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Quinta-feira, 24/7/2003
Nada é capaz de envelhecer Renato Aragão
Lucas Rodrigues Pires

Antes de seguir adiante, devo confessar que sou fã dos Trapalhões e do Renato Aragão. Consigo até hoje rir e me emocionar com as histórias banais retratadas em seus filmes, tanto os antigos como os novos.

Fui ver Didi, o Cupido Trapalhão. Interessante notar que o cinema de Renato Aragão se modificou muito depois do fim do grupo, no início dos anos 90. Mas foi uma mudança, por incrível que pareça, sem cara de mudança (tal qual o governo Lula). Antes era um cinema mais alegre, com histórias e roteiros mais bem-elaborados, situações cômicas dignas de um quarteto que estrelava um programa semanal na televisão e conseguia fazer qualquer um rir. Depois da perda de Zacarias e Mussum, e com Dedé se convertendo aos evangélicos, Renato Aragão se viu só em sua empreitada, tal qual Dartagnan sem os três mosqueteiros. Com isso, e como uma espécie de luto, ele ficou sem filmar, só voltando em 1997 com O Noviço Rebelde. Depois fez Simão, o Fantasma Trapalhão, O Trapalhão e a Luz Azul, Um Anjo Trapalhão (um especial para a televisão que acabou indo para os cinemas depois) e, finalmente, o recente Didi, o Cupido Trapalhão.

A situação ficou assim para ele: como fazer um filme de 90 minutos sem o apelo d'Os Trapalhões, que vinham do sucesso na televisão e no cinema por muito tempo? Como fazer um filme de sucesso se o que as pessoas esperavam era o que não mais podia haver - o grupo unido?

Com o fim do grupo, Renato Aragão perdeu seu ponto de apoio no que tange ao humor. Assim como Oscarito nas chanchadas tinha a Grande Otelo, foi esse contraponto imediato para suas trapalhadas que Renato Aragão perdeu. E como quase toda comédia está apoiada em uma figura carismática, requer a presença de um segundo para se criar o efeito cômico desejado (Renato Aragão sempre dizia que era um comediante circense, precisava de um ou mais companheiros que preparassem as piadas que ele faria). Quando o grupo filmava, tanto em cinema quanto em TV, cada um dos Trapalhões tinha definido seu papel: Didi era o palhaço trapalhão; Dedé era o estrategista, o cérebro do grupo; Mussum representava a malandragem carioca dos morros e Zacarias era o ingênuo, a criança frágil a ser protegida.

Ficou o dilema de como continuar sua carreira construída ao lado dos amigos: deveria seguir com seu estilo já sedimentado mesmo sem os colegas ou tentar o novo, mudar sua forma de humor pensando em algo diferente do que fazia junto aos demais?

Pois bem, esse dilema fez com que Renato Aragão mudasse o foco de seus filmes e os transformasse em clones de seu programa na Rede Globo - basicamente o Turma do Didi. Mas tal mudança ocorreu sem comprometer a fórmula vencedora de outrora. Sem substitutos para contracenar o humor com ele, o que se viu então foi uma readaptação do formato, com algumas características marcantes:

* a presença maciça de celebridades do momento, geralmente atores, cantores e personalidades - agentes da indústria cultural - que povoam a televisão aos domingos e alimentam as revistas de fofoca, como atores da trama;

* humor concentrado na figura de Renato Aragão, com piadas e situações já bastante difundidas e conhecidas; humor escrachado, tendendo ao pastelão e a caretas, diferentemente do humor refinado de um Woody Allen ou Jorge Furtado;

* uma certa perda da inocência, com o apelo aos corpos seminus desfilando nas telas (muito acentuado em Didi, O Cupido Trapalhão);

* a eterna mensagem de solidariedade e de amor que faz chorar, e o final feliz ilustrado por uma canção também de cunho moral; narrativa fragmentada, muito em razão das inserções musicais, e linguagem própria da televisão;

* manutenção da paródia a textos e outros filmes, tal qual A Noviça Rebelde, Romeu e Julieta e os famosos filmes de anjos da década de 40 e 50.

Como muitos já perceberam, muito do que listei acima já existia nos filmes do quarteto. Esse é o lado que permaneceu. O que mudou foi a necessidade de suprir as ausências d'Os Trapalhões, talvez insuficiente apenas com a presença-solo de Renato Aragão. E isso não seria fácil, mesmo sendo ele o mais popular e querido do grupo.

Lembremos que o momento em que ele volta a filmar é totalmente adverso ao que estava acostumado nas décadas de 70 e 80. A Embrafilme tinha sido fechada, o cinema brasileiro havia sido transformado em pó, com 0% de ocupação do mercado, e a atividade cinematográfica começava a engatinhar novamente com as leis de incentivo à cultura. O número de salas era muito menor e a força do cinema americano triplicara, além de ter moldado mais ainda o gosto do público. Soma-se a isso o aumento do preço do ingresso, a elitização das salas - centradas em shoppings - e o praticamente extermínio das salas populares da periferia - seu maior público.

Eis o quadro: sem coadjuvantes especializados e populares da área que pudessem "carregar" um filme a seu lado (há tempos não temos comediantes de verdade no Brasil) e a televisão ocupando o vácuo deixado pela retração da atividade cinematográfica e do mercado de salas, Renato Aragão apostou em sua própria figura circundada por elementos do imaginário popular televisivo. Resultado: intensificou a participação de estrelas da televisão e personalidades populares do momento (com a estabilidade econômica, as camadas C e D tiveram acesso à televisão, popularizando demais seus agentes), unindo-os a atores de verdade. Junto a ele, em si só uma grife fortíssima, conseguiriam segurar a onda do mercado, cada vez mais exigente no que se refere a presença de público.

O contexto do cinema no Brasil mudou dos anos 80 pra cá. Renato Aragão, esperto que é, soube enxergar isso e também se reciclar para se adaptar às mudanças. Só não sei se foi para melhor. Quem quiser pode conferir Didi, o Cupido Trapalhão e tirar suas próprias conclusões. Fui conferir e dei várias gargalhadas.

Lucas Rodrigues Pires
São Paulo, 24/7/2003

 

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