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Quarta-feira, 3/3/2004
Carnaval, Gilberto Freyre e a democracia racial
Aline Pereira

O ideal teria sido publicar este texto um pouco antes do Carnaval, para fazer jus ao clima de euforia que contagia quase todos os foliões. Peço desculpas aos leitores pelo sumiço, mas fui acometida por uma indisposição gástrica que me rendeu alguns dias de cama e de descanso forçado. Não pulei o Carnaval, portanto. E nem pularia, por conta de uma única razão: a festa já não é mais a mesma. Não faz muito tempo que o apelo popular se rendeu à lógica da maior emissora brasileira, e que a passarela do samba transformou-se em uma extensão da Rede Globo.

Recentemente, José Jorge de Carvalho, pesquisador do departamento de Antropologia da Universidade Federal de Brasília, publicou um artigo no qual desmistifica a idéia de que o carnaval brasileiro seja uma festa democrática. Por meio do site da revista Ciência Hoje pude chegar à "Realidade e miragem, injustiça e prazer", texto que também está disponibilizado na homepage da UnB.

Carvalho afirma que as desigualdades sociais e raciais brasileiras são evidenciadas durante a festividade. Arrisco dizer, pelo que li, que o autor provavelmente também discorda da teoria da "democracia racial" de Gilberto Freyre (1900-1987), em voga durante a primeira metade do século XX. Quando escreveu Casa Grande e Senzala, em 1933, o intelectual pernambucano fez uma rica e preciosa descrição das relações sociopolíticas e econômicas do Brasil. Um clássico, polêmico até os dias atuais, Casa Grande e Senzala - uma das obras mais divulgadas e traduzidas no mundo - é uma metáfora de um país ainda incipiente, mas desde os primórdios, rico em contradições.

Freyre inovou quanto às idéias e à escrita que não cedeu aos tabus de ordem moral do início dos anos 30. O autor escreveu "gostosamente" acerca da formação do Brasil, sob os alicerces da família patriarcal e do paternalismo. Ele atribuiu ao sexo nos trópicos um valor excessivo, sendo a miscigenação um dos pontos altos da colonização portuguesa. Para Freyre, este colonizador foi o menos europeu dos europeus, pois a partir de sua ascendência moura e judia pode desprender-se da "terra natal" e adaptar-se muito bem ao clima dos trópicos. Isto contribuiu para a "miscibilidade" - termo caro ao autor. Esta, somada à necessidade de povoação e ocupação do território, é uma explicação de por que os portugueses não hesitaram em envolver-se sexualmente com índias e negras.

Para a década de 1930, a obra de Freyre foi inovadora não somente a partir da linguagem, mas também porque o autor esteve imbuído de uma sensibilidade que lhe permitiu distinguir "raça" de "cultura", numa época em que elas não eram indissociáveis. Ele não atribuiu à miscigenação - ao contrário de seus contemporâneos, Paulo Prado e até mesmo Manuel Bomfim - as mazelas do povo brasileiro. Os nossos "males de origem", segundo Freyre, são explicáveis a partir da carestia de alimentos (fartamente disponibilizados somente para os dois extremos da "pirâmide social") e também pela própria "sifilização" da colônia. Freyre afirmou que o Brasil sifilizou-se antes mesmo de civilizar-se, uma vez que a doença chegara a colônia juntamente com os portugueses.

Nas passagens em que comenta sobre a disseminação da sífilis na colônia, veremos que o sexo não é explicado simplesmente a partir de relações amistosas. Muitos homens exibiam a marca de sífilis no corpo como se essa fosse um sinal de virilidade, de poder. Disse o autor, que na época, um ótimo remédio para curá-la seria desvirginar uma negrinha. Tal afirmação nos permite perceber a contradição na perspectiva de Freyre quanto à democracia racial, que tende a minimizar o racismo brasileiro. Tendo considerado a colonização do Brasil menos preconceituosa e mais açucarada do que a norte-americana, por exemplo, é sabido hoje que o autor pernambucano exagerou e equivocou-se bastante quanto à percepção docilizada das relações "senhor-escravo". A presença do sexo entre portugueses e negros ou índios não significava a ausência do racismo, tampouco, a idealização de uma igualdade entre os pares.

Guardadas as devidas proporções, as desigualdades vêm à tona durante o Carnaval - época em que o apelo ao sexo, midiaticamente explorado, é maior. Ainda que esteja presente e latente durante os outros dias do ano, é na explosão das festividades "profanas" que evidenciamos os contrastes e desigualdades brasileiras. Como disse Carvalho, desde os séculos passados, "tanto nas capitais como nas cidades do interior, os clubes sociais tidos como 'melhores' excluíam os negros e os pobres, que festejavam o carnaval nas ruas e em clubes humildes, em geral situados nas periferias e nos bairros populares".

De acordo com o autor, esta segregação acentuou-se, com o decorrer dos anos, principalmente quanto ao quesito "poder aquisitivo": se antes somente alguns podiam freqüentar os luxuosos salões da sociedade, ainda hoje, somente poucos podem comprar fantasias (ou "abadas") "módicas", que variam entre trezentos e quinhentos reais, e/ou refestelar-se nos camarotes mantidos pelas grandes marcas de cerveja, enquanto a massa, solidária, é comprimida e compartimentada nas arquibancadas -"setorizando" os espaços do carnaval a partir do preço do ingresso (ou da notoriedade do individuo. Se você não for um Big Brother, talvez não tenha acesso a área vip da Sapucaí...).

Recentemente, um jornal carioca divulgou que alguns blocos tradicionais não mais divulgam o horário do desfile, temendo a presença de penetras - restringindo a folia à poucos eleitos. Os organizadores, segundo reportagem do Jornal do Brasil, alegam precaução contra a violência.

Divagando a partir do artigo de José Carvalho e de considerações lidas em Casa Grande e Senzala, somadas ao comportamento de alguns blocos, pergunto: fomos nós que mudamos, ou mudaram o Carnaval?

Aline Pereira
Rio de Janeiro, 3/3/2004

 

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