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Quinta-feira, 22/1/2004
Os melhores do cinema brasileiro em 2003
Lucas Rodrigues Pires

Por incrível que pareça, foi só em dezembro último que se realizou o Prêmio Brasil do cinema brasileiro, quando a Academia elegeu os melhores de 2002 do cinema. E o melhor filme só podia ter sido mesmo Cidade de Deus. Em artigo aqui mesmo no Digestivo, coloquei O Invasor como o melhor, mas os membros da Academia são os homens de cinema no Brasil, os mesmos que querem e se esforçam por uma indústria de cinema tupiniquim. Portanto, nenhuma surpresa em ser Cidade de Deus (3,3 milhões de espectadores) o melhor de 2002. Alguém tem dúvida que Carandiru (4,7 milhões de espectadores) será eleito (não se sabe quando) o melhor de 2003? Os critérios de avaliação, muitas vezes, passam pelas cifras atingidas pelo filme.

Em 2003, foram 31 novos filmes estreando em circuito comercial (estão excluídos nesses números aqueles que foram apenas exibidos em mostras, festivais ou eventos paralelos). Foi o ano em que a TV Globo mergulhou de cabeça no cinema, colocando nas telas subprodutos de seu staff televisivo e também mostrando toda sua força no marketing de diversas obras.

No ano passado, o cinema brasileiro bateu diversos recordes, sendo responsável por mais de 20% dos ingressos vendidos (aproximadamente 22 milhões de ingressos num total de 102 milhões) no país. Isto quer dizer que de cada 5 pessoas que foram ao cinema, uma comprava ingresso para um filme brasileiro. Foi o ano também que se viu surgiu um novo fenômeno - Carandiru, que levou quase de 4,7 milhões de pessoas aos cinemas. Esse número é maior do que a bilheteria de O Senhor dos Anéis - As Duas Torres, Matrix Revolutions, X-Men 2 e O Exterminador do Futuro 3, para citar alguns grandes lançamentos do ano passado. Carandiru fechou o ano em terceiro lugar no ranking dos filmes mais vistos no país, um feito impressionante que não se via há cerca de 15 anos.

2003 também foi o ano em que ficou nítida a equação que identifica o cinema na atualidade. Mais do que qualquer coisa, hoje em dia o que vale é marketing. E marketing é parte integrante da indústria. E indústria é no que querem transformar o cinema brasileiro. O ano que passou esteve tão competitivo em termos de exibição que poderia ser taxado de "o ano comercial do cinema brasileiro", pois quase não houve filmes "autorais" significativos, apesar de o Festival de Brasília premiar os autores do cinema marginal e fortalecer os laços com o cinema independente numa decisão muito polêmica do júri).

Meus melhores de 2003:

Filme: Separações e O Homem do Ano

É difícil ficar com um único filme como o melhor, por isso elegi logo dois deles. O Separações de Domingos Oliveira é uma comédia típica carioca daquelas com traição, trocas de casais, angústia, reconciliação e amor, mas ela exerce um poder fascinante (todo mérito do diretor, também roteirista da fita) através de seus diálogos fantásticos. As palavras de Domingos Oliveira têm um encanto único, e nesse filme em especial ele se superou. Para constatar o que falo, basta assistir ao recente Sexo, Amor & Traição, de Jorge Fernando, e depois ver Separações. Sai-se da água para o melhor dos vinhos, sem exagero. Até as risadas deste são mais gostosas.

O Homem do Ano foi um dos filmes mais injustiçados que passou. Crítica e público o receberam friamente, o que deixou o filme ser substituído por outros rapidamente nas salas de exibição. Sobre ele, escrevi um artigo aqui no Digestivo.

Diretor: Hector Babenco

Apesar de Carandiru não ter sido tudo aquilo que se esperava (é um filme grandioso, mas que perdeu muito de sua força quando se debateu seu conteúdo, ao contrário de Cidade de Deus, protagonista de um debate fervoroso que elevou o status do filme), é notável a presença das mãos de Babenco nessa superprodução. Depois dos problemas médicos que enfrentou e quase ter morrido, o cineasta mostrou seu talento como diretor ao conseguir comandar perfeitamente dezenas de atores e equipe técnica. Carandiru não é o melhor dos filmes, longe de ser perfeito, mas o trabalho de Babenco é monumental e vê-se claramente isso nas telas.

Ator: Wagner Moura

O que dizer do cara que apareceu e tomou conta do espaço dos atores do pedaço, tanto em cinema quanto televisão? Simplesmente Wagner Moura é a alma do filme de Cacá Diegues ao compor seu Taoca com a malandragem tida como brasileira. Taoca é o jeitinho brasileiro encarnado, que até Deus ele tenta faturar. No seriado Sexo Frágil, da Globo, ele reforça seu talento. Nasceu ator esse menino, e dos melhores.

Outro destaque como ator que poderia ser citado foi Matheus Nachtergaele, em Amarelo Manga.

Atriz: Débora Falabella

Quem olha pra ela não dá nada. De tão pequena quase não aparece. Mas o seu tamanho foi fundamental para fazer com que ela fosse o centro do filme de José Joffily, antagonizando a força física de Roberto Bomtempo com sua força psicológica e manipulativa nos personagens Tonho e Paco. Aqui, os papéis tradicionais de homem duro e forte e mulher frágil e sensível estão invertidos, e Falabella domina a cena com segurança e feminilidade.

Roteiro: Separações e O Homem que Copiava

O melhor desses dois diretores/roteiristas é a capacidade de fazer do humor algo inteligente. Ambos os filmes apresentam isso, seja nos diálogos, seja no enredo. E inteligência é característica fundamental num roteiro.

Outro roteiro que chamou a atenção foi Carandiru, pela boa amarração de histórias de vidas tendo como elo o presídio paulistano.

Fotografia: O Homem do Ano

Taxada de publicitária, a fotografia no recente cinema brasileiro é dos pontos de maior discussão em tempos do antagonismo cosmética versus estética da fome. O Homem do Ano tem seus maneirismos e sua fonte é claramente a publicidade, mas isso não quer dizer que seja ruim ou viciada. O fotógrafo Breno Silveira imprimiu uma atmosfera suja e poluída, impondo ainda certa afetação da imagem por tomadas às vezes muito próximas dos personagens. O que resulta é uma imagem sombria, pós-moderna e inteiramente subjetiva, o que facilita a entrada no mundo interior do matador Máiquel.

Documentário: Nelson Freire

Num ano em que se viu poucos documentários exibidos (se comparado aos números do ano passado), essa empreitada de Salles pelo mundo misterioso do pianista Nelson Freire torna-se mágica. Salles faz música para nossos olhos, revelando a alma de um ser humano que, acima de tudo, é um ser humano.

Ator coadjuvante: Pedro Cardoso

Pedro Cardoso é um ator carismático. Não é o tipo bonitão nem atlético, mas conquista pelo humor e pela interpretação próxima do farsesco. Seu Agostinho de A Grande Família é assim. Em O Homem que Copiava, mais uma parceria com seu velho companheiro Jorge Furtado, ele é o contraponto do protagonista André, ou seja, responsável pelas melhores piadas e situações cômicas do filme. Não tem como não rir de sua cara quando ele briga com André por ter feito uma nota falsa e, logo em seguida, pergunta se tem outras. Pedro Cardoso sabe ser o tipo malandro desajeitado, sabe fazer humor como poucos, e mostrou isso em O Homem que Copiava, roubando a cena do também ótimo Lázaro Ramos.

Atriz coadjuvante: Etty Fraser

Durval Discos sofre por não se adaptar a nenhum gênero cinematográfico. Não se sabe se é comédia, suspense ou drama. Envereda pelos três sem avisar o espectador. Mas dentro dessa confusão surge a interpretação de Etty Fraser, mãe dominadora de Durval, um quarentão dono de uma loja de vinil. Quando uma criança é deixada em sua casa e logo depois têm de devolvê-la, ela entra num processo de enlouquecimento que passa de um ingênuo cozinhar à matar.

Trilha Sonora: Paulinho da Viola - Meu Tempo é Hoje

O documentário de Izabel Jaguaribe traz parcerias do compositor e cantor carioca, como a com Marisa Monte, seu pai (César Faria) e a Velha Guarda da Portela. O Sol Nascerá, com Elton Medeiros, está um primor. São as canções do filme que estão na trilha.

Canção: Você Não me Ensinou a Te Esquecer

O filme de Guel Arraes, apesar de parecer uma repetição de O Auto da Compadecida (mesmos personagens, mesmos atores, mesmas locações, mesmas piadas e, principalmente, mesma montagem), conquistou diversos fãs (mais de 3 milhões) e popularizou essa canção interpretada por Caetano Veloso. A música foi responsável também pela bela vendagem do CD do filme. Vale mesmo.

Surpresa positiva: Os Normais - O Filme

A história desse casal "normal" já estava cansando na televisão. E a idéia de fazer um filme para mostrar como Vani e Rui se conheceram foi uma das mais interessantes do ano. Os Normais - O Filme tem graça, simpatia, boa direção e muito humor, o que fez do filme a grande surpresa do ano do cinema, até porque levou quase 3 milhões de pessoas aos cinemas.

Pior filme: Acquária

Pode haver pior coisa do que torrar R$ 10 milhões em dinheiro público, fazer um filme que não arrecadou R$ 4 milhões e, ainda por cima, ser uma bomba imensa de tão ruim? O pecado de Sandy & Júnior nesse filme foi enveredar para o filme dito sério, de enredo e trama não banais, como nos de seus colegas Xuxa e Renato Aragão. O resultado foi um roteiro desconexo (um Waterworld às avessas), ritmo de entediar os amantes de cinema europeu clássico, efeitos especiais gratuitos cujo único objetivo eram descaradamente esfregar na cara dos espectadores algo do tipo "Yes, nós temos cinema com efeitos especiais!". Não à toa que a primeira coisa que os releases de lançamento do filme informavam era o fato de ser o filme nacional com maior número de efeitos especiais já realizado. Além de tudo isso, Acquária apresenta sofríveis interpretações dos irmãos cantores e a falta total de química entre Sandy e seu suposto par romântico, algo como água e azeite. A única coisa que se salva é o pequeno Igor Rudoff, responsável pelos exíguos momentos interessantes do filme.

Revelação: Vicente Amorim

O filho do ministro estreou no longa-metragem com o documentário 2000 Nordestes, mas seu cartão de visita apareceu só agora. O Caminho da Nuvens é outro filme injustiçado. Comparado a Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, só que sobre duas rodas, não é apenas uma história da migração de uma família nordestina para o Rio de Janeiro. Ela é, acima de tudo, uma história de conflito entre pai e filho, acentuada pela interpretação contida e fria de Wagner Moura (como o pai) e de Ravi Ramos Lacerda (o garoto de Abril Despedaçado, já adolescente), seu oposto. Amorim tem domínio de câmera, sabe como filmar seus personagens.

Abacaxi do ano: Moacyr Góes

Quer maior abacaxi diante de seus colegas diretores e da crítica do que dirigir um filme da Xuxa? E o que dizer de alguém que dirige o filme da Xuxa (Xuxa Abracadabra), o do padre Marcelo Rossi (Maria, Mãe do Filho de Deus), adapta sem nenhuma ousadia um clássico de Dom Casmurro (Dom) e, ainda por cima, está para lançar um filme da Angélica e Luciano Huck (Um Show de Verão)? Pois é, Moacyr Góes, homem de teatro, conseguiu a proeza de fazer tudo isso em 2003, abrindo novamente a discussão do diretor de aluguel, aquele que não tem poder autoral sobre o filme em questão. Diante de tantas pérolas, só podia ser ele mesmo o campeão. Ele não deve se levar a sério como cineasta.

Filme estrangeiro

As Horas, de Stephen Daldry, Tiros em Columbine, de Michael Moore, Adaptação, de Spike Jonze, e, como não poderia deixar de ser, O Senhor dos Anéis - O Retorno do Rei. Infelizmente, em 2003 não tivemos filmes mexicanos e argentinos tão bons quanto em 2002 (pelo menos do que vi), muito menos europeus.

Lucas Rodrigues Pires
São Paulo, 22/1/2004

 

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