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Quarta-feira, 10/12/2003
Insatisfação
Ana Elisa Ribeiro

Às vezes eu me pergunto o que deve ser "estar satisfeito". Talvez eu tenha lembranças vagas dessa sensação. Talvez esteja confundindo com alguma coisa similar. O fato é que estar "satisfeito" se parece, às vezes, com algo insuficiente. Alguém que não está bem o suficiente para estar feliz ou coisa do tipo. Então, está satisfeito. Mas, ao contrário, diz-se que alguém está satisfeito quando terminou de comer e não deseja repetir. Mas também diz-se que essa é a palavra mais elegante para quem quer dizer que está "cheio". Então penso: estou cheia. Coisa de quem está cansado, não agüenta mais. Estar satisfeito lembra alguém que ostente certo sorrisinho permanente. Algo de acomodação. E tenho pensado que se vive melhor nas crises. Mas é que às vezes dá uma tremenda saudade de estar satisfeito. Algo que descanse, que faça esquecer das turbulências. Fazer alguém ficar satisfeito implica encurralá-lo numa cortina de fumaça cremosa. Vida mansa, pacata, alheia. Ficar satisfeito parece coisa para lá de efêmera. Ou eu vivo numa crise quase química. Ou eu vivo, de fato, o que me acontece. E qualquer coisa que eu saiba, que eu veja, que eu pense, pode ser o que me acontece.

Ficar satisfeito com salário é uma coisa quase da alçada do impossível. Qualquer tanto que seja dá vontade de mais. E qualquer qualificação a mais dá vontade de subir mais alto. Acabar de escrever um livro é, de fato, impossível. Não conheço autor satisfeito. O livro fica pronto porque a editora tem prazos, impõe prazos, marca datas. E o autor tem que parar de escrever um dia. Tem que se dar por... satisfeito. E quando o livro chega, o autor o toma nas mãos, lê e pensa: que merda. Ficar satisfeito com o Brasil é algo altamente complexo. O amor por esta terra é da esfera do mistério. Mas é um amor grande. Algo que mistura insatisfação com esperança, e certa dificuldade freudiana.

Ficar satisfeito com a vida costuma dar escaras. E ficar insatisfeito... produz lesões por esforço repetitivo. Fico observando os cachaceiros do bairro e penso: como pode? Como trabalha? Como paga o aluguel? E depois me contam que ele não paga o aluguel. Passa a vida no bar, correndo do dono do apartamento em que é inquilino. Eis o segredo: ser um insatisfeito bêbado.

Psiquiatria barata
Os hipertímicos são pessoas muito inteligentes, ativas e costumam alcançar sucesso profissional. No entanto, a hipertimia é uma categoria psiquiátrica. As pessoas classificadas assim, quando surtam, são capazes de terror. E de suicídio.

Trabalho numa sala bege sem janelas. Isso me oprime como o quê. Às vezes há o som do computador, mas o Kazaa sugou de volta a música do Flávio Venturini que me fazia chorar. Então não sinto mais qualquer emoção nesta sala, nesta tarde. E isso me deixa emocionada como o diabo. Finjo que estou sentada numa mesa com meus amigos virtuais. E não estou. Nem sempre finjo bem.

É um ritual: todos os dias faço tudo sempre igual. O capuccino da manhã, os olhos inchados, a fome de carne de porco, a voz da empregada, o "vai com deus" de mãe, o kadron do carro, o calor, as avenidas e o viaduto da floresta. Vejo os mesmos prédios e os mesmos meninos que brincam com fogo no sinal, como Ximite. E entro num estacionamento grande que pago todo mês. A moça simpática me dá um papel e a cancela se abre pra mim. Coloco o carro sempre no segundo andar, numa vaga que já me conhece. Trava, alarme, som. E a moça da cancela já conhece o repertório que toca no meu carro: hoje era sarah vaughan.

Hipertímica, cansada, enjoada, estressada, ferrada. Hoje me deu uma vontade insuportável de entrar numa cena de filme. Acelerei o carro pra ouvir o ruído bonito do motor e quis atravessar a cancela, quebrá-la como nos filmes. Arrancar tudo e ver a madeira ir pelos ares. Não sei o que me faltou ou sobrou que não fiz o que me pedia o desejo. Entrei civilizada, boa moça, sem escarcéu.

Mas preciso dum escarcéu ainda hoje. Uma escalada no prédio mais alto, na serra do curral, pular do acaiaca pra ver os bombeiros com as mãos na cintura. Os passantes tapando meu sol com a peneira. Eu voadora, como quem diz: se liga.

Trabalhar numa sala bege sem janelas e esperar as cancelas se abrirem para passar não é vida. Vida é aquela moça com problemas psiquiátricos que descobriu que ficava muito melhor se tomasse um engradado de cerveja por dia. E ficou.

Conto
e se. se eu saísse na playboy, pediria pra vir me ver um fotógrafo desses bem ruivos. sempre achei que os ruivos chamam a atenção. eles, sim, me lembram velas. e esse meu fotógrafo ruivo poderia me dirigir como um cineasta, pra fazer do comum alguma cena antológica. pediria a ele que me deixasse de pé, pra parecer mais agressiva. os ombros adiantados, a anca evoluída, as pernas tesas, o olhar proponente. mas se ele me pedisse pra ficar de quatro, obedeceria sem timidez. imagine que ele veria coisas que eu mesma nunca vi direito. mas seria ele um ruivo, e mereceria. pediria a ele uma foto de perfil, à moda dos presidiários. que ficasse à beira de mim pra que eu lhe mostrasse meu bico de modelo sexy. fotografia de menina ladeada por almofadas. pufes embaixo da anca de metro e um centímetro. as pernas abertas pra mostrar os abismos. os cabelos soltos, pretos, sem tintas, escorrendo pelas espáduas, à maneira daquelas três ou quatro índias que se aproximaram das naus portuguesas. talvez o fotógrafo ruivo exclame "das vergonhas saradinhas", e nem tão aparadinhas assim. ontem eu lia sobre hirsutismo num livro de ginecologia ambulatorial. e acho que sou 1 ou 2 na escala de Ferriman & Galleway.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 10/12/2003

 

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