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Terça-feira, 4/11/2003
Ode a Pablo Neruda
Aline Pereira

Onze de setembro está fadado à triste lembrança dos ataques terroristas contra milhares de civis, em 2001, nos Estados Unidos. Porém, é preciso parafrasear o historiador Pierre Nora, que em História: novos objetos afirmara que "a necessidade de memória é a necessidade da História". Lembremos também, que há 30 anos, na mesma data, o Chile vivera uma das suas piores crises políticas: a ascensão do general Augusto Pinochet, que se manteve no poder por 15 anos. Este - um dos maiores transgressores dos direitos humanos - liderou o golpe militar que destituiu do cargo o presidente socialista Salvador Allende. Como conseqüência da instauração da mais longa ditadura país, o ex-presidente se suicidou no mesmo dia; e em 24 de setembro, o chileno Pablo Neruda (1904-1973) - amigo de Allende, militante político, membro do partido comunista e renomado poeta - morreu.

De acordo com os biógrafos de Neftalí Ricardo Reyes (nome de batismo), ele morrera em Santiago, vítima de enfarto, provavelmente propiciado pela situação do Chile. Seu vigoroso engajamento político o levou ao exílio por alguns anos. No final da década de 1960, Neruda fora pré-candidato à presidência do Chile, mas optou por se tornar embaixador, em 1970, na França. Prêmio Nobel de Literatura (1971), é cômico afirmar que este poeta, cuja obra é mundialmente ovacionada, vendera seus bens para custear a publicação de Crepusculario - seu primeiro livro, em 1923, editado em espanhol. Neste, os poemas de Neruda versam sobre sua vida e algumas lembranças do Chile.

O mesmo pode-se dizer de um dos seus últimos títulos, publicado na Espanha algum tempo antes de sua morte. Trata-se de Ainda (Aún), editado em 2002 pela José Olympio Editora. Em 28 poemas antológicos, o autor relembra os lugares que fizeram parte de sua vida, assim com a figura de seu pai (maquinista de trem), que o levara para conhecer lugares como Temuco, Yumbel, Angol e Boroa. Seus versos remetem o leitor a um sentimento nostálgico, com suaves toques de despedida - que não o impede de perceber um discreto (e poético!) posicionamento político.

Todos os poemas publicados em Ainda refazem o percurso de vida de Pablo Neruda, que exaspera um saudosismo romântico. Logo no quinto poema, desculpa-se e previne (desnecessariamente) ao leitor: "Perdão se quando quero / contar minha vida / é terra o que conto. / (...) Se se apaga em teu sangue / te apagas".

Talvez não seja exagerado afirmar que Ainda equivale a um diário do poeta, como um daqueles escritos para que não se perca as próprias raízes. Em versos, Neruda transparece um desejo de regressar às suas origens. A capa da sétima edição também proporciona tal pensamento, pois, em tons sóbrios, exibe um pássaro voando rumo ao desconhecido. Uma provável explicação é motivada pelo fato do autor ser considerado um cidadão do mundo. Seja pelo exílio ou pelos compromissos políticos assumidos (segundo biógrafos de Neruda, ele foi, por exemplo, cônsul na Birmânia, em Barcelona e no México), em sua trajetória, o que predominou foi seu afastamento da terra natal.

Tal sentimento também se torna evidente no premiado O Carteiro e o Poeta (Itália, 1994); dirigido por Michael Radford e inspirado no livro do também chileno Antonio Skármeta, inicialmente intitulado Ardiente Paciencia (1985). A historia gira em torno da amizade de Pablo Neruda (Philippe Noiret) e Mário Ruopollo (Massimo Troisi) - carteiro de uma humilde e pacata cidade do Mediterrâneo, na qual o poeta está exilado. Ruopollo destaca-se pela inaptidão à pesca - ofício praticado pela maioria dos homens do local.

A vida deste jovem é transformada a partir do momento em que se torna carteiro particular e amigo de Pablo Neruda. O tratamento dispensado à simbiose entre os dois é uma das proezas do filme, que trata de valores como amizade, respeito e amor sem abusar da pieguice. Ao homem de pouca instrução intelectual coube a tarefa de interligar Neruda e o mundo. Ao velho mestre, desapertá-lo para a poesia e incentivá-lo a conquistar Beatriz Russo (Maria Grazia Cucinotta).

Tanto no livro como no filme, algumas nuanças sugerem que este sentimento nostálgico seja comum ao Neruda personagem e ao autor de Ainda. Ambos não se libertam de suas lembranças. Este movimento evidencia um resgate identitário, como se o poeta vivesse a angústia do "eterno retorno" - concebido e vaticinado pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) -, segundo o qual o homem não escaparia à repetição de suas experiências/memórias - sentenciado a viver duas vezes em uma só vida.

Ao (re)ler Ainda, de certo modo, o leitor compartilha tal sentimento com Pablo Neruda. A brilhante tradução para o português não comprometeu a mensagem original da obra. Este mérito é de Olga Savary, que também assina a "orelha" do livro. Ela também é dona da seguinte observação - uma pista para entendermos o pensamento do autor: "a palavra usada no título continua na saudação à Araucânia, 'onde um dia cresceu para ser amplo/ como a terra ou mais extenso ainda' - e é uma nota constante, como um refrão, ao longo do livro".

Embora não tenha muitas páginas, a leitura de Ainda não dispensa concentração. Envolvente, requer que um leitor sensível e atento, que esteja disposto a captar nas entrelinhas a sutileza dos versos de Pablo Neruda. Como o próprio afirmara, Ainda é uma obra "para ti, para ninguém, para todos".

Para ir além





Aline Pereira
Rio de Janeiro, 4/11/2003

 

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