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Quarta-feira, 24/12/2003
Um enigma contra a muralha
Martim Vasques da Cunha

Mas como ele conseguiu? Era a pergunta que não queria calar - e que não calou durante esses setecentos anos - quando morreu em 1321, aos 56 anos de idade, exilado imerecidamente de sua cidade-natal, Florença. Se não fosse por Guido Novello ou Cangrande, teria passado por mais necessidades do que qualquer um dos outros homens que vagavam pela Europa do século XVI. Tinha se reencontrado com a família - a esposa Genna e os filhos -, estava prestes a terminar sua grande obra (um épico em terza rima que apelidara de Commedia), mas seu nome era conhecido apenas por uns happy few, e seria impossível imaginar que tudo o que escreveu, disse e fez ecoaria na história de seu país e afetaria profundamente o pensamento de todo um continente. Logo, a pergunta: Como ele conseguiu?

Porque, na verdade, ele não tinha nenhuma chance. Era uma prima donna desgraçada: temperamental, perfeccionista, arrogante, exigente consigo mesmo e com os outros. Tinha um inabalável senso de justiça - para ser exato, era completamente obcecado por ela, procurando-a nos mínimos detalhes, vendo-a ser vilipendiada na Florença de sua vida, onde a Igreja tentava conspurcar o poder do Estado e vice-versa, onde a devassidão moral e espiritual era constante. Entretanto, ele sabia que essa obsessão pelo justo, pela reta medida, pelo "dar a cada um o que é seu", só seria alcançada depois da morte, no momento em que o infame pagaria os seus pecados no Além. Isso deveria confortá-lo, mas aumentava somente a sua fúria, o seu poder de expressão em uma língua que ele sabia que unificaria o país, mas que seus contemporâneos a classificavam como "vulgar" ou "bárbara".

Contudo, não pensem que ele somente tinha rancor ou sofria de falta de compaixão. Beatrice Portinari cuidou deste problema. Ele a vira apenas três vezes em sua vida; a primeira aos nove anos de idade, a segunda aos dezoito e a terceira foi três meses antes dela morrer prematuramente, por causa dessas doenças que destroem qualquer espécie de inocência. Sim, é verdade que era esposa de outro homem e que o nosso enigma em questão nunca teve um contato, digamos, mais profundo com ela . Mas foi por sua causa que ele escreveu um singelo livrinho, que anunciava a vita nuova, e muitas rimas magistrais, além, claro, da Commedia, numa tentativa de, como o próprio escreveu, "que, se aprouver Àquele por quem todas as coisas vivem, que minha vida dure mais alguns anos, e espero dizer dela o que nunca se disse de nenhuma".

E não é que ele conseguiu fazer exatamente isso? Mas, e lá vamos novamente à pergunta, como conseguiu? Tudo bem, seus contemporâneos sabiam que dominava a arte do verso. Guido Cavalcanti e Ciro Di Pistoia, os mestres da época, o admiravam. E ele sabia de tudo, era uma verdadeira enciclopédia ambulante, de nariz adunco e rosto circunspecto. Não brincava em serviço: citava de memória ninguém menos que "O Filósofo" (seu apelido carinhoso para Aristóteles), sabia de cor e salteado a Summa Theologica de Sto. Tomás, observava a natureza através de uma ordem harmônica em que reinavam supremos o número três e seus múltiplos. Mas, acima de tudo, a justiça e a fé em Beatrice o guiavam, por caminhos misteriosos e, sobretudo, doloridos, como foi o que aconteceu com o exílio.

Porque, e de novo repetimos aqui, um exílio na vida de alguém impossibilita quaisquer chances de fazer alguém perdurar na memória da raça humana. E, sem dúvida nenhuma, Aquele que lhe aprouveu também lhe deu anos suficientes para sentir o aguilhão na carne que é o desterro de sua terra-mãe. Bem, é o que ocorre quando alguém resolve se envolver com política. Ele fez isso - e não foi um bom aprendiz. Envolveu-se com a casta dos brancos, ex-guelfos que queriam o Poder através da burguesia e não apoiavam o envolvimento da Igreja nos assuntos do Estado. Quando a facção rival - os negros, que também eram ex-guelfos, mas se aliaram à Igreja, ao papado de Avignon e ao reino francês - invadiu Florença e expulsou os brancos com um anúncio geral de degredo, obviamente o nosso enigma estava entre os escolhidos. Assim, peregrinou durante anos e anos, passando frio e fome, mas nunca parou de se aprimorar, de deixar os estudos. De fato, é nessa época que o exílio parece lhe dar uma forma definitiva em seus escritos - é o seu período mais produtivo, pois, além da Commedia e de suas rimas, escreve tratados filosóficos sobre diversos assuntos, que vão da política à lingüística, como Da Monarchia, Il Convivio e De Vulgari Eloquentia - mas é também quando sua alma fica cada vez mais atormentada, sentido o drama de sua vida com tal precisão, que não há outra maneira de ver a sua situação senão compará-la igual a um inferno. Não é a toa que, ao atravessar as cidades que se encontravam no seu caminho de done damned, como o que ocorreu uma vez em Verona, as pessoas apontavam-no com o dedo e segredavam: "Ele está no inferno". Anos depois, ao descrever o reino das trevas na primeira parte de sua Commedia, era óbvio que, apesar de nunca ter ido ao inferno numa visita factual, podia descrever com exatidão todos os seus tormentos porque, como bem escreveu Heinrich Heine em Über Ludwig Borne, "ele não os tirara da sua imaginação, ele os vivera, experimentara, vira e sentira. Ele estava de verdade no inferno, na cidade dos condenados: ele estava no exílio".

Por isso, a pergunta: Como ele conseguiu? Como esse sujeito, tão talentoso, mas também com tão pouca sorte, fadado a sofrer e não ter o seu sofrimento reconhecido por seus pares - lembre-se que, mesmo depois de sua morte, seus despojos ficaram em Ravena e não em Florença - se tornou, em menos de duzentos anos, o poeta dos poetas, o miglior fabbro que todos deveriam se espelhar para alçar um pouco da imortalidade que Deus dá aos seus abençoados? De alguma forma, apesar de todas as adversidades, ele conseguiu atravessar a muralha, a muralha daqueles que prostituem a cultura de uma nação, que infestam a política de um país com idéias que terminam em campos de concentração e que minam a substância espiritual de um povo. Ele é um enigma e, como o bom enigma, deixa a questão atravessar os séculos, como se a sua função fosse perturbar cada um de nós que olhamos o seu exemplo e percebemos que nunca seremos o mesmo enigma, o mesmo exemplo. Mas talvez seja isso a sua lição: a de que não devemos nunca desistir de perguntar, de inquirir, de buscar. Porque é provável que a solução para este enigma seja bastante grave e atinja algumas suscetibilidades, o que nos leva a ficarmos em silêncio por algum tempo, à procura de uma forma adequada para a revelação oculta naquela simples pergunta, que ecoa através dos anos: Mas como ele conseguiu? Como?

A solução de Gödel

Encontrei-me com Samuel Gödel. Mas quem é ele? Conheço-o pelo apelido de "Samuca". Gosta de ser chamado dessa forma, apesar de ser um sujeito com uma mente poderosa, um intelecto aguçado e uma nobreza invejável. Ser chamado de "Samuca" afasta qualquer possibilidade de considerarem-no um intelectual, uma vez que ele não suporta o tipo. Acredita que o intelectual é um sujeito fora da realidade, incapaz de pedir uma pizza ou cortejar uma bela moça. Samuca sabe disso porque, há muito tempo, viveu nesse meio, como jornalista e também tinha suas pretensões intelectuais. Mas, para o bem da sua sanidade mental, desistiu dessas ambições vãs a tempo e por um simples motivo, como ele me explicou:

- Escrevia por pura vaidade. Era nada mais, nada menos por competição. Queria escrever bem para provar aos meus amigos que escrevia melhor que eles. Mas depois escrevia por causa das mulheres. Elas caíam no meu colo toda vez que lançava um livro, uma crônica, um artigo no jornal. Chamavam-me de gênio. E eu acreditava nisso. Mas vi que nada daquilo tinha uma finalidade. E então que escrevia por pena, por pura caridade de mim mesmo, o que é algo patético. Decidi que pararia por aí. Nunca mais escrevi desde então.

E ele cumpriu a promessa. Durante quinze anos, Samuca se manteve fiel à sua decisão. Encontrava-o sempre na mesa de um bar, pensativo, pronto para um comentário irônico sobre a vida, fumando um cigarro e com um livro à mão, alegando que era ali que praticava "a enigmática arte da desaparição sufi", seja lá o que for isso. Era um mistério encarnado: recusava-se a falar de literatura e, toda vez que se deparava com um problema complicado, não hesitava em ficar parado no meio da rua, sem se importar com os outros pedestres, ruminando sobre a questão que o intrigava. Assim, na semana passada, depois de ter lido o meu artigo sobre aquele enigma que me intrigava, aproximou-se de mim e, falando de modo suave, intercalando o silêncio com a fala pausada para fumar e tragar e soltar a fumaça de seus Gitanes sem filtro ("minha marca de estimação nos momentos de desespero", diz ele), me disse que tinha a solução para a minha intrigante pergunta:

- É tudo muito simples, meu amigo, porque a partir do momento em que você formula a pergunta, encontra-se também a resposta. É um axioma na filosofia, praticamente consistente. Você pergunta no seu texto, sem dar nomes aos bois, como um determinado sujeito conseguiu atravessar a muralha da incompreensão e da iniqüidade de sua época. Ora, a resposta está no próprio como.

- Como assim?

- Permita-me explicá-lo?

- Obviamente...

- Como disse, a partir do momento em que se formula uma pergunta, a resposta está dentro dela, grávida de todas as suas conseqüências futuras. Mas há também as circunstâncias que o levaram a fazer aquela pergunta e, antes de tudo, devemos ir atrás delas, para enfim alcançar a verdade, que jamais pode ser refutada.

- Perfeitamente, meu caro Samuca.

- Logo, quais são as circunstâncias? Afinal de contas, são elas que criam a tal muralha, estou certo?

- Correto.

- Vamos transpor o seu problema ao nosso tempo. Assim, a questão "Como ele conseguiu atravessar a muralha?" torna-se mais atual e concreta. Dessa forma, a pergunta muda totalmente de rumo; agora ela é: "Como alguém pode atravessar a muralha nos dias atuais?". Não acha que ficou mais complicado?

- Talvez...

- Pois acho que ficou mais simples. Bem, o que seria essa muralha nos dias atuais? Você sabe muito bem que, neste país, rega-se qualquer samambaia com mijo. Perdoe-me a grosseria da expressão, mas não posso escapar à verdade. Aqui ninguém é avaliado ou aprovado por seus próprios méritos. Todos devem ter um amigo que os ajude ou um parente ou uma amante - em alguns casos, tanto uma amante como um amante - para subir na vida. Dão o apelido engraçado de "Q.I.", que não é o coeficiente de inteligência, mas sim o "quem indica", o que prova que a inteligência neste país é algo visto com olho gordo.

- Você acha?

- Mas é claro! Obviamente, isso é perfeitamente normal em um mundo em que a verdade foi jogada para escanteio, apelidada com o sobrenome de "relativa" e coisas afins. Inteligência e verdade têm um caso de amor e quando uma delas é posta de lado, tenha certeza que surgirá somente o ódio.

- Não acha que está sendo radical demais?

- Ah, o que é ser radical? - Samuca riu para mim, com seus olhos azuis mostrando uma benevolência insuspeita - É ir somente à raiz das coisas, na sua profundidade máxima. No mundo do jornalismo brasileiro, que reflete exatamente a pequenez intelectual do nosso meio cultural, ser profundo é apenas uma metáfora para a potência do ato sexual - e não estou falando do ato sexual entre homem e mulher, mas também de outras esquisitices que existem por aí. Mas, continuando com nosso enigma, o fato de que ninguém neste país é avaliado por seus próprios méritos leva até mesmo as pessoas mais nobres a procurarem os seus "Q.I.s", criando assim um interessante circulo vicioso.

- Mas você vislumbra algum motivo para isso? Acredito que possa ser algo que envolva a hegemonia esquerdista na mídia...

- Você está lendo muito aquele filósofo que, apesar de brilhante, descobriu um filão contra o pateta do Gramsci e o charlatão do Marx, e está batendo na mesma tecla. Não, isso não tem nada a ver com a esquerda. É apenas uma coincidência de afinidades que uma ideologia tão pusilânime agrade pessoas tão medíocres. Isso tem a ver com aquele sentimento que todo mundo possui, mas nega insistentemente: a inveja. Observe bem o que direi agora. Os mandarins do nosso meio cultural, sejam jornalistas ou professores ou artistas, criam pequenas muralhas ao redor de seus grupos de estimação simplesmente para protegerem suas invejas particulares. Eles não querem saber do novo ou daquilo que está fora do seu alcance porque têm medo, porque sabem que, durante esses anos, fundaram as suas mansões sob a areia e agora perceberam que tudo está prestes a desmoronar. A muralha é uma atitude de desespero e não de quem tem poder absoluto.

- Não estou entendendo, Samuca...

- E não é para entender mesmo. Os fatos que estão abaixo dos nossos narizes nunca são perfeitamente compreensíveis. Mas podemos intuí-los, senti-los na superfície das sensações e das emoções. O fato é que esses mandarins criaram mundos artificiais, divididos em pequenos bloqueios, protegidos por muralhas espessas em suas irrealidades. E qualquer um que tente furar o bloqueio, mantendo um pouco da sua integridade moral, terá dificuldades para se impor e é provável que consiga fazer isso somente após a sua morte.

- Então não há chance nenhuma para acabar com a muralha nos dias atuais? O meu enigma continua sem solução.

- Em hipótese nenhuma! A situação que você expôs e sua solução estão perfeitamente claras e cristalinas, como uma equação matemática, com suas regras e axiomas. O problema é que, para chegar a uma resposta minimamente consistente, temos de partir para algo imprevisível.

- Que seria?....

- Bem, vamos lá. Vou lhe contar uma história. Você se lembra do equilibrista na Marginal Tietê?

- Aquele que tentaram linchar e desapareceu sem deixar nenhum vestígio?

- Exatamente. O tal do equilibrista apareceu do nada em plena Marginal Tietê, caminhando no meio-fio do asfalto, sem se importar com os automóveis, com os caminhões e com as motos. Uma atitude verdadeiramente suicida. Ninguém sabia o seu nome, quem ele era, o que fazia, de onde veio - ou, pelo menos, ninguém se preocupou em saber essas informações. O fato é que o equilibrista começou a perturbar a população porque ele havia transformado o seu andar em uma arte. E você sabe muito bem que qualquer novidade irrita as pessoas. Elas não suportam que um ponto de interrogação fique em suspenso; querem respostas para tudo, como se isso fosse possível. Bem, da irritação surgiu a inveja porque, de uma forma ou outra, todos queriam andar na Marginal Tietê com a mesma desenvoltura, com a mesma graça. Então, com a ajuda das autoridades públicas, decidiriam que iriam matá-lo. Nunca vi um linchamento tão bem organizado. Cercaram-no na Marginal e começaram a apedrejá-lo, a cuspir no equilibrista, mas este sequer deu importância e continuou a andar no meio-fio. Subitamente, quando todos os meios de repressão se esgotaram, ele subiu num elevado, deu um sorriso de escárnio para todos e saltou para o nada - ou melhor, para a própria paisagem da cidade, que o sugou imediatamente. Procuraram o seu corpo no rio Tietê, nos prédios velhos, nos becos, mas não encontraram nada, absolutamente nada. Entretanto, depois a história fica cada vez mais esquisita: dois anos depois, em todas as escolas primárias da cidade, sem nenhum motivo aparente, crianças de seis a oito anos começaram a perguntar sobre o equilibrista. Quem era ele? Como foi a história? Por que ele desapareceu? Essas perguntas irritavam os professores e, consequentemente, as autoridades públicas. A solução foi criar uma lei - é impressionante como neste país todos acreditam que tudo se resolve com uma lei - que transformava a história do equilibrista em patrimônio público e assim os professores e os pais e os artistas e as crianças apelidaram o mesmo homem que, anos atrás, tentaram linchar, de "nosso querido equilibrista", "nosso amado equilibrista", "nosso brilhante equilibrista" e por aí vai.

- O homem que eles odiavam tornou-se parte essencial de suas vidas...

- Isso mesmo. Mas contei essa história porque ela tem semelhanças com o seu enigma: Como o equilibrista conseguiu fazer isso?

- Bem, você disse que a resposta estava no próprio como.

- E está mesmo. Repare que, em ambos os casos, as circunstâncias parecem tragar tanto o meu equilibrista como o seu enigma para fora de sua finalidade. Mas, de alguma forma, eles conseguem, independente dos obstáculos, independente da muralha criada pela inveja. Nossos mandarins culturais vivem em uma equação matemática perfeitamente cristalina, em uma realidade alternativa onde todos os princípios não admitem quaisquer contradições, mas, então, de repente, aparece esses dois pontos de interrogações que tornam tudo incompleto, sem solução, aberto às inúmeras possibilidades que estão além do seu alcance.

- E isso causa medo, muito medo...

- Sim, provoca medo em quem está na muralha, mas não em quem está fora dela...

- Porque a muralha é uma construção do desespero e não uma demonstração de poder...

- Você está tocando o the heart of the matter, meu amigo. Como o seu enigma e o meu equilibrista conseguiram furar a muralha e permanecer na memória da raça humana, sempre tão ingrata e temerosa do mistério? O como tem um nome, apesar de estar oculto igual a um caçador que sabe que sua melhor presa é também a sua única salvação. Chama-se perseverança e ela não é apenas uma virtude ou um valor ou - como afirmariam os baluartes do Festival de Besteiras que Assolam o País - uma verdade "relativa". É, antes de tudo, um dom. Não sabemos como se adquire, como se usa, como surge em nossas vidas. Mas é um fato que não precisa ser explicado, analisado, dissecado e sim sentido, em uma compreensão que ultrapassa a mera razão humana (ou melhor, cartesiana). O seu enigma e o meu equilibrista sabiam que tinham esse dom e que basta apenas um pouco de perseverança para destruir qualquer muralha. Claro que esse dom não deixa de ser uma cruz. Eles sabiam que seriam eternos exilados e que teriam de aperfeiçoar constantemente a arte da perda. Mas quem tem o dom da perseverança não desiste nunca e deve-se acostumar com o conforto do exílio. Ninguém vence a muralha se ele próprio não for um enigma, um recorrente ponto de interrogação, uma equação incompleta que chega para abalar tudo o que pensávamos conhecer.

- Realmente a sua solução é admirável, caro Samuca. Você deveria escrever a respeito disso, elaborar alguma teoria.

- Não, não, não. Já disse que parei de escrever há muito tempo. O que fiz aqui foi apenas uma mera exposição de uma verdade que muitos esqueceram e que poucos tem a coragem de usá-la para o seu próprio bem e dos outros. A vida não é justa, nem injusta, mas as pessoas têm a tendência de julgá-la conforme os seus próprios valores quando temos de aceitá-la como é. Contudo, um pouco de resignação não significa comodismo. A mesma vida que faz uma população linchar o coitado de um equilibrista também o transforma em um mito perturbador. Tudo é apenas uma questão de persistir na sua escolha, de aceitá-la em todas as suas conseqüências. Esse é o mistério e, ao mesmo tempo, a solução do seu como. E como eu decidi parar de escrever para não criar a minha própria muralha e deixar os outros serem as verdadeiras equações da incompletude, tenho de manter a promessa a mim mesmo. Porque não serei eu que destruirei a muralha. Deixo essa função a você ou a qualquer outro que tenha um pouco do dom da perseverança. E aqui termina a nossa conversa, meu amigo, sem antes de esclarecer o seguinte, para que vá em paz e não se atormente mais pelo seu enigma: se sua missão é resistir e inquirir o tempo todo, mesmo que isso machuque algumas suscetibilidades, a minha é lançar sementes para o futuro, sementes que brotam além da palavra escrita, como já fazia o mestre dos mestres na arte da perda que, aliás, tinha uma frase notável sobre o que acabei de lhe dizer, retirada daqueles sábios salmos israelitas:

"A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular".

Martim Vasques da Cunha
Campinas, 24/12/2003

 

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