esmagadas por conceitos esquálidos de beleza. Ambos jamais conseguirão mover-se fora da célula limítrofe ao qual estamos socialmente condicionados, no entanto o que nos transformará de fato em outsiders onipotentes?

Gosto de Radiohead até "Ok, Computer" (1997). Outros, da fase inaugurada em "Kid A" (2000). Somos os "creeps", os alvejados emocionais e imprecisos. Toda criação dos músicos, da potência sonora ao conceito do disco, converge para a síntese da canção que colará no córtex cerebral, despertando sentimentos sortidos para cada ouvinte. Repare que só os experts caem na armadilha e bajulam o conjunto da obra como totalitária iguaria, ainda que "Ok, Computer" seja, de fato, um álbum conceitual, o que já tornou-se algo meio "The Wall", um domínio público. E lá vão os lúcios ribeiros de plantão a despejar seus adjetivos, certos de que acharam um Ovo de Colombo temporão.

(Aqui o espaço é reservado para risos de escárnio.)

Enfurnado em algum decrépito pub suburbano, o "gênio atormentado" Thom Yorke deve estar a cantar alguma melodia pegajosa, d'algum de seus heróis pagãos (onde caberão as hipérboles sabidas aqui?). E parafraseando o bom poeta maranhense, eu só posso concluir que toda forma de sonho é popular, abençoadamente popular.

Para ir além



Quando Éramos Mais Crianças

Que seria da imagem poética se não fosse sensorial? Asfixiado, o cidadão com direito a voto e CPF perdeu a cândida capacidade de pensar absurdos. Estamos tão digitalizados que a função orgânica tornou-se mero apoio logístico de alvenaria. E o que ressonamos em forma de arte é ranço puro, quando não ode ao raio-laser. Estímulos aos códigos mais íntimos de nossa atividade cerebral como lúdicas associações aos elementos cromáticos, cheiros e sons que se insinuam em palavra perderam a razão; escritores em cada esquina virtual e "verdades" derramadas impuseram a derrota do estado de infância do homem, última de suas instâncias inventivas e filosóficas. O que sobrou-nos dos escombros da modernidade global são digressões sobre o certo e o errado, pitacos e assertivas, takes de matéria dura e reciclável. Em voga, agora, os paliativos, não as vigas da transformação de outro possível. Não há mais o que se desnudar quando todos os flancos estão expostos: quer coisa mais suicida que tomar a contramão da tendência?

Um italiano de Piza chamado Antonio Tabuchi arriscou-se ao jogar a bússola fora e esquivar da rota, infligindo-nos um pito merecido em formato retangular de livro. "Os voláteis do beato angélico", o mais recente título deste escritor, tradutor e professor de língua portuguesa é a anti-literatura deste piscar de olhos da humanidade; coletânea de pequenos textos, muitos deles sabiamente incompletos, a se fundir no mesmo conceito e no mesmo mote que dá início ao artigo. É um tributo sincrético ao delírio e a fantasia de se permitir.

Queres paisagem mais cálida e doce que a materialização da pintura descrita no conto que batiza a obra? O quadro e o cenário, delirantes, moldam o universo infinito do subjetivo que absorve o real do velho religioso em suas perturbações intelectivas, cujas criaturas ganham o mundo palpável e se deixam tocar antes de imortalizadas em traço e tinta, numa ritualística contemplação mútua entre o beato e aquelas indecifráveis figuras.

Triste que o ser humano tenha renegado a própria capacidade de reinventar o painel de seu espaço íntimo e coletivo. Não é o diferente que gela a espinha de excitação?

Agora aos que por paixão escrevem: Tabuchi, de peito aberto ao velho-novo, surpreende-se com as sensações que provocara num leitor quando o encontrou em pessoa e texto, e posteriormente capturou-o através do léxico. Mostra que menos um exercício de vaidade, a literatura é simplesmente aquilo que toca quem lê. Assim como ao forjar um desenho, algo de imponderável acometeu o nobilíssimo asceta.

"Os Voláteis..." é um livrinho de fôlego rápido, magistralmente calculado, coisa de quem conhece muito sobre as delícias da criação. Em alguma epístola, diálogo ou crônica dessas você acabará se questionando onde foi parar a própria infância. E esta pergunta sufocada no silêncio da noite será o prenuncio da sua volta ao momento em que tudo era mais colorido, instigante e muito menos maçante. Sim, o final desta crítica é feliz, e daí? Tem sabor de papinha de bebê.

Que seria do senso sem a poesia do descobrir?

Para ir além




Daniel Aurelio
São Paulo, 18/7/2003

 

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