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Sexta-feira, 20/2/2004
Romaria e prece em Guatapará
Daniel Aurelio

O sonho de qualquer artista, genuinamente artista, é permanecer. Sertanejo, sabido que é, conhece a receita como a palma da mão: atravesse a estrada de fininho, na balada dos legítimos. Não tente ser herói de causa alguma. Não receba descomedido apupo. Toque a vida como toca sua boiada - imagem de poesia cabocla mais bela, duvido.

Nasci em madrugada de fria bruma, na rua Duarte da Costa na Lapa. Maternidade São João Batista, dia de São Pedro. 1980. Tinha arraial e o vento trazia ao berçário um forte aroma de bolo de fubá e quentão: quero acreditar que sim, que tenham recebido o rebento aqui com uma baita quermesse. Das brabas.

Costumo ser arredio a festanças por absoluta inabilidade social. Mas gosto de festas juninas. Tenho aquele amargor de jamais ter recebido correio elegante de moça bonita (nem de moça feia), mas não é em face ao meu insucesso com as moçoilas que venho. Ajeito o chapéu e sigo o conselho do Nho velhíssimo. O caminho é meu. Que me entendam no futuro, e se puderem, os amores que perdi.

Criança, pirralho, bacuri, curumim. O maiorzim, meu irmão; e o "mais menor", eu. E meu pai tinha (e tem ainda) as mãos ágeis, com as quais bordava peças em sisal, corda arredia do Norte. Peças bonitas, algumas trançadas em cana da índia. Que tremendo sucesso faziam no bairro! Criavam forma em um quartinho nos fundos de casa. Amontoavam-se aonde desse.

Lembro do rádio sempre ligado, às quartas-feiras no jogo do Corinthians - o time precisa de um meia-armador, resmungava - e nos outros dias rasgavam-me os ouvidos violas e cantorias, tonicos e tinocos, tião carreiros e pardinhos. Pena branda, pena branca. Era uma vez o Brasil de Sarney e do Rock Brasil, do RPM e do Clube do Bolinha. E eu, que só lembro do meu pai fazer a terceira voz? E como fazia bem!

Meus tios falavam e falam arrastado, algo carregado. O tom nunca foi baixo. Minha família é um pedaço urbano e desgarrado da tese de Antonio Candido nŽOs Parceiros do Rio Bonito. Málaga de um lado, algum subúrbio pobre da Itália noutro. Primeira Guerra mundial. Entocados em navio mercante deram em Guatapará, lá pelas bandas de Ribeirão Preto. Barão de café? Não, roceiro mesmo. Depois, dono de pensão. A disciplina e a tez enviesada do avô que não conheci mal disfarçavam seu olhar aconchegante e doce, típico dos italianos bufões. O pessoal ia se achegando, se achegando... Família grande. Amém.

Meu pai não era o rapaz mais bonito da Vila Anastácio, aquela à beira das Industrias Klabin. Nem o melhor jogador de futebol, nem nada demais. Trabalhador obsessivo por vocação, um campesino falante em plena São Paulo do Adhemar de Barros. O cabelo tipo John Lennon em Imagine, o coração do tamanho da cidade que não compreendia. Acabou conquistando a mais bonita das moças em um raio de cinqüenta quilômetros. Enamorou-se dela, a minha mãe: angelical até no batismo e a mais luminosa das estrelas marias.

Não fisguei minha musa ainda e os tempos são bem outros. Mas meu pai é meu espelho. Sou espelho de meu pai. Até no vai e vem desajeitado das pernas, na mancha avermelhada na nuca. No nariz sobressaltado. Gosto de refletir-me nele.

Ah, aquele final dos anos 80... Foram cruéis. A moeda em desequilíbrio: cruzeiro, cruzado, cruzeiro novo. Um grito preso. O rock de bermudas declinava. Cazuza era insultado pela Veja. Eleições diretas em um país feito cão que ficou para fora da mudança. Às cegas, refém de um bando de oportunistas. Do pluripartidarismo e da plutocracia regional. Esquerda e direita, volver. Não quero nenhum de vocês. Tenho apenas nove anos.

O multinacional Kaoma, de assinatura francesa, trucidava o que sobrou da lambada. Sabe lá se esse ritmo é nosso. Collor e os usurpadores da cultura rupestre inundavam o país. Perdemos as economias e um pouco da inocência também. Que permaneça o artista? Nada havia além de sintetizadores e vozes trêmulas da mais afeminada agudeza, do mais grosseiro romantismo.

Chitão e Xororó. Caso limite, como o Raça Negra no pagode. Representam a morte de um estilo, ao passo que eletrificaram o modo caipira, estigmatizaram-no, a despeito do inegável talento que desperdiçaram. Enfiaram Bee Gees na caatira (guitarra em luar de sertão). Gordurinha, salve mestre. Em que bailão-baião tu estás? Relutava botar be-bop no nosso samba? Bobeou, a gente pimba!

Quando o Brasil acordou, tocou Collor para fora. Mas deu tempo de lambuja para essas duplas sertanejas ararem terreno. E vencerem o povo miúdo pela apatia. Fizeram o mesmo com o som de Salvador, com o rap periférico e o forró nordestino. Aclamaram Tom Zé, Racionais e os blocos Afro como "raízes", espécimes em formol, não pelos grandes artistas que são - em mutação. O artista flana acima das classificações. Felizmente, não fizeram marola com a insígnia do violeiro errante - e não faltou quem ciscasse tamanha maldade.

Canto. Mãos. Primeira e terceira voz. Sisal e viola. Arte: permanência.

Se fosse permitido apenas um cantante por palco de existência, seria escolha de torturar a alma. Na poética da realidade, ficaria entre Chico e Mano Brown; Gessinger vocalizaria o que há de dúvida na juventude e Renato Russo seria o signo do amor em sua tonalidade universal. Belchior transmitiria nossa latinidade ao mundo e Falcão daria alô a galhofa - a sacanagem e o duplo sentido eu deixava com o Genival Lacerda. Quanto à idéia de forasteiro que nos rodeia o sono, Jards Macalé com Wally Salomão.

Se fosse preciso um trovador numa estrada de terra(impreciso caminhar preciso?), alguém que verbalizasse ao estrangeiro o que seria essa tal de saudade, escolheria Nho Renato Teixeira de Oliveira. Santista de certidão. Interiorano pela vida adentro. Músico. Dono daquela melodia cortante de minha infância, doída de formosa, nas sessões de arte orgânica de meu pai. Teixeira é a voz a viola e o poema da grande canção caipira da história Republicana, Romaria - Chico Mineiro beija o pódio também.

Desconte a nota dez aplicada pelo crítico Pedro Só na finada Bizz em resenha inspirada sobre o disco Ao Vivo no Rio, de 2000. Não mencionemos as sempre aclamadas participações de Teixeira no Viola, Minha Viola, de Inezita Barroso, um dos poucos refúgios de inteligência e cara limpa da televisão aberta. Feche os ouvidos para as trilhas recorrentes em noticiário rurais. Zere qualquer tipo de lembrança que remeta a barba densa do cantador. Agora, cerre os olhos e remexa nos arquivos da memória remota. Procure lembrar de uma canção que evoluísse à oração, uma palavra escorregadia se faz em outra, feito um rio em contínua passagem. Uma benção. Não se surpreenda se flagrar os lábios esboçarem um "sou caipira pira pora nossa senhora de aparecida que ilumina a mina escura e funda é o trem da minha vida". Não se surpreendas. Nem que sejas um agnóstico ou ateu em ato falho.

O sonho do artista, genuinamente artista, fica assim, tatuado em nós.

A saudade, essa vala comum - ora pétala ora navalha ora coisa alguma - incompreendida por gauleses e bretões, eu não sei o por quê, vai bater-me à porta da obra do violeiro, esse bardo do café com leite. Aprecio a subversão que há na sua normalidade. A canção não precisa ser nada além disso: uma corda de sisal curtida aos bocados. Ordem e progresso (essa gabolice positivista) às vezes traduz-se melhor em regresso.

Ai, ai. Em qual pedra ou aço da incrédula Avenida Paulista deixei cair minhas calças com barra de jeca, as botinas sujas, a enxada que jamais empunhei? Mira-te o passado. Enxergo-te pai. Enxergo-me pai. Dois caipiras cúmplices da noite e de um rádio valvulado - herança de avô, esse outro guapo caipira.

Peço-te a benção, Guatapará: sou fruto paulistano da tua terra. Um paradoxo abatido em romaria, viola e sisal: de preferência, a viola enluarada de Teixeira. E o artesanato aquietado de meu pai.

Daniel Aurelio
São Paulo, 20/2/2004

 

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