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Sexta-feira, 14/11/2003
Geração abandonada
Eduardo Carvalho

Uma geração quase abandonada

Existe - mas conserva-se em compreensível silêncio - um estilo de gente, que tem hoje mais ou menos entre 18 e 25 anos, no qual deposito minhas esperanças de que o mundo, se continuar por esse caminho, um dia será melhor. E emprego esse clichê despreocupado, porque, se a frase é batida, o conteúdo não é. Não me refiro a uma espécie de jovem universitário engajado em movimentos sociais, que, com a confiança de quem já tudo sabe, pretende distribuir "consciência" ao resto da população - e que, depois, veste a camiseta anunciando: "eu faço", "eu participo", "eu aconteço", etc., "e você?". O silêncio desses seria, em muitos casos, compreensível; mas eles preferem gritar. Escrevi "estilo de gente", na verdade, por falta de expressão melhor. Essas pessoas não se encaixam num simples modelo de personalidade. Não compõem um grupo específico, nem participam de outros isoladamente. Por isso - por não haver unidade entre os seus membros -, eles não esperneiam em conjunto. Conservam-se em compreensível - e compreensivo - silêncio.

Depois dos hippies dos anos 70 e dos yupes nos 80, a tendência foi, nesta virada de século, a da divisão da juventude - escrevo assim, "juventude", insisto, involuntariamente - em tribos: dos skatistas, dos surfistas, dos clubers, dos esportistas, dos nerds, etc. Essa superficial segmentação do mercado potencializa a eficiência da estratégia mercadológica das grandes empresas, garantindo, ao mesmo tempo, a ilusão de pesonalidade de quem adere a esses clubes, ou, se quiser, segmentos. Mas o que os separa é, na maioria dos casos, apenas o estilo que assumem. Muda a embalagem: o conteúdo, porém, continua igual. Não é, entretanto, repito, sobre mais um desses grupos que escrevo. Não é possível distingui-los pela roupa que usam - nem mesmo pelas opiniões que emitem, ou pelos gostos que cultivam. Porque nunca são iguais. Se precisasse definir, com um único adjetivo, esse estilo que pretendo explicar, eu ficaria quase sem opção, mas depois soltaria: são pessoas civilizadas. E entre 18 e 25 anos, o que, convenhamos, não parece fácil.

E menos fácil ainda: não são vovôs com espinha na cara, usando bengala antes de aprenderem a andar. Mas também não são universitários de barbicha e lenço no cabelo, amarelos e secos, que estufam a barriga com a cerveja da "facu". É mesmo difícil reconhecer essas pessoas exclusivamente pela aparência - talvez porque elas estejam menos preocupadas com ela do que nerds fechados e universitários típicos. Evito esse tipo de adjetivo, mas continuemos: os nerds marginalizam-se socialmente, procurando segurança, por exemplo, em jogos de cartas ou eletrônicos, praticados quase que exclusivamente pelos companheiros de turma. O político de faculdade, ainda organizando passeatas e movimentos, alegando lutar contra misteriosas forças do Mal, está, por sua vez, deslocado do tempo: e discursa como se o mundo estivesse congelado desde os anos 70. A imensa maioria de quem nasceu aproximadamente 20 anos atrás está, então, digamos, ou perdida no espaço - se isolando dos assuntos comuns -, ou perdida no tempo - vivendo, em 2003, um saudosismo ingênuo, que empaca o pensamento atualizado.

Não gosto também de dizer "jovens" - como se estivesse distante dessa fase -, mas sou obrigado a escrever assim. E, de fato, o assunto é este: reparei que existe, na minha geração, pessoas que, por mais diferentes que sejam, reúnem certas características em comum, combinando qualidades impossíveis nas gerações anteriores. Nossos pais não viveram uma época tão interessante e estimulante: que, de um lado, pela sua complexidade, provoca a inteligência atenta, e de outro controla a ansiedade com inúmeras possibilidades de diversão. Há uma minoria lúcida que, informada e educada, foge das tribos promovidas pela MTV, e descobre estimulantes idéias para pensar e aproveitar a vida.

Minha geração - essa mesma, entre 18 e 25 anos - tem uma exclusiva oportunidade nas mãos, que pode ser aproveitada se reconhecida. Não precisamos, em muitos casos, começar a trabalhar cedo, porque o mercado não exige, as faculdades não estimulam e os pais não obrigam. A ciência aplicada à tecnologia ainda revolucionou a telecomunicação, ampliou as opções de entretenimento, encurtou e barateou viagens. Os debates atuais são, depois da Guerra Fria, mais complexos, e há também disponível, para acompanhá-los, mais informações úteis - se bem escolhidas e articuladas. Edições de livros de qualidade, clássicos e contemporâneos, saem constantemente, e pode-se também comprá-los de casa, no idioma que interessar. Assim como as melhores publicações estrangeiras estão cada vez mais presentes nas bancas brasileiras - e todas oferecem assinaturas a países distantes, como o Brasil. Escola e universidades de outros países são também cada dia mais acessíveis, o que promove, mesmo que casualmente, um intercâmbio cultural direto, para quem estuda em outro país. Eu poderia aqui, se achasse necessário, me estender indefinidamente, listando novidades impressionantes mas às vezes esquecidas, por quem prefere sempre resmungar da vida contemporânea e idealizar décadas anteriores.

Às vezes esquecidas, porém: e às vezes, ainda que raramente, lembradas. O que distancia o estilo de jovem - oh, de novo - que elogio do resto que se desperdiça é, em primeiro lugar, a curiosidade pelo mundo; a excitação em descobri-lo e entendê-lo, revirando o tapete e fuçando em buracos; sempre, porém, com uma capacidade crítica ligada, que lhe permite pensar com uma cabeça própria e aberta sobre o que vêem e aprendem. E em segundo lugar: essas pessoas percebem o que de positivo as novidades tecnológicas agregaram, e divertem-se com o que elas oferecem de bom. A novidade, então, desse estilo de jovem que descrevo não é apenas a sua relação de permanente deslumbre com o mundo, nem a sua rara capacidade de descobri-lo e aproveitá-lo. Isso, de certa forma, sempre existiu. O que é novo é a combinação desse espírito vigoroso e atento com um mundo em plena fase de transformação, apresentando características únicas e oportunidades inéditas.

Posso citar inúmeras pessoas com quem convivo, ou a quem fui apresentado, ou de quem assisti aulas, como exemplo desse tipo de pessoa. Não são, claro, a maioria. Mas existe. E não são poucas, considerando o barulho que fazem - quase nulo. São casos que as novelas ignoram. Os seriados não retratam. De gente que não faz tipinho. Que cursa Economia na faculdade e lê sobre a história da música erudita. Que joga tênis, squash, pedala - e conhece todos os filmes de Bergman. Que trabalha num banco de investimento em Nova York e lê Thomas Mann - em alemão. Que sabe quais são as diferenças, geográficas e econômicas, entre Botsuana e Congo. Que pode indicar os melhores restaurantes de Corumbá a Berlim. Que acompanha os avanços da biologia molecular na Nature e os assuntos internacionais na Foreign Affairs. Que estuda Finanças e Astronomia. Que conhece os porões do Brasil - e o centro do mundo. E circula por eles com natural desenvoltura. Sem cometer generalizações como "o mundo lá fora" - como se só houvesse um. E sem admirar absolutamente o Brasil, com aquele sutil e arrogante argumento de quem acha que conhece o resto do mundo - dizendo que "lá fora", mais uma vez, nada é tão bom assim.

Assisti recentemente, por exemplo, ao curso A História da Música Ocidental, lecionado dentro de uma Escola de Administração de Empresas. O professor não tem ainda trinta anos. Não é comunista nem usa óculos. Usa tênis - e fala com propriedade sobre Brahms, Chopin, Mozart, etc., passando por Teoria da Composição e Filosofia da Estética. Sem ser gozadinho - como professores de cursinho - ou pedante - como são vários na universidade. Estou agora freqüentando um curso intitulado A Filosofia do Belo: e o professor poderia ser confundido facilmente, pela aparência, com um analista de mercado do Credit Suisse. Quer dizer: pela imagem, apenas, não se discrimina esse estilo, de gente interessada em arte sem óculos de aros grossos, e em cultura sem ser necessariamente "de esquerda". Conheci, como outro exemplo, em Varsóvia, uma elegante polonesa que havia dedicado sua tese de Mestrado, na cidade do Porto, em Portugal, a Machado de Assis, por quem é fascinada. E que agora, de volta à Polônia, pretende se inscrever num curso de Economia e Finanças. No seu comentário sobre o meu último artigo, enviou a maravilhosa introdução de Proust a O prazer da leitura. Outra amiga canadense, por exemplo, loira e alta, linda, é capaz de recitar Byron e Shakespeare, e conhece detalhadamente Koestler e Dosteievsky. Os exemplos são inúmeros - mas pontuais, porque, como disse, não se trata de um fenômeno generalizado, nem no Brasil nem no mundo.

Reforçam, contudo, a idéia de que essa dicotomia que ainda existe, e começa nessa idade, entre "artistas" e "economistas", "cientistas" e "literatos", etc., precisa acabar. Não se pode mais haver espaço para essas separações forçadas, grosseiras, de tribos, de grupos. E o que essas pessoas às quais me refiro perceberam é que não compensa, por mais forte que seja a pressão da turma, espremer sua personalidade em tribos da moda, assumindo as opiniões do momento. Melhor procurar alternativas a esses estilos tribais: e alternativa é o que, hoje em dia, não falta - se procurada nos lugares certos.

É o que eu precisava, há algum tempo, dizer, já que ninguém dizia: estou positivamente impressionado com certas pessoas da minha geração. Não com a geração em si, claro, separada em guetos e afogada num discurso comum. Com seus membros, na maioria das vezes, alheios aos assuntos atuais, seja porque isolados no espaço ou desencontrados no tempo. Mas tenho convivido, ultimamente, com pessoas da mais fina categoria, antenadas em tecnologia e cultivadas pela literatura, com quem se pode manter uma conversa longa e variada. Passando pela nova safra de contistas brasileiros e pelas publicações de Steven Pinker. Por distantes viagens internacionais a cantões perdidos pelo Brasil. Por fundos de private equity à expansão da fronteira agrícola brasileira. Pela política monetária americana aos lançamentos da música contemporânea. Por comparações de estilos entre tenistas a comparações entre a prosa de escritores russos e franceses. Etc. Mas se o mundo, mesmo assim, ao contrário do que afirmei no início, não melhorar, então pelo menos a conversa - e a vida -, de certas pessoas, já melhorou. O que, como consolo, já é um começo.

Eduardo Carvalho
São Paulo, 14/11/2003

 

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