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Quarta-feira, 19/11/2003
Saudade...
Ana Elisa Ribeiro

Todo mundo já teve a experiência de uma dor-de-cabeça aviltante, daquelas que pulsam como astros celestes, fazem doer como se fossem implosões.

Uma dor dessas, dizem, serve para sinalizar algo de errado nos mecanismos do corpo. A experiência da dor que pulsa mais quando se pisa o chão também é comum. Subir escadas, dar passos em qualquer direção, correr: nem.

Foi nisso que eu pensei quando falava, dia desses, de saudade. Era um sentimento, talvez mais uma sensação, que queria ser mentira, mas não me deixava em paz. Uma ganância elegante duma pessoa que não estava, que eu nem sequer alcançava com uma chave de pernas. Alguém que eu queria ver, mas era mais que isso, porque quando fui checar as fotografias, não me satisfiz. Então era alguém que eu queria tocar, bem perto, mas aí tive a experiência da impotência. Amarguei momentos de tristeza fina, polida, quando pesquisava em minha memória e não acessava mais o rosto, o sorriso, o movimento. A memória não salva o mover.

Então quanto mais eu pensava, mais eu me lembrava. E quanto mais isso, mais um pulso de dor, uma coisa embolada que me dava uns carunchos por dentro. Ruim. Disseram simpatias: pra deixar santo antônio de cabeça para baixo, tomar chá de cogumelo com rosas cor-de-rosa, dormir do lado direito, não molhar a cabeça quando estivesse menstruada. Não fiz.

E a saudade pulsando. Fel Plus. Ferpa. Imodesta. Eloqüente. Abrasivamente colocada. Disseram que era bom sinal. Não vi. Não sei. Nos outros não dói quando a pimenta é no meu olho. Mas saudade é uma dor-de-cabeça que começa num efeito conquistado e termina vendo o ônibus sair na rodoviária. Aquela carinha mal-ajambrada retendo lágrima. Tem que ser forte, porque isso vai se repetir. Entre nós, um mapa. Coisa pequena perto de tanta desgraça do mundo. Há quem tenha até a morte entre os dois. E eu reclamando...

Olha a saudade aí, ribombando. Em paz comigo, digo ao santo antônio: tem dó. Arrisco um impropério. Vai que ele me pune. Então dou logo um beijinho nas saias do santinho. Era impulso. Mas meu "amigo" urge, lá na outra ponta do estado do Rio. Saudade me consome. Mas quando eu o vejo, suor frio: parece que a saudade deu metástase e fez casulos auto-reprodutivos duma coisa boa que explode no abraço de "Oi, como eu te queria!"...

Mesa e banheiro de mulher
Quando algumas mulheres se juntam numa mesa de bar, as conversas são muito calorosas e interessantes. No caso das mesas de bar em que estou com algumas mulheres, a coisa fica mais evidente. Talvez porque não sejamos mulheres "comuns", que procuram mesas de bares da moda ou que disparam olhares e decotes para todos os lados na intenção de "ficar" com alguém. As mulheres com quem saio e vou pro bar querem investir em si mesmas, querem falar de conquistas, querem falar de dinheiro e saldo, querem falar de boa música. Mas há um assunto que não falha: homem. Porém não falamos de rapazes que usam tênis da moda e nem de garotos metidos a bons cafajestes. Falamos de homens que pensam. E quando não pensam, também acusamos isso. O que é digno de nota. E hoje falávamos na falta de sensibilidade de um rapaz que não soube estar ao lado da namorada num momento difícil: a morte do pai dela. Mesmo durante o turbilhão de doença, morte, velório, cremação, missa de sétimo dia, tudo o que o moço sabia fazer era contar há quanto tempo não fazia sexo e cobrar da namorada uma atitude. Ao que ela respondeu com decepção e lágrimas nos olhos.

Outro assunto digno das mesas de bar é a troca. No prontuário dos candidatos a namorado há um item que avalia "por que tipo de coisa ou evento ele me troca". Unanimidade na maior perda de pontos é o futebol. Se ele me troca por futebol, seja um jogo na tevê, no estádio ou a famosa pelada de sábado, perde muitos pontos. A não ser que a moça resolva vestir a camisa, literalmente. Conheço moças que passaram pro time do cara, interessaram-se por futebol, tudo na tentativa de virarem companheiras do cara. E vão assistir às peladas e ficam torcendo para que o namorado faça o gol. E eles fazem e o dedicam a ela, na arquibancada. E ela, orgulhosa, olha pras outras namoradas como quem diz "Não é uma graça?!". Eu digo que não, não é. Conheço moças que vão tomar cerveja com o moço depois da pelada e tentam entrar no papo. E falam dos "pombos sem asa" e das "bicicletas" com quase nenhuma propriedade. E se o próximo namorado for lutador de sumô, elas subitamente passarão a adorar o esporte sexy. E se for degustador de vinhos, elas serão enólogas. Ou enófilas, no mínimo. E sei também que muitas vezes essas moças entram nas ondas dos caras para vigiá-los. Ou ninguém sabe que ir à pelada, ir ao estádio e beber cerveja junto pode ser uma ótima maneira de fiscalizar? E quando me sento na mesa de bar com meus amigos, ouço alguns reclamando: "Não agüento mais minha namorada indo em tudo. Tem hora que quero vir ao bar sozinho, bater papo com os amigos". Questão de espaço de manobra. Não é nem de sacanagem.

No meu prontuário, me trocar por pelada é fatal. Mas o engraçado é que me trocar por ensaio com a banda de rock não é. Eu até concordo, gosto e tenho que me cuidar pra não ir junto, pra não virar vocalista da banda. Tenho que me cuidar pra não ficar curiosa e acabo indo pro bar falar de literatura, outro assunto que me apetece horrores. Curiosamente, 80% dos namorados que tive tocavam guitarra. E bem. E eu adorava. E continuo achando que esse é um quesito importante. Outros tantos eram escritores, mas isso não me dava tanto tesão. Talvez porque falássemos coisas muito semelhantes e eu não me realizasse em outro setor. Eu me realizo como escritora, eu mesma. Já como musicista... não. Então gosto quando o cara me realiza por meio dele. Coisa de maluco.

Me trocar pela pelada de sábado me enche o saco porque sou egoísta. Não gosto de futebol e aquilo me aluga. Mas me trocar pelo ensaio com a banda me deixa até feliz porque prefiro ganhar um solo de guitarra do que um gol. E não viro fã de banda de axé só porque o namorado toca isso. Até porque se ele tocasse axé, não seria meu namorado. Já vou mesmo nos guitarristas de rock, de blues, de jazz... que sei que vou curtir. E nem preciso vigiar ou fazer manobras para conhecer tudo sobre rock. Não preciso vestir a camisa, porque sou fã de música boa desde criança. O que torna as coisas muito mais autênticas. Ou não é?

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 19/11/2003

 

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