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Sexta-feira, 23/1/2004
Memórias sentimentais de um jovem paulistano
Julio Daio Borges

Visconde da Luz - Tenho cinco anos e é a primeira vez que vou ao banheiro com meu pai. Ele me pede que não toque em nada; eu encolho as mãos e os braços. Quando acabo, tenho de avisar. Depois fico preso com meu irmão menor - e tendo de sair por baixo. Minha irmã também se tranca e, quando abrimos a porta, ela canta, enquanto desenrola rolos e dá sucessivas descargas.

Itaim - Saio de férias antes e não posso falar nada. Estamos voltando para casa e minha mãe me segreda essa verdade. Uma semana a mais. Minto para a professora que não preciso usar óculos; é só pra testar. Vamos à sua casa; ela tem uma filha mais nova que leva no último dia de aula. É concorrente da Graça, que deixa escrever à caneta (seus alunos, mais habituados, não terão esse trauma quando a terceira série chegar).

Graúna - Ele fuma uma piteira e me chama de Dário. Toda tarde são 500 gramas de presunto e 250 de mozarela. Mais um pão Pullman. Ele anota tudo com a letra da minha avó. No fim do mês pego a conta. Ele pigarreia, roda a manivela da máquina e me dá. Para completar, peço um Lollo. Soube que morreu de câncer. Não colocaram a memória abaixo, mas construíram em cima o Original.

Pamplona - A matinê está lotada e é só para quem tem até tal idade. Gregório ri da nossa cara, meu amigo ri de volta; Gregório ordena: - O Sorridente pode entrar. Fico de fora. Um sujeito diz que não quer voltar pra casa. Meus amigos são postos pra fora; eu entro. Na seqüência, também sou posto pra fora. Dennis e Teta promovem uma guerra de pipoca na Pamplona congestionada. Qual é a música? Acerto e levo Depeche Mode pra casa.

Bosque do Morumbi - Meu amigo marcou com a Alessandra e seu cachorro numa praça logo mais. Estamos curiosos: ele vai ver a sua cara depois de meses no telefone. Ela aprece no local combinado; ele aborda, eu me camuflo. Seguem pelo Bosque do Morumbi. Já é tarde, devo voltar para casa - e pegar o ônibus com a minha mãe para o Paraguai. Faço sinais para o meu amigo por trás da folhagem. Ele entende e eles seguem para a Avenida Morumbi (ela lhe mostra a sua casa).

Avenida Brasil - Eu falo com a Thaís todos os dias; ainda não nos conhecemos. Ensaiamos um encontro no McDonald's da Avenida Brasil. Ela mora na João Moura, estuda no Saint Paul's e traduz canções da Tracy Chapman para o motorista de ônibus. Thaís diz que eu tenho medo do seu pai; eu não consigo me lembrar. Meu amigo briga com sua amiga; ela vai para os Estados Unidos; anos depois, nunca conseguimos nos encontrar.

Ibirapuera - Nosso hábito é bambear as placas do Jardim Paulista e freqüentar, anualmente, a feira de ciências da Escola Morumbi. Há uma menina lá. Desta vez, passamos pelo Mater Dei, vindo de Moema, e seguimos para o Ginásio do Ibirapuera. O ingresso de um quase voa; a camiseta de outro tem de ser trocada; um terceiro exagera na história, afirmando que os soldados estavam com as baionetas engatilhadas. O primeiro não lê Stephen King e mente de maneira deslavada. Do show, nada; ou quase nada.

Campo Belo - Aula de inglês à noite: Estoril na hora do jantar. Alguém pergunta qual é o gosto das moças, enquanto bebericamos um chope. Concordamos que é agridoce. Um bêbado se aproxima e quer papo. Do meu amigo, o outro diz (pro bêbado): - É meu filho. (Ele tem intenções libidinosas.) Voltamos pra aula. O professor tem um cabelo engraçado. "Você é heavy?" - minha amiga não se conforma que meu amigo tenha perguntado.

Santo Eufredo - Ele me pede para dar voltas. Damos uma em cima, outra do lado e outra embaixo. Quando está cansado, ele me olha com aquela cara; ou então bate com o focinho na minha mão. Sempre assusta o guarda de uma casa; sempre provoca o mesmo cachorro amarrado; e sempre faz um cocô grande e demorado. Xixi são vários. Agora está mais comportado: espera que eu abra a(s) porta(s) e me obedece quando dou um comando básico. Hoje me arrependo de não tê-lo levado mais - e de vê-lo chorar por um pedaço de corda e algumas voltas na quadra.

São Paulo - Viajamos sem sair da cidade. Ela reclama porque na fila do Unibanco chove. "Tem de querer muito..." - vira slogan. No nosso restaurante, o garçom diz que viu aquele guitarrista famoso e ruivo. No concerto, quando está vazio, trocamos de lugar. Ela corre; eu ando. Queremos morar perto da praça. E viajar nos fins de semana. A banca no domingo; a pizza também. Estudamos na USP. Ela quer mudar de São Paulo; eu quero ficar.

Julio Daio Borges
São Paulo, 23/1/2004

 

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