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Sexta-feira, 8/8/2003
E Essa Violência Que Enternece?
Daniel Aurelio

De segunda a sábado, do instante em que "Repórter Cidadão" da Rede TV entra no ar, até o desfecho caótico-pastelão do "Programa do Ratinho" no SBT, somos surpreendidos pela síndrome da indignação controlada. Impossível resistir à tentação de soltar alguma pérola furibunda do sofá - e concordar plenamente com as opiniões cabotinas urradas pelos apresentadores (a fórmula é xerocada, portanto prefiro referir-me no genérico). Dentro da anomalia lógica dos "populares da telinha", o que mostram é nada menos que a "realidade como ela é", "sem mascaras", a ecoar, em suas barbaridades apocalípticas, o timbre sufocado da voz do povo. E, bem sabe o velho matuto, vox populi, vox dei.

O que os legitima é o próprio pânico que provocam via satélite. E nada além disso. A espécie humana tem um óbvio pavor da marginalidade, sobretudo da probabilidade de morte precoce que carregam. Não se sentir ilhado em suas neuroses civilizatórias é consolador pacas.

O âncora, quanto maior cólera expurgar em sua intervenção, age feito deus arrojado e destemido. Hábil e comunicativo, de expressões teatrais e permeado por um clima dramático, oferece conforto amórfico ao telespectador que vê em sua esfinge o heróico "fiscal da sociedade", de terno bem cortado e que faz valer a "verdade que eles insistem em ocultar". Resta saber quem "eles" são. De todo modo, é um delegado socialmente aceito e linha de frente do combate ao vírus da maldade.

Não duvido que esse refúgio de falácias seja um sentimento genuíno do popular. É um bocado leviano afirmar categoricamente que são meramente suscetíveis ao insuflo de um timoneiro, quais as pasmaceiras teóricas do "psicólogo das massas" Le Bon. É evidente que não vou fechar os olhos para a história e seus líderes populistas, de Antonio Conselheiro a Vargas. Porém, todos tiveram por mérito tornar em reação unívoca um rebuliço subjetivo que atacava, via mazela sócio-econômica em geral, o cidadão à flor da pele. Benito Mussolini, em frase lapidar, considerava que era mais fácil convencer as massas do que uma só pessoa. Resume.

O estopim há de ser aceso por um homem, uma confraria ou instituição e é natural que seja; porém estamos a comentar sobre o tabu da morte, do reconhecer-se matéria frágil e finita. Não foi por outra razão que se deu a "invenção" da filosofia, das religiões e da ciência. Exatamente as formas elementares do pensamento.

O anseio do indivíduo é superar o próprio fenecer. Quase que por instinto percebeu que a vida coletiva, minimamente organizada, lhe traria maior segurança. É a utopia da felicidade. Quem não quer encerrar o mal-estar que lhe pressiona? E essa marginalidade demonizada é desconfortável porque nos concede a certeza imediata de nossa vulnerabilidade. Isso não parece bom.

Portanto, a maestria desse jeito de se fazer televisão é extirpar o leão interiorizado do indivíduo e sugá-lo até o último dígito do ibope. Seus diretores, hipótese mui provável, não leram direito romano, embora se fiem na certeza de que a violência e a contravenção sejam inerentes à existência social. Nada os distingue, por exemplo, de uma consultoria de recolocação profissional. Confiam o sucesso de seus empreendimentos no naufrágio atemporal da política monetária. Sua fonte de renda é a ausência da fonte de renda alheia.

E é por isso que a violência consumada, lavada em sangue borbulhante, não me comove. Nem sob luzes baixas e soturnas dialogando com um vulcânico Beethoven de trilha sonora. É a secreção pulsante e asquerosa dos alertas, o hostil sugerido em vertigem factual. Quem já foi vítima de assalto sabe o que é a "realidade de fato", tanto que não raro entregam a vida ao divã de psicólogos e comprimidos psiquiátricos, receituário dos profissionais de cátedra e devoção. São inúmeras as nuances da relação criminoso e trabalhador - algo como o predador e a presa - impostos pela hierarquia pelo terror. De qualquer maneira, o poder judiciário instituiu-se e instruiu-se pela premissa hobbesiana: o ser humano é capaz de executar maldades quando estimulado. O mal, impossível de ser erradicado, indubitavelmente deve ser amenizado e circunscrito. Resta-nos saber como. E donde nasce.

Programa da Eliana, TV Record. O infantil que os especialistas apontam como o menos pior dentre os que usufruem daquela outrora inesgotável receita "apresentadora-modelo + desenhos da moda + merchandising de apoio" descoberta nos anos 80 e bombardeada ao longo dos 90 (sou por sinal filho desta geração). Existe a verídica preocupação dos produtores do programa estrelado pela loira dos "dedinhos" com aspectos técnicos do vídeo, tal como o material usado na elaboração dos desenhos animados (pertinente, após casos recorrentes de epilepsia provocado em crianças japonesas por reflexo de uma famosa animação) ainda que a qualidade do conteúdo apresentado seja secundária. Eliana, de longe, é mais articulada e menos vulgar que suas similares e tem em talento e traquejo com a garotada o que Xuxa possuía de carisma e biografia retroativa. Hoje, por ter tomado o reinado da periclitante e "eterna" rainha dos baixinhos, à deriva após romper com o oráculo Marlene Mattos, tem sido varejada pela crítica, o que é absolutamente normal dada sua visibilidade. E também porque não foge a regra de três do ofício: voz doce com discurso moralista, vendedora compulsiva de discos e produtos de sua marca e mediadora do famigerado duelo "meninos X meninas".

Dia 24 de julho de 2003, manhã de quinta-feira. Entre uma peraltice e outra de Chiquinho, seu assistente de palco, Eliana anuncia uma corrida de bebês (sim! Corrida de bebês!) Um caso típico de violência normativa e consentida. Explico.

Procure imaginar o cenário: um palhaço engraçado e bonachão ladeado por uma loira belíssima e...Tão doce. O espaço tomado por cores de verão, crianças a chacoalhar pompons e uma música fofinha (aliás, a força ficcional da melodia agindo nas quimeras da tela mereceria uma tese própria). No centro do palco, no colo de duas moças simpáticas, quiçá suas orgulhosas mamães, as estrelas da companhia. Duas pequeninas criaturas humanas, ainda incapazes de locomover-se como bípedes e sem o benefício da verbalização, "prontas" para o embate numa pista que bem poderia ser uma rinha. Recém chegados ao convívio social, no instante em que mais precisam de carinho e educação, são abatidos - meigamente abatidos - e postos em competição. Não tem noção do que fazem ali, tudo é tão novo e aguça seus olhinhos. Um sorri expansivo. O outro estranha um pouco. Uma cândida cena que mesmo o mais niilista dos críticos seria facilmente persuadido a aceitar por encantamento. Não tive estômago para continuar a assistir. Jamais saberei qual rebento triunfou.

Fixei-me no que transcorria por menos de dois minutos. Mas não pude deixar de lamentar pelos assistentes sociais, psicólogos, pedagogos e cidadãos realmente imbuídos pela construção da cidadania a partir da aurora da existência. E essa primeira infância - do nascimento aos 7 ou 8 anos de idade - é vital para a constituição do adulto que virá. E aqueles bebês, a despeito de estarem inclusos num mundo cuja história é dividida entre perdedores e vencedores, não começaram bem.

Paulo Freire, um quadro histórico do Partido dos Trabalhadores, foi o grande artífice de uma nova formatação da educação, que sempre fincou-se como um pavilhão das esquerdas. Porém, não creio que o desleixo de cultura seja mais um vício da Direita. Pelo contrário. Até porque a política adotada pelo partido da estrela solitária é de matiz liberal. É algo que envolve a eterna cisão do mundo em dois pólos antagônicos: direita e esquerda, masculino e feminino, bom e ruim. A matemática e a informática seguem uma ordenação binária, e estruturalistas como Levi-Strauss demonstravam essa dualidade em ritos e na própria constituição da idéia de pessoa. Talvez sejamos de fato regulados por isso, o que explica em tese o fascínio pela ostentação e o desejo de ter além das posses do vizinho.

Seria algo menos nocivo, contudo, se pudéssemos reconhecer-se passíveis perdas (as chamadas mortes psicológicas) e que ela tivesse uma outra significação que não fosse tão humilhante e irreversível. O homem poderia chorar e não camuflar a fragilidade para tarefas de ação e arrojo, obrigação cultural imposta ao gênero, e a mulher tomaria a frente das decisões com força propulsora impetuosa e sistemática. O que somente agora tem se insinuado, timidamente. Guia e iluminação comportamental das camadas mais humildes, a igreja católica ainda veta postos hierárquicos de liderança para mulheres e lhes cobra servidão e pudor. E isso, a curto ou médio prazo, ainda faz muita diferença no conjunto final.

Se acreditamos em alguém somente quando interage com o grupo e reconhecemos a relevância da formação transmissiva do conhecimento, porque ainda não se promoveu uma reformulação no jeito de educar-se a criança?

Pergunta inescapavelmente ingênua e diluída no ar junto aos seus fins. Terá o silêncio ou o deboche como resposta. Cairia eu, ao negar às cegas o presente, em contradição com juristas e antropólogos mais abalizados que demonstram o homem como uma espécie competitiva, dotado de logos e um voluptuoso instinto animal, e que não mede conseqüências pelo bem estar individual e, no máximo, de sua pequena célula de convivência. Enfim, cutucamos nosso próprio sofrimento. E ainda reclamamos depois. Fica meu lamento absorto, inconcluso, sensorial.

Vivemos de remédios parciais (veja o caso dos sindicatos e determinados movimentos sociais que discursam poéticos por um outro mundo possível, porém se satisfazem com meia dúzia de melhorias corporativistas), de ação e reação que precisam sobreviver irmanados no desatino, tal o noticiário policial em comunhão com o crime (cuja relação é de mutualismo puro). Mas nada justifica a crueldade subliminar, que nos entope de ternura na mesma medida em que limita as opções do agredido entre a norma e a lei. Daí fica difícil comprovarmos as teses, tanto egoístas (por não ser posta jamais em xeque), quantos altruístas (pré-julgada ineficaz e romantizada). É o velho conto da sereia de lábios carnudos e letais.E agora das tenras corridas de bebê.

Daniel Aurelio
São Paulo, 8/8/2003

 

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