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Terça-feira, 2/9/2003
Receita para fazer filmes
Maurício Dias

O norte-americano Joseph Campbell (1904 - 1987) foi um estudioso de mitologia. Tomei conhecimento do seu trabalho num curso extra de roteiro para cinema que fiz logo após a conclusão da faculdade. Foi lançado aqui logo em seguida o livro A Jornada do Escritor, de Christopher Vogler, um estudo aplicando ao roteiro de cinema as idéias de Campbell para a concretização da estrutura do mito.

No livro de Vogler, uma série de filmes americanos, especialmente O Mágico de Oz e a série Guerra Nas Estrelas são analisados e vemos que suas estruturas se adequam ao método de Campbell.

Trabalhando com arquétipos como mentores, guardiões do limiar, etc., ali se expõe um esquema básico ideal para a jornada do herói em um mito:

1) Consciência Limitada

2) Aumento da Consciência

3) Relutância à Mudança

4) Superando

5) Compromisso

6) Experimentando

7) Preparando

8) Grande Mudança

9) Conseqüências

10) Nova Dedicação

11) Tentativa Final

12) Domínio

Esta estrutura, com algumas variações, pode ser encontrada em muitos dos filmes americanos. Estou aqui apenas expondo o que é colocado ao longo de 340 páginas. O conhecimento destes elementos é uma chave para se fazer um bom roteiro cinematográfico.

Mas um erro fundamental da maioria dos roteiros de filmes americanos é achar que apenas o conhecimento destes elementos garante qualidade a um roteiro. Não garante. Roteiristas medíocres usam este esquema como receita para bolo. Nem na culinária o fato de se ter um bom livro de receitas garante ao sujeito ser um bom cozinheiro. Imagine então na arte como é.

O diretor francês Jacques Tati dizia que não se pode fazer filmes como pães. Cada obra deveria ter seu tempo de maturação e suas qualidades individuais. Evidentemente, nos filmes da grande indústria isso é uma utopia.

Filmes como Titanic ou Dança com Lobos tem o roteiro todo estruturado para se enquadrar a algum esquema já pré-testado (o de Vogler-Campbell não é o único método, há outros) e de comprovado sucesso.

Os citados acima, como outros, acabaram sendo sucessos de público, em parte por qualidades da produção que nada tem a ver com roteiro (atores carismáticos, cenografia bem cuidada, bons efeitos especiais), em parte por campanhas de marketing bem elaboradas, e em grande parte, bem, em grande parte porque o público é, como se diz, well, burro. Ambos os filmes são bem medíocres. Não são horríveis. Foram pré-elaborados, refeitos, testados em audiências durante muito tempo, dificilmente seriam horríveis. São apenas medíocres. Justamente por quererem agradar a muitos, são esvaziados de qualidade. Roteiros que, originalmente poderiam até ser bons, são escritos e reescritos vezes demais, para agradar a produtores e yes men, esvaziando-se assim qualquer conceito autoral que ali pudesse estar embutido. O processo todo é mostrado de forma satírica em O Jogador, de Robert Altman, em que um diretor iniciante quer fazer um filme trágico sobre uma inocente que morre na câmara de gás. O personagem do diretor frisa várias vezes que quer algo realista e sem "estrelas de Hollywood". No final, os produtores conseguem convencê-lo a mudar a tragédia para um happy end e a usar Julia Roberts e Bruce Willis (ambos "interpretando" a si mesmos). A voz do público é a voz de Deus.

Sei que em Titanic ou Dança com Lobos os finais trágicos são mantidos - se bem que em Titanic o casal de pombinhos ressurja após a morte para ser aplaudido por todos os fantasmas do navio (logo antes de entrar a música da - Argh! - Celine Dion) e em Dança com Lobos o casal branco escape (tinha que haver uma mulher branca na tribo? Não seria mais politicamente correto se Costner se relacionasse com uma índia - opa, quero dizer, "nativo-americana", uma Pocahontas da vida?) e só os índios se ferrem geral. Mas O Jogador, lembremos, é uma sátira, não um filme realista. Como também é uma sátira o melhor filme sobre Hollywood, Crepúsculo dos Deuses (Billy Wilder, 1950), sobre o qual já escrevi, ou a grosseira e divertidíssima série para TV Action, que mostrava os trambiques do fictício produtor de filmes de ação Peter Dragon (durou apenas 12 episódios e foi exibida aqui pelo canal Sony).

Mas tendo conhecimento destes esquemas, você vê como a maioria dos profissionais do roteiro se acomodam, repetem o já-feito e se acovardam. Apesar de a história ser o ponto central de um filme, aqueles que a escrevem são uma classe muito pouco prestigiada, é natural que se retraiam e no final acabem virando funcionários que farão o que for mandado em troca de um cheque no final do mês - cheque este que, muitas vezes, não vem.

Quando atuava no mercado, ouvi de produtores e editores frases que variavam nas palavras, mas cujo sentido era mais ou menos este: - "Eu mesmo escreveria, se tivesse tempo!"

Claro que escreveria. Bastaria para isso que tivesse lido alguns livros (coisa que, em geral, não fazem), visto e revisto certos filmes (idem), e estudado (isso então, nem preciso falar). Para depois, sentar a bunda na cadeira, escrever e reescrever.

Com frases como esta que mostrei acima, pessoas ignorantes, que em geral estão numa boa posição apenas por conexões familiares, diminuem o profissional e ainda mostram que eles próprios, os patrões, são capazes de fazer o serviço, mas preferem se dedicar a algo mais importante. Cheirar cocaína e ir à termas, por exemplo - não que os roteiristas não cultivem os mesmos passatempos. É que em geral não tem dinheiro para isso.

Isto é universal. Mas nos EUA, pelo menos há um mercado vasto, o roteirista pode dar a sorte de trocar o imbecil do seu chefe por outro um pouco menos imbecil. Aqui, com um cinema que é uma ação entre amigos ricos (mas com apoio do governo), e o monopólio de uma única emissora de TV que investe em "qualidade de dramaturgia" - bota aspas nisso, e mesmo assim, numa faixa de horário reduzida de sua grade - o roteirista oscila entre o trabalho para comerciais publicitários e a inanição, até resolver fazer concurso para funcionário público.

Pretendo ainda voltar a falar de Joseph Campbell, seu trabalho com mitologia tem pontos interessantes e não se limita ao ato de escrever roteiros. Mas não é pra usar como auto-ajuda em nossas vidas, como alguns (e o próprio Vogler) querem nos fazer acreditar. Aproveito para indicar um link, onde há um texto mais longo meu sobre o cineasta Stanley Kubrick.

Maurício Dias
Rio de Janeiro, 2/9/2003

 

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