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Quinta-feira, 14/8/2003
Eis o malandro na praça outra vez
Adriana Baggio

Parece que nós, brasileiros, temos um talento especial para transformar limão em limonada. Nossas manifestações culturais mais ricas nasceram no bojo da opressão, da exclusão e da crueldade. A feijoada, o samba e o candomblé, por exemplo, são frutos de um sistema escravista que ajudou a formar o perfil atual do Brasil. Pasteurizados, romantizados e devolvidos ao mercado, esses produtos deixam de ser casca de ferida para se tornarem símbolos da nossa riqueza cultural. Passam a fazer parte de um conjunto de elementos que formam o que se chama de "a cara do Brasil" e que alimentam outros produtos da nossa cultura. É esse também o caso do "malandro", um dos mais famosos arquétipos cariocas. Mais do que um personagem, o malandro condensa em suas características o contexto social do Rio de Janeiro de fins do século XIX e início do século XX. Por sua importância histórica e antropológica, mereceu um livro inteiro só sobre ele, escrito pelo jornalista Luiz Noronha e lançado em junho passado pela Prefeitura do Rio de Janeiro, em parceria com a editora Relume Dumará: Malandros: notícias de um submundo distante (2003).

O malandro é uma figura que só poderia ter nascido em uma cidade como o Rio de Janeiro do começo da República. Enquanto capital, o Rio era o centro das manifestações políticas, sociais e culturais do país. Uma cidade grande, com todos os problemas inerentes a essa condição: superpopulação, desemprego, insalubridade. Noronha conta como o processo de transição da escravatura para o capitalismo e do império para a república, teve como sobras uma massa de pobres de diferentes estilos. Desempregados, ex-escravos, imigrantes de outros países, migrantes nordestinos fugindo da seca, ambulantes e desocupados formavam um conjunto de excluídos que se espremiam pelos cortiços e pelas ruas da cidade, que não combinavam com os novos tempos da belle époque carioca. No afã de reformar a cidade para atender ao estilo de vida dos novos capitalistas e dos remanescentes da aristocracia, o presidente Rodrigues Alves empossou como prefeito o engenheiro Francisco Pereira Passos, que tinha assistido à cirurgia realizada em Paris pelo Barão Haussman e que transformou a velha capital medieval na Cidade Luz.

A operação realizada por Passos no centro do Rio foi muito mais de plástica do que propriamente de cura. Ruas foram alargadas e abertas, os cortiços foram destruídos e toda uma vida que acontecia nos espaços públicos passou a ser regulada por novas leis. Apesar de desalojadas, as pessoas não foram realocadas. Nascem as favelas e os bairros pobres vão ficando cada vez mais afastados no novo Rio de Janeiro. Como se não bastasse, ainda chamam um doido que dizia poder prevenir a febre amarela dando uma injeção contendo o vírus da doença. A revolta contra a vacina foi muito mais do que uma rejeição aos métodos sanitários do médico Oswaldo Cruz para controlar a epidemia que se alastrava pelos cortiços da cidade. A campanha de vacinação foi o estopim que fez explodir a indignação da massa de excluídos gerada pela urbanização.

Ao mesmo tempo, o Rio dessa época é um caldeirão cultural em ebulição. Cafés, salões, bares e cinemas nutrem uma cidade ansiosa por lazer e diversão. Existem lugares para todas as classes sociais e para todos os gostos. Aumentam as casas de jogo e prostituição. A capital da república recebe gente de todos os cantos, tipos que ajudam a forjar as novas manifestações culturais. O malandro carioca é fruto desse processo de exclusão social e explosão cultural.

O malandro era um desocupado que vivia de bicos ou serviços de "proteção" para prostitutas ou moradores e comerciantes de determinada região. Ia dormir já com o sol, acordava ao meio-dia e saía para a rua. Carregava sempre consigo o chapéu e a navalha. Os malandros faziam parte de organizações do submundo urbano que tinham origem nas maltas de capoeiristas vindas da Bahia. A capoeira assumiu um aspecto profissional, com hierarquia e regras bem definidas até no que se referia a roupas e atitudes. São essas regras que caracterizaram o malandro que aparece tão romanticamente nos filmes, na literatura e nas músicas brasileiras.

O malandro nunca usava arma de fogo, só navalha, que sempre carregava no bolso fundo de sua calça branca larga e de boca estreita, junto com o dinheiro, baralho de cartas marcadas e fumo. O paletó do malandro deveria estar sempre aberto. Compunham ainda o figurino a camisa e o lenço de seda que, segundo a lenda, cegava o fio da navalha e a botina de bico fino. O jeito de capoeirista fica evidente no gingado do andar, que permite rapidamente a posição de combate. Além da seda, o chapéu na mão esquerda também servia como defesa nas lutas.

O livro de Noronha começa com uma entrevista com Madame Satã, o mais famoso dos malandros cariocas. A entrevista foi feita pelo pessoal do Pasquim em 1971 com o então esquecido bandido. É a partir dessa entrevista que se redescobre o malandro, agora só como mito. As transformações sofridas pelo país na década de 1940 fizeram com que a figura do boêmio desocupado e perigoso desaparecesse, dando origem a bandidos menos românticos. O malandro ficou vivo somente nas letras das músicas, nas crônicas e nos filmes, ajudando a alimentar o imaginário brasileiro. Do malandro restou apenas o figurino e a nostalgia de um outro Rio de Janeiro. Esquecemos que o malandro, assim como outras figuras da mitologia brasileira, é a limonada feita dos acres limões da história do nosso país.

Para ir além




Adriana Baggio
Curitiba, 14/8/2003

 

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