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Terça-feira, 6/1/2004
Crime e mistério nas letras nacionais
Luis Eduardo Matta

Não é de hoje que intelectuais e críticos literários de boa reputação defendem a tese disparatada de que o romance policial é inviável num lugar como o Brasil, onde o sistema é corrupto, o judiciário moroso, as leis ineficazes e a polícia rudimentar e truculenta. Mais do que discordar terminantemente dela - coisa que faço com vigor sempre que as circunstâncias exigem - não consigo reconhecer a validade sequer de um dos argumentos apresentados para endossá-la, seja porque acredito na força da ficção para subverter todos os limites e recriar a realidade à sua maneira - muitas vezes fazendo o absurdo parecer factível -, seja porque num país como o nosso, onde o próprio crime é reinventado a cada dia com espantosa criatividade, um candidato a escritor policial jamais poderá se queixar de falta de inspiração, sobretudo se ele cultivar o hábito de ler um grande jornal diariamente ou, mais ainda, se tiver um conhecimento prático, adquirido no convívio direto com alguma das forças envolvidas no submundo da violência.

Não faço idéia de quando exatamente essa idéia surgiu e quem a enunciou pela primeira vez, mas não me surpreenderia se descobrisse que a motivação partira da tentativa malograda de algum escritor pouco talentoso de ambientar no Brasil, histórias no estilo de Agatha Christie, Conan Doyle ou mesmo Dashiell Hammett. Ao constatar, sabiamente, que o resultado seria uma mistura indigesta de personagens canastrões, descrições artificiais e situações sem quaisquer conexões com o mundo real, ele, em vez de admitir que se equivocara ao cair na tentação de querer imitar o que vem de fora - arte na qual os brasileiros são bastante aplicados, diga-se de passagem -, teria preferido deixar seu trabalho de lado e jogar a culpa no país e nas suas instituições.

Seja como for, a teoria, como diagnóstico cultural, é um retumbante desastre, inclusive porque não é necessariamente a presença de uma polícia intelectual e investigativa que torna a ficção policial possível, mas o senso de justiça existente dentro de cada pessoa, aliado a uma boa dose de curiosidade e de atração pelo mistério, o que justifica também o sucesso dos chamados "thrillers jurídicos", onde o bem e o mal são confrontados, forçando o leitor a projetar nas situações apresentadas suas próprias expectativas em relação ao mundo real. Não fosse assim, as editoras jamais se preocupariam em lançar tantos títulos de mistério no mercado ano após ano, nem tampouco o país teria literalmente parado em diversas ocasiões para assistir atento à solução de assassinatos em telenovelas como "O Astro", "Vale Tudo" e "A Próxima Vítima". O que muita gente certamente não se deu conta ainda é de que a letargia das nossas instituições, a corrupção generalizada e a truculência da polícia, longe de representarem um desestímulo àqueles que sonham com um noir nacional, constituem elementos preciosos que, se bem trabalhados, podem gerar não uma, mas centenas de histórias excelentes, que muito teriam a oferecer em matéria de originalidade, não só ao Brasil, mas à Literatura policial contemporânea como um todo.

Muitos escritores tiveram essa percepção e, ao longo do último século, se aventuraram pelo gênero, alguns com êxito. O primeiro de que tenho notícia foi o jornalista, político e membro da Academia Brasileira de Letras Medeiros e Albuquerque, autor do livro Se Eu Fosse Sherlock Holmes, de 1932, embora muitos creditem o pioneirismo a um advogado de São Paulo chamado Luiz Lopes Coelho que, nos anos cinqüenta e sessenta publicou os excelentes contos de O Homem Que Matava Quadros e A Morte No Envelope, hoje inexplicavelmente esgotados e esquecidos. Outro foi Flávio Moreira da Costa, autor de obras inovadoras como A perseguição e Avenida Atlântica e vencedor de vários prêmios literários importantes, que continua em franca atividade e recentemente organizou uma antologia com os melhores contos de mistério da Literatura universal. Houve ainda uma corrente que usou a linguagem policial para fazer crítica sócio-política, de um modo geral com resultados catastróficos e os incautos de sempre que continuam a achar que para dar vida a qualquer narrativa de suspense basta haver um crime, alguns suspeitos, um detetive destemido, uma cena de perseguição e várias de sexo, tudo distribuído em diálogos toscos à moda de um roteiro de Hollywood, ignorando que um autor de policiais, como qualquer outro, precisa de técnica, se o seu objetivo for escrever mais do que historinhas medíocres recheadas de clichês.

Contudo, foi a partir do final dos anos noventa que a Literatura policial deixou o gueto no qual sempre vivera e começou a adquirir ares de movimento sério e consistente; e, embora não se possa falar ainda de uma escola brasileira de ficção policial, alguns autores hoje já se dedicam ao gênero com devoção e profissionalismo, como nos demonstram dois lançamentos ocorridos na segunda metade de 2003. Ambientados respectivamente no Rio e em São Paulo, Perseguido, de Luiz Alfredo Garcia-Roza (Companhia das Letras; 201 páginas) e Paisagens Noturnas, de Vera Carvalho Assumpção (Landscape; 198 páginas), dão uma dimensão precisa de como a aliança entre o talento, a criatividade e a sensibilidade é capaz de gerar obras meritórias e atraentes, a despeito de todas as teses empenhadas em provar o contrário.

Tanto Espinosa, o simpático e ético delegado amante de sebos e livros criado por Garcia-Roza, quanto Alyrio Cobra, o detetive bonachão bebedor de vinhos, de Vera Carvalho Assumpção, parecem dialogar com as ruas e esquinas das suas cidades, enquanto se empenham em desvendar crimes complexos e instigantes. Em Perseguido, um psiquiatra vê sua vida sofrer uma reviravolta depois que um misterioso paciente seu invade a intimidade de sua família, antes de desaparecer e ser dado como morto. Paisagens Noturnas, por sua vez, narra a história do assassinato de uma professora próximo a uma escola de periferia e as estranhas conexões deste crime com uma série de quadros que remetem a fatos obscuros ocorridos na São Paulo do século XIX. Ambos os livros saem-se bem ao construir tramas fluentes e bem elaboradas, que reproduzem cotidiano e paisagens brasileiros com fidelidade, estabelecendo imediata sintonia com o leitor e dando uma feição verde-amarela a um tipo de narrativa que, até há bem pouco tempo, estava presente nas livrarias quase sempre na forma de traduções.

Com seus livros, Garcia-Roza e Vera Carvalho podem ter lançado, sem saber, a pedra fundamental de um novo modelo brasileiro de mistério, onde além de enfrentar criminosos, detetives como Espinosa e Alyrio Cobra precisam lutar contra o próprio sistema ao qual pertencem e que, até prova em contrário, é seu aliado do bem; e mesmo este sistema, composto por um corroído aparato legal incrustado numa sociedade corrupta, degradada e carente de referenciais, não constitui um inimigo definido, visível; são sombras que atuam num plano paralelo, sempre prontas a reagir quando seus interesses ou seu anonimato se vêem ameaçados. Ao respeitar e assimilar essas particularidades da realidade brasileira e promover um casamento entre elas e as regras universais que consagraram a narrativa policial, esses notáveis escritores evitaram cair na tentação de emular ídolos estrangeiros e descobriram, na prática, que o Brasil, apesar dos pesares - ou seria por causa deles? - é um cenário mais do que perfeito para se desenvolver uma boa trama policial, ao contrário do que sempre se imaginou.

Por isso, eu, na qualidade de leitor contumaz de romances do gênero, recomendo fortemente a leitura desses dois livros, bem como de todos os anteriores de Luiz Alfredo Garcia-Roza, a começar pelo premiado O Silêncio da Chuva. Da mesma maneira, faço um alerta para que não se confunda autores policiais com indivíduos que, por hobby ou pura presunção, publicaram livros de baixa qualidade como, por exemplo, os que compõem as fraquíssimas coleções dedicadas à ficção policial nacional, lançadas por duas grandes editoras cariocas, respectivamente em 2001 e 2003 e das quais um bom leitor não deve chegar nem perto. O julgamento de um livro policial, historicamente tratado como subliteratura pela critica, cabe quase que exclusivamente aos leitores e isso só faz aumentar a nossa responsabilidade na hora de separar os talentos das nulidades. Sobretudo se considerarmos que a linguagem proposta por essa vertente literária é das mais apropriadas para refletir sobre o Brasil contemporâneo e suas questões complexas, cujas raízes remontam a séculos e que apenas de alguns anos para cá nos saltaram aos olhos, inaugurando um debate que promete se estender por muitas décadas e do qual a Literatura não poderá ficar de fora.

Uma consideração final

Não seria justo concluir essas linhas sem mencionar os nomes de Joaquim Nogueira e Nelson Motta, que alcançaram êxito considerável ao ingressarem nas letras do crime com romances competentes, em cujas páginas fluem histórias envolventes e bem montadas. Nogueira, um delegado aposentado, usa a própria experiência profissional de anos na Polícia Civil de São Paulo para compor os cenários e personagens de suas aventuras, protagonizadas pelo correto inspetor Venício, como Informações Sobre A Vítima e, mais recentemente, Vida Pregressa. Assim como Garcia-Roza, ele pertence a uma bem-vinda categoria de romancistas dedicada exclusivamente ao gênero policial, algo nunca antes verificado no Brasil. Já o jornalista e agitador cultural Nelson Motta inovou ao lançar em 2002 O Canto Da Sereia, uma trama despretensiosa transcorrida no carnaval da Bahia, onde, em meio ao mistério em torno do assassinato de uma popular cantora de música axé, o leitor é conduzido pelos bastidores do mundo brasileiro do show-biz, que Motta conhece como poucos.

Luis Eduardo Matta
Rio de Janeiro, 6/1/2004

 

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