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Sexta-feira, 16/1/2004
Vamos por partes
Adriana Baggio

Mesmo que, racionalmente, a gente saiba que o início do ano não passe de uma convenção, assim como tantas outras que regulam nossa vida, esse recomeço serve de estímulo para que a gente tente fazer melhor no período que se inicia. Esse esquema de períodos, de etapas a serem vencidas, com a possibilidade de começar novamente, provavelmente faz com que o sofrimento da existência humana, com todas as incertezas inerentes a ela, se atenue um pouco. As promessas de vida após a morte variam de religião para religião, mas existem em todas elas. Mesmo que ninguém tenha voltado do lado de lá para contar como é, o vislumbre de uma outra etapa a ser cumprida, depois que essa esteja terminada, dá um tipo de consolo, diminui a ansiedade daqueles que gostam demais da existência terrena e não querem que ela acabe, ou dos que não vêem a hora que ela termine, mas com a esperança de que algo melhor aconteça da próxima vez.

Dentro dessa grande etapa, digamos assim, que é a vida, cumprimos outras etapas menores. Diversos pensamentos da sabedoria popular reafirmam a vantagem de dividirmos as atividades em fases. Dar um passo de cada vez, separar as tarefas em pedaços para melhor cumpri-las, a promessa de manter-se "limpo" pelas próximas 24 horas, etc., são conselhos que servem para atenuar a ansiedade do ser humano. É muito mais fácil tentar fazer o melhor em uma etapa da vida do que se propor a vivê-la toda na perfeição.

O fato de vivermos em períodos também serve a uma outra característica humana, a procrastinação. Aguardar o início de um novo período, seja ele de uma semana, um mês, um ano, para aperfeiçoar seja lá o que for, nos dá mais um tempo dentro da situação não ideal, mas sem o desconforto da culpa. Se existe a promessa de começar uma dieta na segunda-feira, os exageros gastronômicos do final de semana serão perdoados. Assim como a intenção de manter-se fiel no casamento, quando ele chegar, redime as puladas de cerca nas relações menos formais anteriores a ele.

A gente aprende desde muito cedo a viver segundo as etapas da vida. O sistema educacional é estruturado por etapas bem delimitadas, o que faz com que a maior parte dos alunos não perceba a inter-relação entre uma série e outra. A escola vira quase um game, onde é importante se dar bem em uma fase para passar para a próxima. O continuum da educação, a intenção de que o conteúdo da série anterior sirva de base para a próxima, se perde nos esquemas de etapas. O aluno termina o ano letivo aliviado, passa 2 meses de férias e quando volta, pouca coisa do ano anterior é retomada. Normalmente se começa um novo livro, com um novo professor, e a sensação de continuidade se perde na didática.

Esse fenômeno pode ser observado mesmo em alunos do curso superior, teoricamente com mais maturidade para perceber as relações entre os conteúdos. Talvez os pelo menos 11 anos de ensino fundamental e médio acostumem de tal forma o aluno que ele carrega os vícios da escolinha mesmo na faculdade. Isso é claro de ser percebido nos trabalhos de conclusão de curso, onde os alunos deveriam utilizar os conteúdos e ferramentas aprendidos durante os anos de faculdade. Na realidade, esse trabalho de fechamento acaba sendo mais uma etapa isolada, sem relação com as anteriores, quase como um intensivo, onde o aluno corre desesperado para tentar resgatar, em poucas semanas, o conteúdo de 4 anos, para poder realizar o projeto de conclusão.

Essa reflexão sobre o esquema de etapas em que a gente vive pode parecer uma crítica, mas pessoalmente não acho ruim. Até senti falta desse clima de passagem, de virada, que acabei não vivenciando por estar focada em outras mudanças que aconteceram nesse período. Por conta disso, acabei sem fazer as inevitáveis promessas de ajudar os mais necessitados, ser mais tolerante, não me estressar com coisas sem importância, emagrecer, etc. Ter a intenção de melhorar na próxima etapa é muito saudável, mesmo que pareça um pouco hipócrita. Dizem os neurolingüistas que só o fato de você verbalizar ou escrever algum projeto já é seguir em direção a essa realização.

No meu caso, enquanto está todo mundo ainda meio de ressaca do final de ano, começando devagar a colocar em prática suas promessas para 2004, tenho a sensação que 2003 não terminou. Me consola saber que restam os finais de semana, essas sub-etapas do nosso calendário, para poder listar algumas promessas e intenções e tentar colocá-las em prática a partir da próxima segunda-feira.

Adriana Baggio
Curitiba, 16/1/2004

 

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