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Quinta-feira, 28/8/2003
O jornalismo que dá nojo
Adriana Baggio

Será que é pedir demais que pelo menos o noticiário fique fora da espetacularização promovida pela mídia? Não estou nem falando desses pseudo-programas jornalísticos que animam as tardes dos desocupados, oferecendo uma visão do que de mais podre existe no ser humano. Refiro-me aos noticiários que se dizem “sérios”. Desses, espero uma visão do que realmente é relevante, espero a notícia. Se for para ver espetáculo, posso optar entre as novelas, humorísticos, shows. Nesses programas sei o que me espera, sei que o drama é fabricado. Por isso fiquei chocada com a cobertura dada pelos jornalísticos da Rede Globo à morte do diplomata Sérgio Vieira de Mello.

Enquanto estava vivo, nunca vi a Globo dar atenção a esse brasileiro que ocupava um alto cargo na ONU e que, por conta da sua função, tinha a missão de contribuir para o restabelecimento do Iraque após a guerra. A prova desse descaso é que agora, com a morte do alto comissário, a Globo não tinha nenhuma entrevista, nenhuma reportagem para mostrar. As duas entrevistas veiculadas pela emissora não foram feitas por ela. A primeira que vi era da GloboNews, de 1999. Meio fria, não? Por mais que seja uma emissora do sistema Globo, as equipes de jornalismo são separadas. Por ser um programa de uma TV por assinatura, a programação é diferenciada. Os programas da Globo aberta não circulam livremente pela Globo por assinatura, e vice-versa. A outra entrevista veiculada foi originalmente produzida por uma TV angolana, um pouco antes de o diplomata assumir seu cargo no Iraque.

A gente sabe que, para o jornalismo, muitas pessoas valem mais mortas do que vivas. É o caso do diplomata. Apesar de ser um brasileiro importante, em um cargo importante na ONU, enquanto estava vivo não rendeu uma entrevista sequer. Não é o Brasil que reclama da representação que tem no exterior? Pois bem, esse era um exemplo de representação que não foi explorada, nem ao menos considerada, pela maior rede de comunicação do país para ajudar a reforçar a auto-estima do brasileiro.

Depois de morto, no entanto, Sérgio Vieira de Mello rendeu boas horas de reportagem. A Globo “cavou” entrevistas para poder contextualizar a importância do funcionário da ONU e justificar o fato de explorar tanto a imagem de alguém que mereceu pouca ou nenhuma menção na emissora enquanto estava vivo – enquanto o que fazia realmente era notícia.

Quando o potencial da notícia parecia esgotado, surge um novo atrativo para dar continuidade ao espetáculo. A moça desesperada na cena da explosão era – que sorte! – namorada do diplomata. Nada demais, se nas reportagens anteriores Sérgio não tivesse aparecido como casado. A reportagem veiculada no Fantástico fala que o casal estava separado, para neutralizar qualquer interpretação de que a emissora estava provocando um escândalo para alcançar audiência.

Não importa o tom. Também não importam quais eram os relacionamentos mantidos pelo diplomata. A notícia deu lugar ao sensacionalismo, ao folhetim. Além de lidar com a dor da morte, quem fica precisa lidar, também, com a exposição provocada pela mídia, com o fato de ter sua vida, seus segredos, sua intimidade colocados à vista de todo mundo. E qual a relevância de tudo isso?

Enquanto foi relevante, enquanto o que fazia era notícia, Sérgio Vieira de Mello permaneceu despercebido pela maior emissora de televisão do país, aquela que tem o poder de ditar o que deve e o que não deve ser notícia. Depois de morto, o foco passou a ser a vida pessoal do diplomata. Não foi notícia e passou a ser espetáculo. Com certeza, não era essa a representação que ele queria para si.

Adriana Baggio
Curitiba, 28/8/2003

 

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