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Quarta-feira, 5/11/2003
O que é um livro?
Ana Elisa Ribeiro

Um livro é um livro é um livro. Pra mim, que nasci na década de 70 do século passado, sempre foi um objeto meio paralelepipedal, uma espécie de tijolinho menos resistente, que servia para compor a estante da minha avó. No entanto, ao contrário dos tijolos, os livros podem ser abertos e seguros por uma articulação central a que chamam 'lombada'. As lombadas ficam expostas nas estantes e eu sempre insistia em puxar os livros por elas, que se estragavam com o passar do tempo. Certa vez, disseram-me para puxar os livros pelo meio e deixar sempre um espaço entre os livros por onde eu pudesse enfiar meus dedos. Assim, os livros respiram, eu respiro, a lombada respira aliviada.

Mas quando tomei consciência do livro, também soube que ele continha universos. Abri um, certa vez, que me levou ao sertão mineiro. Vivi um mês pegando carona com jagunços. Também estive presa em cadeias brasileiras do início do século XX e tive sede no Nordeste. Trabalhei nos subterrâneos franceses e tomei cachaça em cima dos telhados. E a memória daqueles universos se juntava à minha numa perfeita conjunção de sentidos. Ora uns, ora outros. Muito cinematográficos.

Mas o livro também é um extensor de memória, se eu pensá-lo como tecnologia. Era um pedaço de pedra, um naco de cera, uma tira de couro, um rolo de papel. Um volume cilíndrico, um tijolo de folhas empilhadas. Escrito a tinta, a estilete, a dedo, a caneta-tinteiro, a Bic, a impressora laser.

Livro é um objeto que fica na minha mesa de cabeceira. Leio todas as noites um trecho. Não é uma obrigação. É, sim, um prazer, pra me aliviar do dia, me descansar do trabalho. Tomo um banho, coloco meu pijama, os óculos de grau e me enfio embaixo do lençol. Acendo a luz do abajur e pego o livro. Entrego-me à leitura dele quando já posso dar atenção exclusiva, como se fosse um marido por quem eu fosse muito apaixonada e dedicada. Deito-me ao lado dele em pose de ninfa. Leio até o sono vir, até a hora pedir pra eu parar.

Ou o livro ornamenta a mesa escrivaninha. Ficam ali, para fazerem composições de cores. Ou ficam ali lado a lado os livros de consulta, aqueles que jamais são lidos de um fôlego. Servem para tirar dúvidas, compor outros. Dicionários, manuais, enciclopédias. Ficam em locais de fácil retirada, voltam ao lugar porque causam pânico se não estiverem sempre lá.

Ou livros são objetos que ficam na estante porque são lidos uma vez, de anos em anos, e guardam tesouros. Ficam expostos, compõem coleções, servem de cofre, de baú de segredos, de espelhos.

Há os livros que são escolhidos para ficar na estante diante dos olhos do dono. Os que são vistos mais facilmente. Geralmente os xodós do dono. Na minha estante, estão nessa posição os livros de poesia. Olho sempre para eles sem esforço. E na prateleira ao lado, ficam os livros sobre a história do livro e da leitura. Ficam ali para que eu sempre possa lê-los e consultá-los, para citá-los e compreendê-los.

Livros são objetos múltiplos. São paralelepípedos que se conformam ao dono. Mas um livro é um livro é um livro. E o mais importante: livros são portais portáteis para o lugar onde coabitam a imaginação alheia e a do leitor. Cada um fazendo a sua proposta de festa.

água com sal
será que alguém poderia me socorrer? detesto gente chorona. fico apreensiva quando vejo aquele olho raso na minha frente. e angústia é uma coisa que me incomoda muito mesmo. angústia, ciúme, inveja e medo. chorei algumas vezes na vida. umas de raiva, outras de saudade. depois concluí que tinha saudades dos eventos, não das pessoas. e acho que isso é provisório, porque ainda não sofri a morte dos meus pais. nem dos meus avós. e os bisavós não me importavam muito. chorei quando eduardo levou o computador que compramos para nossa casa. não pela máquina, mas pela idéia de ter um lar. depois chorei porque devíamos ter nos separado antes. chorei quando bruno me fez raiva num bar, às quatro da manhã. chorei quando meu pai me chamou de vagabunda quando me viu beijando na boca a primeira vez. chorei quando alguém não quis me namorar dizendo que eu tinha um beijo muito lascivo. chorei quando meus ex-alunos me abraçaram. e quando meu livro de poemas chegou numa van da transportadora. chorei quando vi meu pai chorando. e quando o abracei, solucei junto com ele. chorei quando meu irmão furou o olho esquerdo, aos 18 anos. chorei porque odiei o sofrimento dele. e quando me formei no pré-primário. quando o brasil ganhou o tetra. quando daniel voltou com a namorada. quando edu foi-se do aeroporto. quando alguém disse que me amava e eu não podia dizer nada. chorei até secar. mas ainda umas canções me enchem os olhos dīágua. ultimamente até flávio venturini me faz pôr umas lágrimas. e só assim.

Conto
de repente me abateu um cansaço. parei e sentei numa pedra amarelo-ovo. quase caí pro lado de lá. mas nada me atingiria. fiquei me lembrando de amigos com os quais eu gostaria de dividir o fim do mundo: mendel, rabelovix, ralph [tocando guitarra numa fogueira indígena], bono. glasgow e kinsey não seriam convidados, porque nunca me esquecerei de que me abandonaram quando viraram um casal. os casais costumam ser nojentos assim mesmo. e se lembram dos amigos depois que o amor, subitamente, acaba. o fim do mundo eu também dividiria com ximite, e faríamos poemas sobre o apocalipse [que ele jura que é feito de lascas e filhos]. bono diria que o fim do mundo é amarelo e fica dentro de uma galeria, na área central da cidade. e onde é meu centro? apenas rabelovix sabe a delícia de comer banana nos inícios de noite. e quase não há mulheres nesse meu fim de mundo.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 5/11/2003

 

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