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Quinta-feira, 11/12/2003
Don Quixote Americano, de Richard Powell
Ricardo de Mattos

"Por mais que a vida me doa
O Ai, vida minha,
O Ai, vida boa
Eu ando sempre à vontade
E nunca me canso
E assim continua
"
(A Vida Boa, de Pedro Ayres Magalhães)

São muitos os ramos da família Quijano espalhados pelo mundo. Até no Brasil pode-se apontar Lucas Procópio como um - mas não o único - dos descendentes directos do fidalgo manchego estabelecidos n'estas bandas. Do ramo russo brotou o triste príncipe Michkin e seu antípoda Tartarin de Tarascon viu a luz em solo francês. Cada leitor lembrará de mais dois ou três. Com a nova tradução de Don Quixote U.S.A. escrito por Richard Powell em 1.966, é por aqui reapresentada a figura de Arthur Peabody Goodpasture. Reapresentada, pois outra editora já havia editado este livro com o título Um Dom Quixote Moderno. Todas estas obras atestam o impulso despertado pelo romance de Cervantes em alguns escritores de criar um personagem similar. A inclusão de mais um galho na arvore genealógica cujo tronco é Don Alonso pode ser perigosa. Se ao escritor faltar talento, será ridicularizada sua pretensão em equiparar-se ao espanhol; se sobrar-lhe, será um desperdício destiná-lo a uma adaptação.

Apesar dos pontos de contacto, o desempenho do personagem principal de Don Quixote Americano lembrou-me mais o Cândido. Todavia há paralelos claros. Tanto Don Alonso Quijano quanto Arthur Peabody Goodpasture vivem com o corpo n'um lugar e com o espírito n'outro. A loucura (?) do fidalgo fê-lo acomodar-se no antigo mundo da cavalaria andante e viver uma síntese de tudo quanto leu. Creio que um estudioso dos enredos medievais não encontrará poucas referências a outras obras. De qualquer forma, nada mais era feito por Don Alonso, mas por Don Quixote. Já o agrónomo Arthur é o cidadão de um país civilizado (?) ingresso n'um Corpo de Paz e que viaja para a fictícia ilha caribenha de San Marco e n'ela mantém, do começo ao fim do livro, sua mentalidade de origem. Um democrata pregando a democracia no meio de um país no qual as ditaduras sucedem-se e o líder revoltoso de hoje é o ditador de amanhã. Um defensor do trabalho querendo disciplinar uma nação de indolentes. Nada impede encontrar aqui uma sátira à política norte-americana das décadas de cinqüenta e sessenta do século passado, nas suas relações descompassadas com os países centro e sul-americanos.

O humor presente no livro é equivalente ao encontrado nas comédias de Woody Allen. Inclusive seu filme Bananas (1.971) foi baseado n'ele. A base do humor é a completa alienação do personagem no tocante ao que se passa em torno de si. Escapa de todas as armadilhas não por descobri-las e planejar a saída adequada, porém por mero desenrolar dos factos. Quando tramavam seu seqüestro por oficiais russos, sua semelhança física com o guerrilheiro El Gavilán faz este ir embora no seu lugar. Quando imagina estar liderando um movimento de reforma agrária - pois é sua ideia tirar a força utilizada n'uma revolução para empregá-la no cultivo de banana nanica - os rebelados estão apenas organizando com maior eficiência o movimento libertário. Convencem-no de que uma ou outra medida é provisória e sem maiores conseqüências - "Não se faz a omelete sem quebrar os ovos" - e quando ele dá por si, é o novo ditador de San Marco. Por maiores que sejam as traições e atentados o personagem não perde seu optimismo. Daí porque entendo caber-lhe perfeitamente o trecho da música A Vida Boa, interpretada pelo Madredeus, citado na epígrafe. Don Quixote volta derrotado para casa, onde morre após a última batalha. Arthur Goodpasture obtém uma vitória sequer pretendida quando chegou à ilha.

Arthur encontra sua Dulcinéia Del Toboso na rústica Conchita, e nesta rusticidade encerra-se a semelhança entre elas. O menino Pepe foi criado para ser o escudeiro de Arthur, porém do glutão Sancho Pança conserva principalmente a malícia. Não se deixa de mostrar a mesma seqüência de sentimentos nos dois escudeiros: interesse, proteção interessada, afeição. Não foi prometido a Pepe nada além da gratificação em dinheiro por cada vez que salvasse a vida de Arthur. Os pontos de contacto entre as duas obras são vários, mas no fim o melhor é ler Don Quixote Americano sem esta preocupação.

Para ir além





Ricardo de Mattos
Taubaté, 11/12/2003

 

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