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Quarta-feira, 6/8/2003
Palmeiras Selvagens e os Sabichões
Alessandro Silva

monstro

Palmeiras Selvagens

Há algo de extremamente desproporcional entre o sacrifício do artista em função de seu público. É o que pode nos sugerir a leitura de "Palmeiras Selvagens", lançado recentemente em edição de luxo pela Cosac & Naif, cujo autor é aquele cidadão americano aparentemente trivial de bigodes e cintura alta.

Estamos envolvidos no torvelinho; juntamente com seus personagens, estamos chocados com nossa primeira exposição de arte ao vivo ou dentro de um bote girando intempestivamente sem rumo depois de uma enchente sobre as águas ferozes do Mississippi.

A intensidade dessas cenas está inversamente proporcional à nossa comodidade de mundo moderno e conformadamente capitalista.

Circula entre nós uma vaga noção acerca das correspondências sociais de uma obra. Por mais que tentemos reduzir o número de leitores, somos sempre levados a pensar em grandes cifras quando se trata de clássicos. Naturalmente imaginamos que obras como "Palmeiras Selvagens", devido a seu status , receba grande atenção de um suposto público de perfil incerto.

Mas na prática não é assim que sucede. A vendagem de livros, assim como o acesso às páginas da Internet, não reflete sua assimilação.

Com efeito, quando se trata de pensarmos o publico "ativo" para a literatura, as nossas estatísticas não ficam de pé. Exatamente porque alguém já deve ter-se dito pelo menos uma vez que "possuir um livro é uma maneira de não lê-lo".

Logo entendemos porque William Faulkner ( o "u" não era originalmente parte de seu nome, tendo sido acrescentado posteriormente pelo escritor, mais ou menos ao 27, depois da leitura do poema Prelude a sest d'um faune do poeta francês decadentista Stephanne Mallarmè ), ao contrário do autor de "Werther" não gera suicídio em massa.

Porque isso é o que nos ocorre após uma intensa e verdadeira leitura de "Palmeiras Selvagens": o espectro da morte.

Nós terminamos por nos indagar: pode-se sofrer tanto?

Faulkner não provoca suicídio em massa exatamente porque a literatura não tem público ativo.

A Arte de Ler

A amargura. É o que resulta de uma procura dentro de um público mediano para conversar a respeito de literatura. Isso é uma pena, exatamente porque ler é uma das aventuras mais prazerosas.

Não se trata de um ponto de vista moral; de justificarmos a leitura. A coisa é boa em-si. E tão interessante ou mais quanto um arriscado salto de pára-quedas.

Mas... a presunção!

Há na verdade um rol de argumentos inconscientes para se intentar contra a arte escrita.

Os mais ousados são os que vêm as humanidades como perda de tempo. Dentro desse grupo encontra-se o sabichão acostumado a pensar com números. Ele é tão sabichão que não pode enxergar que o seu mundo, igualmente ao da ficção, é um mundo ideal; indo além, religioso ( não creio ser necessário mencionar as origens pitagóricas da matemática ). Que portanto aquilo que crê ser exemplo de força intelectual para explicar os fenômenos da natureza é uma ficção apenas menos intencional que aquela que produz a literatura.

Não é necessário estudar geometria não-euclidiana ou perceber, mui comicamente, o modo de Karl Popper tentar explicar as necessidades da Lógica Indutiva através de uma perspectiva metafísica; ou, ainda, deparar-se com os princípios puramente tautológicos das ciências exatas.

Curiosamente a maior explicação do absurdo das ciências diante da natureza é dada pela literatura. Basta um passeio por "Molloy" do Samuel Beckett. A contestação cartesiana no terreno de Descartes. O resto é silêncio.

Com uma leitura madura de Beckett em verdade é-se conduzido a pensar o seguinte: qualquer base positivista de comportamento tende, em última instância, a induzir-nos ao conformismo.

E sabe-se o quão há de conformado numa sociedade que "equaciona" seus problemas. E na verdade, aquilo que era elogiado por ser de natureza essencialmente crítica, o pensamento matemático, acaba por tornar-se algo mais caseiro do que receita de bolo nas mãos de sujeitos de índole científica. Basta observar como são ensinadas as teorias de Newton na escola para imediatamente perder-se o interesse.

O sabichão, sujeito de grande inteligência matemática, expert em informática, é o mais conformista.

Ele poderia enxergar-se "No Caminho de Swan" de Proust, ou ver-se açoitado por vaidade no inferno de Dante, mas sua presunção o impede. É patético observar o narrador de "Busca" lamentando as maneiras arrogantes do marquês de Saint-Loup, um sujeito "afetado" por sua inteligência e mais uma vítima fácil contada entre aquelas que foram seduzidas pelo "super-homem" de Nietzsche.

O Sabichão

O Sabichão é um tipo corriqueiro. É anormal se não toparmos com alguns deles durante nossa breve passagem pelo ponto azul de oxigênio.

Eu topei com dois, dias desses.

O primeiro era estudante de odontologia pela USP com noções de medicina e o segundo estudante de publicidade com noções de como enrolar um baseado - cada qual com sua especificidade para dizer com Beckett.

Os pecados ocorreram na escala inversa à sua importância social ( quanto menos útil socialmente um indivíduo maior sua arrogância ).

O estudante de medicina pecou por subestimar a inteligência de seu povo tentando vender gato por lebre - pela sua palestra tentou empurrar sobre seus espectadores uma coleção sem vergonha de livros de saúde a preço de ouro ( algo como um salário mínimo ).

E ao iniciar seu discurso havia citado aqueles que a seu ver são os três pilares da vida: saúde, religião e cultura.

Quanto à sua cultura, pobre dela, viu-se taxada a um salário mínimo.

E Tolstoi lhe mostraria, linha sob linha, do que se trata um povo. E se tivesse suficiente feedback poderia o jovem estudante de medicina enxergar-se na situação de um sovina estúpido.

Mas jovens estudantes de medicina não lêem Tolstoi. Sua base de fé para existir está dentro de uma visão prática e encabrestada pela sua presunção. Aqui a sua inteligência obsta a sua amplitude mental.

Quanto ao estudante de publicidade, trata-se de um rapazola mal criado sem curiosidade sequer para buscar entender como funciona a válvula de sua descarga.

Foi depois de uma palestra de montanha russa ( dessas à Mestre Pangloss, cuja filosofia nos ensina que o mundo é o melhor dos possíveis ) que, depois de cumprirmos formalidades, enveredamos para o assunto da publicidade. Ele me classificou em não sei qual ordem dos protozoários que "não entendem de publicidade".

Ele tem tal discernimento que sequer consegue perceber para quem trabalha. Desconhece por exemplo que ser publicitário requer antes de tudo que se aceite o sistema capitalista. Desconhece igualmente a filosofia marxista, ou mesmo a propaganda com fins políticos. Em suma, é um jacu gabola cujas barras das calças tem um palmo de dobras, a bolsa é um aparato de exibicionismo e a barbicha algo tão irrespondível quanto a babaquice.

Ele poderia ler "Babbitt" para se enxergar, mas não se pede para formigas ouvirem as cigarras.

Matemática

No mais, a literatura segue tal a geografia de Marte. Inexplorada, insuspeita, mas grande e misteriosa. Para o sujeito que só enxerga com números temos essa: a economia de linguagem de "Ulisses", do James Joyce, está provada - matematicamente.

Alessandro Silva
São Paulo, 6/8/2003

 

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