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Terça-feira, 30/9/2003
O inverno de Fante
Fabio Silvestre Cardoso

Citado por muitos, lido por tantos outros, mais comentado do que nunca de uns tempos para cá. Trata-se de John Fante (1909 - 1983), autor celebrado pela beat generation, cujo romance Espere a primavera, Bandini é agora relançado pela editora José Olympio.

Logo no prefácio, há uma advertência necessária e igualmente inusitada: "[...]Estou seguro de que nunca lerei este livro de novo. Mas uma coisa é certa: todas as pessoas em minha vida de escritor, todos os meus personagens encontram-se neste trabalho inicial. Nada de mim está lá mais, apenas a memória de velhos quartos de dormir e o som dos chinelos de minha mãe caminhando até a cozinha".

Ao leitor mais incauto, pode parecer que a história, à primeira vista, traça apenas uma série de infortúnios da vida de um adolescente ítalo-americano em Colorado, nos Estados Unidos. A esse mesmo leitor, também pode ser natural a percepção de que o narrador conta a desoladora saga da família Bandini para, no fim, contrapor este cenário com uma redenção emocionante, com direito a final feliz e tudo mais. Para o bem e para o mal, esse roteiro previsível não acontece no romance de John Fante. Os motivos são claros, porém ficam ofuscados com o lugar-comum das leituras apressadas que ora tentam exaltar, ora visam deturpar as características dos escritos do autor.

Assim, um elogio fácil ao livro seria dizer que o texto de Fante, por ser ácido e incisivo, aponta para as fissuras da sociedade norte-americana, como o consumismo e a impessoalidade nas relações entre as personagens, em especial na família Bandini. Entretanto, perder-se-ia toda uma amplitude das cenas e dos relatos construídos pelo autor, pois, além desse estilo que cativa onze de cada dez blogueiros-escritores, Fante possui uma densidade que encanta ao mesmo tempo em que assombra. Por isso, na descrição dos momentos em que Maria Bandini se encontra em situação aterradora por, mais uma vez, não ter dinheiro, nota-se que não apenas o momento é exposto, mas também é mostrada a condição humana no fundo do poço; no desespero da falta de perspectiva, lassidão essa que provoca suicídios e tende a levar as pessoas aos vícios e aos escapes fáceis, como acontece com a própria Maria que sempre busca alívio nas revistas femininas.

Seria injusto, por outro lado, esquecer que as outras personagens compõem um mosaico das impressões e dos sentimentos do ser humano. Arturo, August, Frederico e, claro, Svevo Bandini. Homens ou quase-homens. Afetados por algum tipo de fragilidade de espírito, são incapazes de se livrar dos estigmas que os perseguem - a bebida, a opressão religiosa, a insegurança. Dessa maneira, culpam, ainda que indiretamente, uns aos outros pelos fracassos e pela falta de iniciativa que os preenche.

É crucial observar o ambiente que cerca o romance. "Svevo também aguarda a Primavera", diz a esperançosa Maria sobre a atual situação de seu esposo. De alguma forma, tanto os leitores como as personagens sabem que o porvir não guarda grandes esperanças, porém torna-se aceitável acompanhar a narrativa dessa forma. É o inverno de Fante. A espera da estação seguinte se revela como a última esperança para os corações apaixonados, absortos pelo fastio, pelo mal do século que tanto assola como desola Arturo Bandini.

No romance, o adolescente Arturo Bandini é o alter-ego de John Fante. Esse elemento é subestimado na obra do autor, visto que se tornou um recurso da literatura contar os acontecimentos de um cotidiano degradado (Muitos autores menores, aliás, começaram a provocar esse histórico sexo-drogas-rock nīroll em suas próprias vidas). Entretanto, poucos conseguem, com efeito, transformar o tecido fino que envolve as narrativas num pomposo veludo textual. E é aqui que Fante se destaca dos demais: ao lidar com as frustrações, com os temores e com o amor não correspondido, ele descobre que o final nem sempre é feliz; aprende, então, a esperar a primavera, pois, como preconiza o título do romance, pode-se aguardar pela incerteza, que, por vezes, traz mais esperança do que a frieza dos fatos.

A arte da escrita

Grandes romancistas e escritores contam com um elemento que os diferencia dos escribas cotidianos, como jornalistas e redatores em geral. Trata-se do tempo interior, partícula que torna envolvente a narração dos fatos e a descrição da atmosfera. Ainda que evidenciado pelo naturalismo, é um recurso que se destaca nos autores de qualquer estilo e de qualquer época. Seja com Hobsbawn, um historiador, seja com Flaubert, um romancista - embora a articulação ocorra de maneira diversa nesses dois exemplos.

Correspondência

Henry Louis Mencken, mais conhecido no Brasil pelo Livro dos Insultos, foi um dos grandes incentivadores da obra de John Fante. Há, inclusive, um livro, lançado nos EUA em 1989, que traz a correspondência entre Mencken e Fante, de 1930 a 1952. Nesse sentido, é mais do que justo aguardar que as missivas também sejam publicadas por aqui. Pelo bem da literatura em geral.

Bibliografia

"Estes romances cederão lugar, pouco a pouco, a diários ou autobiografias - livros cativantes, desde que um homem saiba escolher, entre o que chama de suas experiências, aquilo que é realmente sua experiência e saiba registrar, de fato, a verdade" (Ralph Waldo Emerson, trecho extraído da epígrafe de Trópico de Câncer, de Henry Miller).

Para ir além




Fabio Silvestre Cardoso
São Paulo, 30/9/2003

 

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