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Quarta-feira, 15/10/2003
Guia para viajar sem sair da poltrona
Adriana Baggio

Estaria sendo muito pretensiosa se ousasse indicar os dez livros mais importantes que alguém deve ler. A quantidade de obras consagradas e novas é tão grande que seria impossível, mesmo para um leitor que só fizesse isso na vida, selecionar as primeiras entre todas as que existem. Justamente pela quantidade e variedade de títulos é importante que, em determinado momento da vida, a gente possa contar com uma espécie de guia, alguém que já tenha lido muito e que possa orientar: isso vale a pena, isso não. É como se você fosse à Europa com tempo limitado. Para aproveitar bem a viagem, seria legal poder contar com as indicações de alguém que tenha os mesmos interesses que você, que saiba o que realmente vale a pena ser visto. Mas reservar um tempo para fazer as suas próprias descobertas também é importante. O gosto e a afinidade das pessoas é diferente. O que é bom para mim, pode não ser bom para você.

O meu orientador nessa viagem foi um professor, como é muito comum acontecer. Pessoas que têm a sorte de contar com professores capazes, generosos e interessantes normalmente tomam atalhos para as melhores obras literárias, de arte, música, cinema, etc. O meu guia nesse caminho foi Cristóvão Tezza, que além de ótimo professor, é um escritor fantástico. Lembro que, nos primeiros dias de aula, ele passou uma lista enorme com sugestões de livros. A gente tinha que escolher um deles e apresentar um seminário, uma performance, não lembro direito. O que é importa é que, mais do que um roteiro para uma atividade didática, aquela lista foi um guia para algumas das minhas escolhas literárias. Sempre fui uma leitora voraz, e aquele index do bem só fez canalizar essa vontade para boas leituras.

No entanto, não acho que as leituras de lazer ou aquelas consideradas superficiais devam ser deixadas de lado. Existe momento para tudo. Fazer da leitura um programa de lazer é uma coisa deliciosa. Um livro que consegue fazer a pessoa deixar de comer, dormir e ir ao banheiro tem seus méritos. É por isso que começo minhas sugestões não com um livro, mas com a obra de Agatha Christie. Muita gente torce o nariz para o gênero de mistério, policial ou suspense, como se a leitura fácil e de lazer não valesse à pena. Não é porque os livros de Agatha Christie são agradáveis que são superficiais. Só não se aprofunda quem não quer. A autora escreveu do início do século XX até 1970. Ler seus livros é acompanhar a decadência do conservadorismo inglês e a tentativa de manter a imponência e o glamour de uma instituição tão deslocada como a monarquia.

É o início do século XX, mais precisamente a década de 1920, e também a Inglaterra, o tempo e cenário de outro romance marcante para mim: Contraponto, de Aldous Huxley. Bastante conhecido pela ficção científica e pelas experiências psicodélicas, nesse livro o autor retrata temas mais cotidianos. Aborda os conflitos dos relacionamentos humanos e também faz uma crítica à sociedade inglesa da época. Folhas secas também segue na mesma linha, e prova a pluralidade desse escritor.

Na minha lista de indicações não pode faltar Dorothy Parker. Frágil e corajosa ao mesmo tempo, ela soube rir da condição feminina na primeira metade do século XX, sem delicadeza nem pudor. Seus contos são irônicos, sarcásticos e divertidos, mas ao mesmo tempo deprimentes e realistas. Não tem mulher que não se identifique com alguns dos comportamentos ridículos retratados por ela. Uma coletânea, Big Loira e outras histórias, reúne o melhor de Dorothy Parker.

Entre os nacionais, colocaria Rubem Fonseca e Nelson Rodrigues. Os dois, cada uma à sua maneira, retratam o podre da sociedade. Nelson Rodrigues colocou em prática, através de seus personagens, todas aquelas coisas que Freud falou sobre nós e que odiamos admitir. Exagerado, talvez. Mas como temos um lado podre, que adora o escatológico, o sórdido e a tragédia, através de Nelson Rodrigues sublimamos nossos desejos inconfessáveis e nos tornamos aptos para a vida em sociedade. Rubem Fonseca também aborda a banda podre, mas seu foco é mais aberto. Se Nelson mostra o lado interior, Rubem desnuda o materialismo, o submundo, o crime, a podridão exterior.

Tem um livro que parece não envelhecer: A arte da sabedoria mundana: um oráculo de bolso, de Baltasar Gracián. Ele era um padre, viveu na corte, e observando as situações pode compilar uma espécie de manual de conduta para a vida social, política e para os negócios. Incrível a sensatez e a visão desse homem. É um livro para ler inteiro, uma vez, e depois deixar bem à mão, para consultas periódicas.

Entre os clássicos, coloco Victor Hugo. A trajetória do escritor, do conforto da burguesia à revolta contra a política monarquista, se expressa em sua obra. Um de seus livros, Os trabalhadores do mar, mostra o orgulho, a determinação e a força de um homem que, como os rochedos, permanece firme apesar das ondas, mas traz em sua vida as marcas deixadas pelo vai e vem das marés.

Especialmente para as mulheres, é interessante ler Simone de Beauvoir. Ela viveu, com Sartre, um relacionamento "aberto", onde ambos tinham o direito de manter relações extraconjugais. As sensações da autora em relação a essa situação estão apresentadas em A convidada, um romance que tem muito de autobiográfico. Simone de Beauvoir foi uma das precursoras do feminismo. No entanto, ao ter o direito de agir como os homens em uma época em que o adultério era inadmissível para as mulheres, Beauvoir antecipou um dos conflitos que o sexo feminino teria que resolver mais tarde, não só em relação ao amor, mas também aos papéis sociais: até que ponto compensa ser como os homens? Não seria melhor admitir as diferenças e exigir respeito a elas?

A França, como espaço, e a década de 1920, como tempo, parecem ser a combinação perfeita para a produção de bons livros. Hemingway viveu na França por essa época e o seu dia-a-dia é retratado nos contos de Paris é uma festa. Mesmo para quem nunca esteve na cidade, é fácil visualizar os locais por onde o autor passeia, as lojas, as livrarias, os cafés.

E por falar em passear por locais e épocas onde nunca estivemos, encerro minha lista com On the road, de Jack Kerouac. Esse livro é um hit entre estudantes de comunicação. Acho que todo mundo, em algum momento da vida, pensou em largar tudo e sair por aí, sem destino. Se a idade, o conforto e as responsabilidades fizeram você perder a coragem, aventure-se de forma segura com o livro de Kerouac. As passagens sobre os bares do sul dos Estados Unidos onde os negros tocavam jazz quase faz com que você sinta-se lá, de corpo e alma.

Se ler é viajar por épocas, lugares e pensamentos desconhecidos, fica aqui uma sugestão de roteiro. Quando a grana anda curta, apele para os livros nas horas de lazer. De quebra, você aumenta seu vocabulário, exercita o cérebro e ainda pode impressionar os amigos com descrições de lugares onde nunca esteve.

Adriana Baggio
Curitiba, 15/10/2003

 

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