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Terça-feira, 23/12/2003
Mongólia: terra estrangeira
Fabio Silvestre Cardoso

Durante dois meses, o jornalista e escritor Bernardo Carvalho esteve na Mongólia com uma bolsa criada em parceria da editora portuguesa Livros Cotovia com a Fundação Oriente. O resultado desse "trabalho de campo" aparece agora com Mongólia, editado pela Companhia das Letras. O livro é uma espécie de diálogo entre dois diários de viagem travado entre um fotógrafo desaparecido e um diplomata (Ocidental) que tem a incumbência de trazê-lo de volta ao Brasil sem que seja criado qualquer alarde internacional. Uma terceira pessoa importante nessa história é o narrador, também diplomata, que passa a se interessar pelos diários do Ocidental muito tempo depois, quando recebe a notícia da morte deste logo no início do livro.

Num primeiro momento, o fato do autor ter viajado até o local onde se desenvolve a trama dá a impressão de que a obra pode privilegiar a descrição do lugar em detrimento da narrativa em si, sendo esta deixada em segundo plano. Entretanto, se por um lado o livro não deixa de expor as peculiaridades de um país distante da realidade ocidental, por outro, é correto afirmar que o romance aborda questões de alta densidade, como choque de culturas e as relações humanas delicadas.

Verifica-se, aliás, que a presença de Bernardo Carvalho na Mongólia foi condição imprescindível para a concepção do romance. Isso porque há alguns detalhes no livro que só quem esteve no lugar poderia contar com tamanha precisão no que se refere aos costumes do povo local, como: "[o guia] trouxe uma Polaroid e me sugere fazer uma foto da família. Basta falar em foto para que todos [os nativos] desapareçam. E em cinco minutos estão de volta, os adultos vestidos com 'dels' e as crianças com trajes de domingo, que reservam para ocasiões extraordinárias".

Quanto ao aspecto geográfico, quando o autor escreve sobre a paisagem e as estepes fica evidente a referência ao romance histórico Taras Bulba, do escritor russo Nikolai Gogol (1809-1952). "Na Mongólia, a terra reflete o céu. A sombra das nuvens corre pelo deserto e pelas estepes. O céu está sempre tão perto. A paisagem não se entrega. O que você vê não se fotografa". E, com efeito, as referências são as mais diversas possíveis. Além disso, surgem outras análises como "pano de fundo", mas que parecem ser o tema principal do romance por algumas páginas.

No entanto, embora as discussões sobre cultura, religião e política sejam feitas, o objetivo do Ocidental é encontrar o fotógrafo desaparecido. Aqui, é notável o momento em que um dos guias tenta lhe explicar sobre nômades e lugares: "Num país nômade, por definição, as pessoas nunca estão no mesmo lugar. Mudam conforme as estações. Os lugares são as pessoas. Você não está procurando um lugar. Está procurando uma pessoa."

Pouco a pouco, o narrador proporciona o debate de impressões entre o Ocidental e o desaparecido. E é curioso notar que algumas das "teorias" são semelhantes. Assim, enquanto o primeiro diz: "O caminho só existe pela tradição. Decidir-se por um caminho novo ou por um desvio é o mesmo que se extraviar. E, no deserto ou na neve, esse é um risco mortal. Daí a imobilidade dos costumes". O segundo afirma: "O nomadismo em si não tem nenhuma graça. A mobilidade é só aparente, obedece a regras imutáveis e a um sistema e a uma estrutura fixos".

Apesar do livro possuir linguagem direta, sem períodos longos, é fundamental que o leitor atente para a forma com a qual os diários se intercalam, isto é, como eles completam a história de maneira que a obra não teria a mesma força sem eles. Ao final, Mongólia surpreende com um desfecho inesperado e que pode ser sintetizado numa frase capital do narrador: "A gente só enxerga o que já está preparado para ver".

Para ir além





Fabio Silvestre Cardoso
São Paulo, 23/12/2003

 

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