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Segunda-feira, 22/9/2003
A fotografia cínica de Maurícius Farina
Jardel Dias Cavalcanti

A Galeria de Arte da Unicamp, em Campinas, mostra desde o dia 9 de setembro a corrosiva exposição "Fotografia Cínica", com os trabalhos do fotógrafo e jornalista Maurícius Farina. A Exposição poderá ser vista até o dia 3 de outubro.

Trata-se de um conjunto de 22 fotografias coloridas que serviram como objeto da tese de doutorado do artista, na ECA-USP, defendida início deste ano.

A última exposição individual de Farina foi realizada no Paço das Artes, em abril, em São Paulo. Com esta nova exposição Farina se propõe a criticar o sistema ideológico onde imperam os fetiches pelas mercadorias e pelo consumo, já tão entranhados em nossa cultura que parecem naturais.

Três fotos chamam a atenção para desvelar a aparente e/ou falsa naturalidade destes empreendimentos ideológicos: "Cristo no saco", "Conhecida por todos" e "A Bola".

No primeiro caso, "Cristo no saco", encontra-se fotografado um crucifixo, destes vendidos em mercados populares, guardado dentro de um saco plástico do supermercado Pão de Açucar. Não podemos deixar de pensar imediatamente no aspecto comercial das religiões na sociedade contemporânea (será que sempre foi assim?). Para além de um guia da experiência místico-religiosa, o que observamos nas igrejas é sua constituição enquanto empresa arrecadadora de bens monetários através das doações dos fiéis e enquanto empresa produtora de bens de consumo mercadológico (santinhos, crucifixos, bíblias, revistas, pulseirinhas, etc.)

Mas "Cristo no saco" vai mais além na sua crítica. A obra avança nos falando da sacralização do consumo e do êxtase por ele produzido em pessoas que têm uma vida absurdamente vazia e que encontram apenas no ato de consumir uma satisfação existêncial e espiritual.

No segundo caso, na foto denominada "Conhecida por todos", onde uma gilete aparece cravada na metade de uma maçã, fazendo uma referência ao orgão genital feminino, é o sexo que aparece como a grande mercadoria. A frase estampada na gillete é que dá título à foto e ajuda a explicitar o entendimento. Aqui critica-se as empresas comerciais que usam e abusam da imagem do corpo da mulher, principalmente das bundas lustradas, siliconizadas e exaustivamente fotografadas para venderem seus produtos, reduzindo a mulher, numa perspectiva machista, a um pedaço saliente de carne - no caso, as partes "eróticas" do seu corpo.

No terceiro caso, que comentaremos com um pouco mais de demora, na obra "A Bola", Farina propõe uma alegoria do fracasso da nação brasileira. A foto em close de uma bola de futebol nova, murcha, sobre um tom de verde démodé que toma todo o fundo da fotografia: eis a obra "A Bola".

A bola, como todos sabemos, é um dos principais elementos do jogo de futebol. E o futebol, como também sabemos, constitui o mais importante e tipicamente “esporte nacional”. Toda criança brasileira, diz-se por aqui, “já nasce com a bola no pé”. Se nós temos alguma realeza, ela se deve ao “Rei Pelé”, que é o maior jogador de futebol do mundo. Quando a seleção brasileira joga, o país todo se une “em uma só voz”. Durante o Regime Militar o toque épico das imagens do futebol brasileiro apresentadas pela imprensa colocava este esporte como um dos traços da grandeza brasileira. Como dizia o general Ernesto Geisel (1975), o futebol é a “expressão deste povo generoso e ordeiro, compreensivo, tranqüilo e bom”. A bola de futebol representa o anseio que temos do Brasil ser um país vencedor. Um país que, apesar da miséria, consegue com o futebol derrotar as nações mais avançadas do mundo. Por trás dessa idéia vende-se a ilusão da Potência Emergente, que consegue ser a primeira no futebol, apesar de ser uma das últimas em justiça social.

É notável a importância que os criadores da opinião pública atribuem ao futebol, criando um consenso popular sobre a suposta habilidade do brasileiro com a bola. Chegando a encontrar nessa “nossa ginga” e “nossa arte” (o jeitinho brasileiro), em oposição à “técnica” dos jogadores do primeiro mundo, uma qualidade e/ou característica generalista da definição da figura do “brasileiro”. A preocupação com esse tipo de “identidade” e a busca dessa “singularidade” através do futebol é, portanto, visível e tornou-se signo de nossa suprema virtude e originalidade, quando na verdade revela nossa incapacidade para lidar com o profissionalismo. Mesmo assim, nos achamos um “povo heróico” e especial, formado por “três raças irmãs”, ainda que uma delas tenha escravizado e barbarizado as outras duas.

Existe um sumário clássico das razões para esse otimismo brasileiro: clima ameno, ausência de calamidades, tamanho do território, beleza e riquezas naturais, harmonia racial. Essas características nos fazem pensar também na inevitabilidade do nosso sucesso no futebol. A força desta crença, no entanto, configura-se como um imaginário difícil de ser abalado. Por isso, talvez, seja tão doloroso contemplar esta bola murcha apresentada por Farina, que esmigalha nosso símbolo mais importante, o futebol, que é uma das razões pelo qual devemos sentir forte sentimento de orgulho patriótico pelo Brasil.

O futebol aparece para os brasileiros como valor ou símbolo da singularidade da “cultura nacional” ou, para ser mais certeiro, a própria “alma da nação”. Por isso, com sua bola Farina faz alusão a duas imagens que remetem ao Brasil: seu mapa, que quase se desenha com a bola sendo amassada no lado esquerdo e a bandeira nacional, um pano verde com um círculo ao centro.

A Bola de Farina é um objeto cínico-icônico que revela e destroça a imagem da nação brasileira como presente de Deus (secas nordestinas, endemias, fome, miséria e prostituição infantil), como povo pacífico (genocídio da população indígena, escravidão negra, extermínio físico e psíquico de trabalhadores, mortes violentas pela posse da terra), como país da democracia racial (discriminação contra os negros, árabes e asiáticos comerciantes).

O verde, símbolo de nossas grandes florestas, esmaece-se na foto de Farina - melhor dizendo, degrada-se. Serve ainda para ampliar a presença visual da bola, brilhante por ser nova e murcha em sua desfuncionalidade e inutilidade (afinal, para que serve uma bola murcha?).

A sombra da bola, que um fotógrafo comercial jamais deixaria existir, na obra de Farina transforma-se numa desdenhosa auto-ironização da própria operação artística enquanto fotografia de qualidade. E alegoricamente nos faz pensar um pouco mais na incapacidade do nosso país em realizar qualquer projeto de qualidade profissional.

A Bola de Maurícius Farina, nova, porém murcha, sintetiza bem o que diz a canção de Caetano Veloso: “aqui tudo é construção e já é ruína”.

Além destas três obras, podem ser apreciadas mais 19 fotos na exposição "Fotografia Cínica". Imperdível.

Para ir além

www.iar.unicamp.br/galeria/m_farina/

Jardel Dias Cavalcanti
Campinas, 22/9/2003

 

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